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Desenvolvimentistas e descontentes da civilização

Sabemos que cada virtude ocupa uma posição entre dois vícios opostos. O virtus in medio expressa uma distinção qualitativa e não uma média quantitativa entre esses dois afastamentos. Compara-se a virtude à crista de uma elevação, da qual à direita e à esquerda, representando os vícios, divergentes descem as vertentes. Não realiza, por exemplo, a coragem, uma homogênea média entre a temeridade e a covardia.

Ensina-nos a Teologia haver também da virtude da esperança dois desvios: um, a presunção, pela qual alguém admite salvar-se sem merecimento, ou, o que equivale, pelos méritos dos próprio esforços, sem o auxílio da graça; outro, o desespero, que faz supor definitivamente perdida a possibilidade da beatífica visão de Deus.
 
Pergunta Santo Tomás (S.T. 2.2, Q 12, A 17) Ultrum spes praecedit fides, e na resposta conclui: Unde manifestam est quod fides praecedit spem.
 
Negada, pois, a fé, não se sustenta a esperança. Ao homem infiel resta tentar construir uma beatitude por si próprio fabricada, ou sentir-se definitivamente destinado a ser frustrado em uma civilização repressiva e em um universo absurdo. A primeira atitude corresponde à presunção; a segunda, ao desespero. 
 
Desejamos procurar a gênese e a identidade das tendências da nossa cultura que representam essas duas atitudes. Convém, parece-nos, buscar a origem da desesperança do angustiado homem de hoje em uma infidelidade de ontem.
 
Numa cultura renascentista voltada para a valorização do homem exterior e marcada pelo nominalismo, que produziu a ruptura entre a inteligência e o ser, condenando a inteligência a vagar nas trevas do idealismo imanentista ou nas do empirismo sensualista, processou-se a apostasia de Lutero, contando, portanto, desde sua origem, com todo um condicionamento favorável ao sucesso de sua malignidade.  
 
Essa infidelidade é que quebrou a unidade da fé da civilização cristã e que passou a favorecer o aparecimento e a propagação de todas as novas heresias. Nela já estava contido em potencialidade o futuro monstro de nossos dias: o ateísmo militante.
 
Forneceu o protestantismo o clima onde medraram os iluminismos inglês, francês e alemão. As conseqüências deles não se fizeram esperar. A Revolução Francesa será um delírio febril resultante do contágio do racionalismo dos enciclopedistas e do naturalismo rousseauniano. Com ela fica na moderna cultura inoculado o mito da revolução. A Aufklärung, preparada pela mentalidade protestante, terá em Hegel sua mais representativa figura. Com a dialética hegeliana, transferida por Feuerbach, do Espírito Absoluto para a matéria, constróem Marx e Engel seu materialismo histórico e dialético. O mito revolucionário insuflado pela revolução liberal e burguesa passará para a revolução socialista e proletária.
 
Após longo processo começado na primitiva gnose, a humana razão é erigida em supremo arbítrio. Não há mais um Criador nem um mundo que O reflita. Das criaturas despe-se o mistério. Cessa de haver objeto a contemplar. Há só um mundo a ser dominado. Como um singular revide do real, a enfatuada razão será humilhada, ao reduzir-se a mero instrumento de domínio e de organização desse mundo. Estabelece-se o primado da ação. O útil torna-se o supremo valor. O pragmatismo triunfa. O marxismo, que também é uma forma de pensamento pragmático, dirá que o filósofo tem como principal finalidade, não conhecer a verdade, mas, modificar o mundo. Com o desprezo pela inteligência especulativa e pela contemplação, rejeita também a moderna cultura o pensamento realístico. Voltada para a praxis, poderíamos supor anti-idealista a moderna inteligência. Pelo contrário, não submissa ao real, porque recusou a contemplação do ser, terá ela, no seu afã de dominar o mundo, de aferir-se apenas pelos seus critérios subjetivos. O pensamento moderno realizará assim o conúbio idealismo-pragmatismo. Modificar o mundo? Sim; mas submetendo-o a esquemas pré-fabricados na humana subjetividade. O útil, supremo valor, são os supostos instrumentos adaptáveis ao processo de conformar o real a esses esquemas.
 
Vários são os modernos modelos pragmático-idealistas que pretendem impor-se à realidade. Não passa de um deles o materialismo histórico e dialético que quer, através da revolução e da ditadura do proletariado, construir uma sociedade sem classes e sem alienação, e realizar a não-conflitiva relação homem-natureza. Constatamos, assim, que o mundo do racionalismo é também o mundo do pensamento utópico.
 
