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A vida familiar de pequeno-burgueses

O jornal “O Catolicismo” teve idéia feliz de nos lembrar, arrostando as antipatias de esquerdistas, que o ideal cristão (católico) de vida na terra deveria eleger um modo de viver modesto, pacífico, um ambiente de recado e calma felicidade, como se pode, às vezes, descobrir na vida familiar dos simples. Procuraram discernir este modo de viver nos quadros de vida doméstica da Holanda antiga que Vermeer pintou tomados como exemplo visual. E em três desses quadros, assim escolhidos e publicados como exemplos, mostram-nos a paz risonha, o ambiente acolhedor, cheio de sinais de simplicidade e recolhimento, de naturalidade, calma e aconchego, como diz o jornal que citamos. Eis a descrição que fazem de um dos quadros:

“Uma jovem detém-se em seus afazeres domésticos para observar, por um momento, a rua. Sua fisionomia é distendida e calma, o gesto é natural, a cena corriqueira. Uma das mãos segura levemente a alça de um lavabo, enquanto a outra mantém entreaberta a folha da janela. A parede é grossa e pintada de uma só cor como numa residência modesta e comum da pequena burguesia flamenga da época. Dá idéia de força, estabilidade, simplicidade. A sala é como um mundo fechado, dentro da qual a pessoa se sente numa atmosfera moral específica inteiramente diversa da rua. Abre-se para ela a janela em vitral, mas o mundo externo parece estar, psicologicamente, a mil léguas da personagem. Ambiente fechado, sim. Porém não ambiente vazio e sem vida. Nele penetram várias claridades de espécies diversas. Da janela vem uma luz que banha o semblante da moça se difunde pelas paredes e pelos objetos, refletindo tons variados e se transforma em suave penumbra junto à mesa...”.
 
Essa mesma idéia — um pouco surpreendente para o homem moderno — nos vem da descoberta que grandes historiadores europeus já fizeram — um Fustel de Coulanges, por exemplo — a de que os povos medievais, vivendo uma vida para nós frugal e simples, foram felizes, da relativa felicidade que é possível neste mundo e conheceram os melhores governos que a Europa já viu até hoje — como o do rei S. Luís — em que populações alegres amavam seu rei justiceiro e santo e viviam em paz. Também João Ameal, depois de apontar as qualidades excepcionais de rei de Dom Dinis, mostra-o trovador e trovadores com ele inúmeros fidalgos de sua corte, nomes todos a encherem os Cancioneiros portugueses. E acrescenta: “Trova o rei. Quer dizer que Portugal é feliz, próspero, vive em paz e unidade: que a terra produz com abundancia...; que o dever foi cumprido...” e mais adiante: “Belo momento este em que, sobre uma pátria venturosa, uma corte de trovadores canta”.
 
Lembramo-nos do insistente tom de desdém e escárnio que os intelectuais afinados com o espírito do mundo, sobretudo os de índole esquerdista, sempre reservaram para o ideal de vida “pequeno-burgueses”. É verdade que seu desprezo incidia sobre uma imagem diferente de homem. O pequeno-burguês de que zombam é, ao menos literariamente, o burguês modesto que ambiciona a vida do rico e poderoso gozador, que pouco se importa com os que sofrem ao seu lado. Esta última é a imagem estereotipada que os de esquerda construíram para contra ela arremeterem, ao menos na aparência. O pequeno-burguês, em suma, é uma espécie de Madame Bovary que sonha com gozos terrenos.
 
Ora, o que é para nós, católicos, um ideal de vida digno de amor e defesa, é uma vida familiar que se distancia da miséria insuportável mas sobretudo da ambição de mais riqueza e influência. Nosso ideal inclui uma nota de renúncia e até de preferência pela modéstia e obscuridade. Uma aceitação dos limites naturais de nossa condição e até do que de Cruz tais limites encerrem. Enfim, uma libertação do espírito quanto à ambição e gozos terrenos para vôos mais altos da alma à procura de espiritualizar seus deleites e mais do que isso, buscando tomar, todos os dias, a Cruz que nos coube para seguir Aquele que é o Caminho, Verdade e Vida.
 
A alma que não se pode desvencilhar de cuidados terrenos, ou porque o estado insuportável de miséria não lhe permite outra atenção ou porque ela não quer senão sonhar com riquezas e prazeres, esta, é evidente, não poderá ter os vagares e o ócio que permitem alcançar a Sabedoria, como se lê no Eclesiástico (38, 25).
 
Mas os de esquerda, ao vomitarem o burguês e seu imitador pequeno-burguês, querem lá saber disso tudo? Pouco se lhes dá que renunciemos aos desejos e ambições de gozos e riquezas do tempo para alçarmo-nos ao sabor das coisas do céu. Isto é, cremos nós, evidente. Por que é, então, que tanta questão fazem (ou faziam) de vilipendiar o burguês e zombar do pequeno-burguês?
 
Não há de ser o fato de que tais figuras estereotipadas gozam a vida. Não têm, os de esquerda, em princípio, razão alguma para desprezar os que assim agem, além do fato de que eles também não fazem outra coisa quando podem (é só olhar como vivem e em torno de que requintes, os intelectuais esquerdistas e os filhinhos de mamãe que vão de automóvel à P.U.C. fazer assembléias contra o governo ou a favor de todas as iniciativas de esquerda). Temos ainda a evidência de que a mentalidade que ostentam não comporta uma recusa aos gozos da terra em favor da procura dos gozos celestes. Mas o que é então? Será, segundo eles mesmos apregoam, o puro amor aos pobres, isto é, uma repulsa ao burguês, não porque goze a vida, mas porque o faz sem que todos os outros gozem do mesmo modo? Terão, assim, amor aos pobres sem terem amor a Deus. Querem apenas, para os pobres, o que querem para si mesmos. O que pode ser verdade e também pode ser que não seja, mas, de qualquer modo, é muito mais um amor de si mesmos que um amor dos outros. Sim, porque muito mais se horrorizam com a idéia de sofrerem a carência que vêem outros sofrer, do que lhes acrescenta algo o fato de que os demais gozam o que eles mesmos gozam.
 
