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Gustavo Corção e Eu

Desde que eu soube que Gustavo Corção ia completar 75 anos, comecei a querer escrever algumas palavras em que lhe demonstrasse mais do que minha admiração — o meu afeto e a gratidão que sinto pelo carinho paternal com que sempre ele me tratou, de 1967 para cá, que foi quando começamos a nos conhecer melhor. 

De fato, eu já o conhecia, da leitura de A Descoberta do Outro e de Três Alqueires e uma Vaca, livros que foram muito importantes para mim. Mas foi só depois, que o conheci pessoalmente, em 1957, quando me casei e vim para o Rio, em viagem de lua-de-mel, na qual assistiria, também à estréia, aqui, do Auto da Compadecida. Fui, com minha mulher, à redação de “A Ordem”, e outro grande brasileiro, Alceu Amoroso Lima, apresentou o jovem casal Suassuna a Gustavo Corção.

 

Daí em diante, muitas águas passaram por baixo das pontes, nos rios ou nos morros do Nordeste e do Rio de Janeiro. Um dia, por influência de Rachel de Queiroz, fui nomeado para o Conselho Federal de Cultura, do qual Gustavo Corção, segundo vi no jornal, também faria parte.

 

Acontece que eu ouvira dizer, por uma entrevista dada por ele a “O Globo”, que Gustavo Corção não gostara da minha peça, Auto da Compadecida – o que considero absolutamente natural e nunca me separou de ninguém. Mas, segundo o repórter, além de não gostar da peça, Gustavo Corção notara em mim “um evidente desejo de fazer escândalo” – o que só não me deixou mais magoado, porque até hoje eu não sei se ele disse isso mesmo, ou se houve deformação de outras palavras suas pelo jornalista – coisa que já fizeram comigo não sei quantas vezes.

 

Mas como, por outro lado, eu sabia que Gustavo Corção tinha fama de homem áspero e intratável, homem que, se tivesse dito, mesmo, aquilo, era bem capaz de me repetir tudo na cara, mesmo que eu não lhe pedisse explicação nenhuma, foi com as maiores reservas do mundo que me aproximei dele.

 

Aliás, estou sendo impreciso: não me aproximei dele, não. Evitava-o, com medo de ouvir um insulto que esquentasse minha cabeça e me fizesse responder num impulso, obrigando-me a sair do respeito que sua figura me impunha.

 

Um dia, porém, ainda em 1967, tive que distribuir entre os membros do Conselho Federal de Cultura um convite qualquer – tarefa da qual tinham me encarregado no Nordeste – e, aí, é claro, por um dever elementar de cortesia, não podia excluir o Dr. Corção. Quando me aproximei e entreguei o convite dele – o que fiz com o maior formalismo do mundo – qual não foi a minha surpresa quando senti Gustavo Corção segurar minha mão direita com as duas mãos direitas dele e começar a me falar com a grata alegria de quem me esperava há muito tempo. Lembrava-se perfeitamente de mim e de minha mulher, por quem perguntou com uma simpatia enorme. Perguntou se tínhamos filhos, quantos eram e quis saber seus nomes. Lembrou nosso encontro de 1957 e me tratou, enfim, não digo como um pai, mas como um professor que, após muito tempo, revê um aluno muito estimado.

 

Fiquei mais do que surpreso: fiquei comovido. Não sei se foi porque perdi meu pai aos três anos de idade, mas ainda hoje, aos 44 anos, sou sensível como um adolescente ao afeto das pessoas mais velhas do que eu. Agora, ali, além disso, eu descobria que aquela idéia, que eu tinha formado de Gustavo Corção, através de pessoas hostis a ele, era inteiramente falsa. Ele era um homem boníssimo, talvez impulsivo e arrebatado nos seus impulsos, mas de uma bondade que transparece, à primeira aproximação, nos seus olhos pequenos, azuis, vivos, risonhos inteligentes e que – por mais estranho que isso possa parecer a quem não o conhece ou não gosta dele, de longe – são olhos de menino. Ele não tem nada de intratável: apenas é um homem de princípios, corajoso e inflexível quando sustenta os princípios que julga certos. Mas com as pessoas, não. Se ele descobre que temos outras idéias mas, ao mesmo tempo, descobre que sustentamos essas idéias não por má-fé ou covardia, e sim por convicções – que podem estar erradas, mas são leais e firmes como as dele – discorda, mas respeita-nos e não nos nega a sua amizade.

 

Digo isso por experiência própria. Creio, por exemplo, que nós nos separamos bastante a respeito do modo de encarar a Cultura brasileira: ele é mais universalista, eu sou mais a favor de uma Cultura nacional, da busca de uma originalidade brasileira, baseada na Cultura ibérica e nas nossas raízes populares castanhas. Isto é, se fossemos russos do século XIX, Gustavo Corção talvez fosse “ocidentalista” e eu “eslavófilo”. Apesar disso, porém, não ignorando ele essas diferenças, já recebi vários convites de Corção para pronunciar, na sede de sua revista PERMANÊNCIA, uma conferência exatamente sobre aquilo que, para mim, é o fulcro literário da cultura realmente brasileira – o Romanceiro popular nordestino.