O mais importante campo de estudo torna-se o das ciências da natureza, e o conhecimento delas adquirido será principalmente ordenado às realizações da técnica. Poderá, assim, ser construído o mundo do homem. O mundo que fornecerá a humana bem-aventurança. Nos países “capitalistas” será ela constituída pela abundância, desfrutada ao menos por alguns; nos países socialistas, ficará reduzida ao possível entusiasmo dos tolos diante dos índices sócio-econômicos fornecidos pelas estatísticas e pelos relatórios oficiais.
 
Ambos, entretanto, liberalismo e socialismo admitem ser a humana felicidade realizável apenas pela casualidade material e pelo esforço do homem.  
 
Os mitos do progresso, da eficiência, da técnica e da produtividade, foram em nossos dias condensados no chamado desenvolvimentismo.  
 
O desenvolvimentismo é inseparável de certa crendice em um imanentismo cósmico, revelado pela natureza e pela história, cujo processo evolutivo é suposto ser acelerável pela revolução, pela técnica ou pelo trabalho.  
 
Pretendem muitos que o desenvolvimentismo contenha as virtualidades de promover a paz universal (este parece ter sido o pensamento dos oradores da inauguração da Expo-70 e de Tóquio), de suprimir as dissenções no corpo político, de estabelecer a justiça social, e até de levar os jovens desencantados e contestatários à normalidade. O próprio conceito de bem-comum é freqüentemente substituído pelo do desenvolvimento.  
 
Apresenta-se o desenvolvimentismo como uma desesperança, mas representa realmente na moderna cultura o desvio que corresponde a uma salvação fornecida apenas pela ordem natural. Situa-se, pois, na vertente da presunção.
 
Ao caracterizarmos o desenvolvimentismo como uma desesperança, é fácil de entender que isto não implique em desprezo pelos frutos da técnica e do trabalho humano. À medida que estiverem eles a serviço do bem do homem, são bons. O desenvolvimentismo é a quebra da hierarquia que consiste em considerá-los como bens supremos. Essa quebra de hierarquia não se processa sem graves conseqüências.
 
Tivemos em nosso país, no período de governo do sr. Juscelino Kubitschek, um delírio desenvolvimentista. “Desenvolvimento”, a partir daí, tornou-se para nós palavra mágica, capaz de investir de privilégios especiais os empreendimentos feitos sob sua invocação. Muito temos sido vítimas da malignidade de um postulado dessa época: “educação para o desenvolvimento”. A duradoura e nefasta conseqüência dele foi ter transformado em todo o nosso ensino, do primário às chamadas universidades, em um processo de contínua e progressiva massificação. Prosperou também no período jusceliniano um instituto de doutrinação e conscientização, o ISEB. Na tarde em que foi inaugurado esse instituto, proclamaram seus fundadores que já estava desgastada a mensagem com que uns pescadores da Palestina tinham conseguido abalar o Império Romano e influir em um milênio e meio de civilização. Havia, portanto, disponibilidade para novos grupos realizarem tarefa de igual porte (muito humildes...). Apresentavam-se eles como arautos de uma nova esperança: possuíam o segredo de como promover o desenvolvimento. Habituados, porém, os intelectuais isebianos a pensar exclusivamente absorvidos pelo socialismo marxista: e, afinal, o ISEB constituiu apenas mais um órgão a serviço do proselitismo comunista e da subversão.
 
Cansados, também, alguns católicos, religiosos e leigos, da verticalidade da posição exigida pela esperança teologal, substituíram-na pelas posturas mais adequadas à colheita de frutos próximos e rasteiros. Uma igreja para a salvação e para a eternidade, um Reino que terá a sua plenitude só depois da história, começou a parecer-lhes muito remoto e algo alienado. Queriam uma Igreja engajada, cuja finalidade principal fosse promover a ordem social e participar eficientemente na criação e na distribuição de bens materiais.  
 
Uma Igreja que ficasse reduzida a um imenso Movimento de Economia e Humanismo e que se destinasse prioritariamente às tarefas do desenvolvimento.
 
As concessões e até a adesão de certos teólogos ao hegelianismo, que supõe ser o mundo a explicitação do processo dialético segundo o qual evolui o Espírito Absoluto, forneceu a justificativa intelectual, a racionalização, para os apóstatas e os semi-apóstatas passarem a viver sua nova esperança: buscar primeiro o desenvolvimento, que tudo mais será dado por acréscimo.  
 
Essa atitude, que faz prevalecer o profano sobre o sacral, pode ser bem caracterizada por uma fórmula fornecida pelo pe. Teilhard de Chardin: fé no mundo.  
 