Convém insistir um pouco nas diferenças de posição. Nós afligimo-nos pelo fato de que uma família, em estado de miséria, não tenha de tal modo o necessário que sua vida espiritual não se possa desenvolver. Na verdade, uma miséria a esse ponto não é tão comum como se pensa e quando existe decorre muito mais de circunstâncias específicas, do que de condições sociológicas ou econômicas. Mas se a encontramos diante de nós, sabemos que temos o dever de socorrê-la. Nós, porém, isto é, os que vivem parcamente, com limitações às vezes acentuadas, alcancem os gozos da vida mundana que aos homens de nosso tempo, muitas vezes, parecem condições indispensáveis de uma vida normal. Preocupa-nos, isso sim, que não se empenhem na busca do “único necessário”. Enquanto que os de esquerda e seus afluentes modernos, estes dizem-nos que se preocupam com os pobres, “fazem opção pelos pobres”, segundo sua fórmula mais recente, e nos censuram porque não os seguimos. Desafiamos a quem nos aponte um só exemplo de clamor de “opção pelos pobres” em que haja uma única menção de zelo por condições ou conveniência de estado para a busca da vida interior. O mínimo que se pode dizer então é que se preocupam apenas com a vida farta e distraída das multidões, qualquer que seja o rumo de sua espiritualidade. Esta pode ser positiva, negativa, embrutecida pelos prazeres e diversões ou cega de ódio e ambição de poder. Ou o ódio e ambição de poder não mais seduzem o coração dos homens, ainda que fartos? Ou o ódio entre os homens decorre sempre, como dizem os afluentes dos intelectuais de esquerda, do fato de que “o baixo poder aquisitivo de uns e o luxo de outros são os responsáveis pelo germe de conflito e violência em que vivemos”, como repetiu há pouco o Bispo-auxiliar Dom Afonso Gregory, aliás repetindo o que vivem dizendo os Arns e Helderes? Cremos ser evidente, para tragédia da humanidade, que os atuais bispos, em sua imensa maioria, não têm mais nenhuma preocupação com a vida religiosa, menos ainda com a busca da perfeição interior, dos infelicíssimos pobres, pelos quais dizem ter feito opção.
 
E de que lhes valerá o cuidado — aparente ou real — com os pobres se não o fazem pela vida interior destes, para ajudá-los a buscar o “único necessário”? A despreocupação com a dimensão sobrenatural do amor aos pobres é que levou São Paulo a dizer: “E ainda que distribuísse todos os meus bens no sustento dos pobres... se não tiver caridade, nada me aproveita” (I Cor. 13, 3) isto é, sustentar os pobres com meus bens por razões meramente sentimentais ou por uma espécie de solidariedade apenas humana, isto não vale nada, e nem para mim nem para eles. Porque é por amar a Deus que devo amar os pobres e não amá-los diretamente de modo natural; do contrário, também os pobres estarão sendo mal amados. Para que viveriam eles, fartos e distraídos? Supondo-se, o que é pouco provável, que seria eficiente no fartá-los, o universo econômico, político e social que os bispos de esquerda, que já dão mostra de excepcional incompetência e inacreditável pequenez intelectual, querem criar. Não haverá mais de um e profundo sentido na riqueza das implicações que os dois milagres da multiplicação dos pães encerra? Jesus, por duas vezes, alimenta milhares de pessoas até ficarem fartas com alguns poucos pedaços de pão. Quando os homens viram o que Ele fizera, buscaram-no para o proclamarem rei. Mas Ele não quis... Não é assim, não por esse caminho.
 
Para terminar e para sermos completos, lembremo-nos também que o desdém esquerdista pelos pequeno-burgueses inclui uma nota de intelectualidade. Desprezam o burguês que não tem cultura, isto é, a cultura dos intelectuais de esquerda (que, aliás, não é lá tão grande como insinuam). Ora, de nossa parte, isso de cultura é um bem relativo que pode ser compatível com o nível de inteligência e com o papel que nos cabe exercer mas não é um valor superior à modesta sabedoria do senso comum católico, muitas vezes finamente enriquecido pela luz da fé, que faz do pequeno-burguês católico, capaz de renúncias e vida interior, uma pessoa muito mais estimável, uma alma mais bela e enriquecida do que a de qualquer intelectual que nem sequer suspeita nada da grandeza e da beleza do mundo sobrenatural. Faz parte da simplicidade da vida e da simplicidade da alma do nosso pequeno-burguês, protótipo de vida familiar adequada à vida espiritual católica, a mansidão e a humildade que os diferencia tão fortemente dos “intelectuais”. Podemos sorrir discretamente do desprezo de tais intelectuais, porque sabemos — ouvimos e entendemos — o que Jesus disse: “Graças vos dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e aos prudentes e as revelastes aos pequeninos. Assim é, ó Pai, porque assim foi do Vosso agrado” (Mateus, 11, 25). Aqui mundanos e homens bem sucedidos no mundo, e onde está escrito: “pequeninos”, lemos nós, os homens de vida modesta que, como acima procuramos mostrar, têm melhores chances do que quaisquer outros de buscar o Reino dos céus.
 
Editorial Permanência, n° 138-139, Maio-Junho de 1980.

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