 

Pergunto-me, então, de onde virá a simpatia mútua que passamos a experimentar de 1967 para cá, o afeto verdadeiro que hoje sinto por ele e sei que ele sente por mim, quase como se fossemos da mesma família. Talvez exista esse afeto por ele pressentir subconscientemente que, para mim, esses problemas de política, de idéias, de literaturas e ideologias são secundários, não têm, mesmo, importância. Para mim, o importante é o caráter, a bondade das pessoas, e não suas idéias e opiniões. Os políticos são danados para ser impiedosos e cruéis, os intelectuais para ser invejosos, intrigantes e complicados. Para mim, portanto, o importante é que Gustavo Corção é um homem de bem e um homem de coração bom, um santo varão, como se dizia antigamente e digo eu, ainda.

 

Outro motivo para a nossa amizade talvez resida no fato de que (sem que ele saiba, porque nunca eu lhe disse isso) as diferenças existentes entre nós talvez sejam menores do que parecem à primeira vista. Em política, eu sou monarquista e acho que ele é republicano – mas, como disse, não creio que isso tenha muita importância, nem para mim, nem para ele. Não sou marxista, nem acho que possamos colaborar com os marxistas, porque os próprios marxistas são sectários, duros, impiedosos, e só fazem se aproveitar dos moços, dos ingênuos e idealistas, para depois traí-los e esmaga-los. Como Gustavo Corção, eu sou religioso, se bem que, como já disse uma vez, comparado com um homem de fé forte como ele, ou de fé pura como Dom Marcos Barbosa, eu não passe de um cego, meio doido e contraditório, angustiado e dilacerado, um cego que se debate contra o escuro na estrada do mundo, fazendo perguntas e às vezes gritando, rindo e cantando para Deus.

 

Não simpatizo, porém, com as posições daqueles que, intimidados pelo falso racionalismo, pelo falso cientificismo e pelo falso progressismo dos séculos XIX e XX, pretendem desterrar o enigma, da religião, e as sagrações, dos rituais religiosos. As insígnias exteriores são belas e necessárias: parece que faz parte da natureza humana o desejo de ver assinalados em formas exteriores nítidas e coloridas, visíveis e recortadas, os impulsos espirituais, interiores e elementares da alma. Aliás, o Povo é assim também, como eu, e está sentindo falta, na Igreja, de todas essas coisas que estão desaparecendo por influência de um certo “quakerismo” puritano e estranho a nós, fanático e iconoclasta.

 

Mas, como eu vinha dizendo, não podem ser esses os motivos do afeto que me liga a Gustavo Corção, porque só quando for ler estas palavras que estou escrevendo agora é que ele vai saber destas minhas opiniões, que lhe escondi, confesso, para testa-lo, para saber como ele era mesmo, por dentro, ardil de que não me arrependi nem me arrependo. O afeto carinhosos com que ele me trata é natural, é dele, de sua natureza, vem do seu próprio coração bondoso de homem reto, de homem de bem. Para provar isso e para concluir estas palavras desalinhavadas, escritas em cima da perna, somente para não faltar às homenagens que serão prestadas a ele, conto quatro gestos de Corção a meu respeito.

 

Uma vez, pediu-me ele que lhe trouxesse um retrato da minha família. Queria nos ver em nosso ambiente, porque, pelo que adivinhava, “aquilo lhe faria bem”. De outra vez, dedicando-me um exemplar de um dos seus livros – e notando minhas preocupações com o destino e os caminhos da América Latina – procurou sossegar meu coração, lembrando-me que Santa Rosa de Lima era peruana, e estaria vendo tudo, lá de cima, muito melhor do que nós. Em terceiro lugar, noutra dedicatória, garantia-me seu “fraternal afeto” e indagava, ele mesmo imediatamente, “ou será parternal?”.

 

Finalmente o quarto gesto, o que mais me tocou. Gustavo Corção não sabe que seus amigos com Gladstone Chaves de Melo à frente, estão lhe preparando estas homenagens. Eu garanti manter o segredo, mas queria saber a data exata do aniversário, para ver se ainda dava tempo de escrever, no Recife, alguma coisa mais pensada e trabalhada. Não deu. Mas quando lhe fiz a pergunta, ele mesmo disse sorrindo: “É no dia 17 de dezembro. Não estará havendo sessão do Conselho, de modo que vocês não vão poder celebrar nada, o que eu acho muito bom. Também não quero carta nem telegrama. O que eu quero, Ariano, é que, no dia 17, você, sua mulher e seus filhos se lembrem de mim. Juntem-se e rezem um pouco por mim, neste meu aniversário, que provavelmente será o último”.

 

Fiquei com um nó na garganta. E se estou aqui, agora, dizendo tudo isto, é sobretudo para dizer a Gustavo Corção que não acredito de jeito nenhum, que este seja seu último aniversário. E para garantir-lhe que, no dia 17, eu, Zélia, Joaquim, Maria, Manuel, Isabel, Mariana e Ana estaremos juntos, um momento, pedindo a Deus por este grande brasileiro e homem de bem que se chama Gustavo Corção.  

Rio, 11-XI-71. 

 

Permanência Nov. 1971 – Edição Comemorativa do 75° aniversário de Gustavo Corção

 

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