Não tardam as conseqüências dessa opção. Muitas casas de ensino católicas, colégios e universidades, começam por restringir as aulas de religião a aulas de doutrina social da Igreja. Pouco a pouco serão essas sucessivamente substituídas por aulas de sociologia, de economia política, de marxismo, até atingirem o nível da pura pregação subversiva. A proposta primeiro socializar para depois cristianizar, apresentada inicialmente por interessantes padres freqüentadores de salões, será prosseguida pelos franceses subersivos de Belo Horizonte e pelos terroristas que ocuparam os conventos dominicanos. Não faltará um órgão de conscientização e doutrinação análogo ao ISEB: o ISPAC. E, a pior de todas as conseqüências será o aparecimento da hierarquia paralela, da máquina do governa da Igreja, que passará a funcionar colada à hierarquia legítima, manifestando-se por ela e por ela fazendo-se passar.
 
Em 1967, utilizando o nome da Cúria, no Rio de Janeiro foram programadas estranhas festividades. Semelhantes comemorações deveriam processar-se em outras cidades e países. Certa noite, são abertas as portas do Colégio Sion, onde também funcionava o ISPAC, para que lá, solenemente fosse homenageado o grande heresiarca dos tempos modernos, o patrono dos progressistas: Martinho Lutero. A infidelidade prolongada na desesperança enroscou-se sobre si mesma e encontrou sua origem.
 
O erro tem também sua dialética
 
O homem não pode satisfazer-se com um paraíso material. Não pode preencher seu anseio de felicidade a abundância usufruída nos países capitalistas e, menos ainda, a idealizada nos países socialistas. O progresso econômico, os prodigiosos recursos da técnica, a posse ou a promessa de posse de bens materiais cada vez em maior quantidade, tudo isso não corresponde às dimensões da alma humana. Acresce que, para produzir e manter esses bens, a sociedade tornou-se cada vez mais complexa e o estado cada vez mais poderoso. O paraíso da tecnologia e do desenvolvimento está condenado a ser habitado por pessoas em quem a disponibilidade diminui e a tristeza aumenta.  
 
Mas há também os que querem comportar-se de modo oposto aos desenvolvimentistas: os que desprezam a atual civilização. Esses chamaremos de descontentes da civilização, nome semelhante ao título de uma conferência de Freud.  
 
É visível que por todo o mundo se manifestam pelas mais diversas formas a angústia e o descontentamento. O otimismo desenvolvimentista, sempre apegado à causalidade material, tentará também por ela explicar esse fenômeno, e dirá que tudo isso é causado pela existência da bomba atômica, que gera um sentimento de insegurança na espécie humana. Ora, como é vã a esperança dos desenvolvimentistas! Não eram seus ídolos a técnica, o progresso e a eficiência? Como logo se contradizem quando vêm eles mesmos denunciar que o desenvolvimento, que elegeram como fim absoluto, forja as próprias armas de destruição da sociedade desenvolvimentista.
 
Mesmo que não ocorra a eventualidade de uma catástrofe atômica, a coerência obriga admitirmos que essa sociedade, entregue a seus próprios critérios, decorrentes da infidelidade e da falsa filosofia, ulcerada pela contínua ação corrosiva da violência e da anarquia, já segue condenada o caminho de sua autodestruição. Vã foi a presunção desenvolvimentista.  
 
Opondo-se à desesperança otimista do desenvolvimentismo existe a desesperança pessimista da vertente do desespero.  
 
Freud em sua conferência “a civilização e seus descontentes” diz: “Nas últimas gerações o homem fez extraordinários progressos no conhecimento das ciências naturais e nas aplicações técnicas delas, estabeleceu seu domínio sobre a natureza de modo nunca antes imaginado [...] Mas os homens estão começando a perceber que todo esse novo poder sobre o espaço e sobre o tempo, essa conquista das forças da natureza, essa realização da desejada idade do ouro, não aumentou o prazer que podem eles obter da vida e não os tem feito mais felizes”1.
 
Muitas contribuições trazidas por Freud são, também, agentes catalizadores da desesperança em nossa civilização. Uma delas é a teoria que afirma ser o homem dirigido principalmente pela atividade do inconsciente, pela dialética da libido e do instinto de morte (instinto, aliás, metafisicamente contraditório, pois um ser não pode possuir como elemento constitutivo um princípio de autodestruição), à qual estão submetidas as faculdades superiores da alma.  Além disso, a psicanálise visa curar neuroses e despreocupa-se com o plano moral. Ora, muito comportamento já estabelecido decorre de uma moralidade sustentada por motivações neuróticas; ao serem elas removidas, tudo se passa como se a norma moral fosse suprimida. Agrava-se o fato de a psicanálise ter sido introduzida em uma época em que a moral vivida se fundamentava menos na religião e na lei natural do que em um convencionalismo arbitrário, e colocava-se mais a serviço da realização do burguês bem sucedido do que da autêntica perfeição humana. Fácil é admitir-se que a adesão a essa moralidade estaria muito freqüentemente associada às motivações neuróticas. Constitui-se, assim, a psicanálise numa poderosa arma de ataque à moral social.  
 
Freud identificou a felicidade humana como a satisfação do princípio do prazer. Reconheceu, entretanto, que é ele constantemente limitado pelo princípio da realidade. O homem seria inevitavelmente sujeito a adversidades provindas de três origens: o mundo exterior, o próprio corpo humano e as relações com os outros homens. Apresentou ele alguns remédios: o isolamento, para defesa contra os males provindos da humana convivência; a associação com os outros membros da comunidade, para enfrentar as ameaças da natureza; e finalmente, considerando que todo sofrimento redunda em uma sensação, sugere ainda o controle das fontes internas de nossas sensações (tal como pretende o ioguismo), a sublimação (praticável por poucos), e a intoxicação por drogas.  
 
Uma grande colaboração à tendência ao humano desespero foi trazida por Sartre: “O existencialismo não é outra coisa senão o esforço para tirar todas as conseqüências de uma posição atéia coerente”2. Sua opção de considerar a liberdade um fim supremo já fora anteriormente expressa por um personagem de Dostoievski: “se Deus não existe tudo é permitido”. Essa será a liberdade sartriana. O homem escolhe e é autor de seu “projeto”. Não havendo naturezas, não há lei natural. Para qualquer escolha é ele igualmente livre. Deve ser apenas autêntico e responsável pelo seu “projeto”. Mas todos os “projetos” do homem são fadados ao “echec”. Seu supremo “projeto” é ser Deus, que sendo em si idéia contraditória (segundo Sartre), o levará também ao “echec”. Enfim, a morte será a expressão final do absurdo da vida humana. O homem é uma “paixão inútil”.  
 
A vertente da presunção é constituída pelos produtos do racionalismo, do idealismo imanentista, do estruturalismo, do pragmatismo, do liberalismo, do marxismo; é povoado por gente aparentemente muito diversa, desde os revolucionários bolchevistas  até os “self-made-men”, que percorre as trilhas da eficiência e do sucesso à procura de uma bem-aventurança neste mundo. A vertente do desespero é formada pelos produtos do irracionalismo, do sensualismo, do existencialismo, e até de influências do pessimismo religioso do oriente; habitam-na os descontentes da civilização, tristes, angustiados e nauseados personagens, que errantes e ressentidos descem os caminhos da negatividade. Nos hippies têm esses descontentes sua mais baixa representação.  
 
Como a vontade do homem tem de estar voltada para alguma coisa que se apresente sob a modalidade de um bem, nem a pura negatividade, nem o simples desespero podem ser vividos. Há de ser introduzido algum “ersatz” para a esperança. Assim é que a esses negadores contestatários será também oferecida, e Marcuse se encarrega de justificar a proposta, uma promessa salvífica: a completa felicidade pode ser obtida desde que o princípio do prazer fique livre de todas as suas repressões. É recomendada a busca de um estado de satisfação semelhante ao daquele em que a criancinha, que ainda não percebe, ou quase não percebe os limites entre o seu eu e o mundo externo, recebe da relação materna toda a gratificação dos instintos. Na fase da libido indefinida, fica a criança (o perverso polimorfo) em potencialidade para as diferentes perversões. A polarização da libido, o comportamento sexual definido, e tudo mais que é suposto restringir as possibilidades de gratificação libidinal, resultam de repressões, que têm como símbolo e principal agente a autoridade paterna. Marcuse propõe a volta ao indiferenciado, ao polimorfo, a um erotismo distribuído, satisfeito e perverso.  
 
Para enfrentar e vencer as inevitáveis adversidades a que está sujeito, deve o homem começar por se aperfeiçoar nas virtudes da inteligência e da vontade só assim, pelo conhecimento e pelo amor, se libertará. A ascese é um exercício a serviço dessa conquista. A proposta marcusiana representa uma anti-ascese ao inculcar o uso da instintividade desligada das “repressoras regulações racionais”, e expressa ainda, nesse apelo à regressividade, uma forma de desespero, manifestada pela recusa ao crescimento, à perfeição, à finalidade, e até, pode dizer-se, ao fato de ser o homem uma pessoa.  
 
Os hippies, que são os mais baixos exemplares da desesperança, representam a forma mais aproximada da bem-aventurança marcusiana. Em uma outra perspectiva, poderíamos dizer que neles também se realiza a última conseqüência do mito igualitarista: o homem é um animal como outro qualquer.
 
A verdade é que de maneira crescente vêm os hippies infestando todas as nações, principalmente as ocidentais3 As forças adversas à moral cristã dão-lhes ampla cobertura publicitária. Ao estilo da vida hippy associam-se o erotismo e os estupefacientes. É claro que o comunismo favorece nos países “capitalistas” os hippies e, também, a pornografia. Essa deixou de ser um velho divertimento de mau gosto. Agora, faz ela proselitismo e apresenta-se como salvífica, e, ao mesmo tempo, é tecnicamente utilizada pelos comunistas como instrumento de subversão da sociedade democrática. Trata-se da nova pornografia sinistramente séria. Exemplificam-na as esquerdas pornográficas e “laporcherie” de Pasolini. Um personagem dos “Possessos” de Dostoievski já dissera que a vodka era tão eficiente no preparo da subversão social, que quase dispensava a ação dos revolucionários. Hoje, em vez de vodka, é servida a pornografia.  
 
Preocupados, muitos há que buscam uma solução para o homem fora dos caminhos que convergem para a sociedade tecnocrática. Neste caso está o grande romancista Hermann Hesse. Muito influenciado pela sabedoria oriental, procura ele um caminho de salvação, mas parece que não consegue sair dos atalhos da desesperança. No fim de seu livro “O Lobo da Estepe”, declara: “Mas eu me sentiria contente se algum desses leitores pudesse perceber que a história do Lobo da Estepe, embora retrate enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas ao contrário, à redenção”4.
 
Qual é essa redenção?
 
— “Prazeirosamente saboreei o doce e pesado fumo do cigarro, senti-me exausto e disposto a dormir um ano inteiro. [...] tinha a intenção de iniciar de novo o jogo, de voltar a estremecer diante de seus destinos [das figurinhas do jogo da vida], de voltar a percorrer o inferno de meu interior, não uma vez, mas sempre”.  
 
Assim finda uma experiência de tipo psicanalítico, associada a componentes eróticos e a uso de drogas, pela qual Harry, o intelectual solitário e quase suicida, atinge o reconhecimento de seus falsos eus. Essa mesma experiência fora assim iniciada: “Fumamos todos, atirando o corpo para trás sobre o respaldo de nossas cadeiras, fumamos lentamente o cigarro, cujo fumo era espesso como o incenso, e bebemos um pequeno sorvo de líquido agridoce, desconhecido e estranho, cujo efeito logo nos reanimou como se estivéssemos cheios de gás e tivéssemos perdido a gravidade”.
 
Em “Narciso e Goldmund”, o herói do romance abandona a vida religiosa pela vida de vagabundo. Empreende Goldmund uma tentativa de volta ao princípio telúrico, à natureza, à Mãe. Depois de muitas aventuras morre no mosteiro de onde partira. Na hora da morte dirá ao abade: “Você se refere à paz com Deus? Não quero paz com Ele. Ele fez um mundo mal feito”5. Parece-nos impossível, ao ler esse livro, evitar a evocação do contraste desse vagabundo imaginário (gerado depois de Hegel e de Freud, e colocado na Idade Média) com um real e autêntico vagabundo medieval que sempre viveu em paz com Deus e cantou no Hino ao Sol o louvor ao Criador e à bondade de Sua criação. Esse contraste é uma imagem da divergência entre os caminhos da esperança e os do desespero.
 
Procuramos através de algumas notas mais marcantes caracterizar as atitudes dos desenvolvimentistas e dos descontentes da civilização. Citamos alguns autores mais notáveis para salientar como o pensamento deles pôde ter exercido cultural influência no sentido de uma ou de outra atitude. Julgamos que a moderna civilização está cada vez mais inclinada para a vertente que identificamos como a dos descontentes e desesperados. Alguns governos procuram até incentivar o desenvolvimentismo como remédio aos males do chamado “gap” das gerações e aos modernos desvarios, que com flagrante injustiça são imputados apenas aos jovens. Assim, opõem esses governos a “salvação desenvolvimentista” à “salvação hippy”, pretendendo ainda, por acréscimo, com isso também combater o comunismo. Essa estratégia parece-nos fadada ao fracasso.
 
O mito revolucionário, que já se transferira da revolução liberal burguesa laicisante para a revolução socialista marxista proletária, passou agora para a chamada contestação, continuando, porém, associado a um desejo de destruir, de aniquilar, conatural a uma agressividade infantil persistente em psiquismos imaturos. Admite a revolução, entretanto, a hipótese de uma imaginária nova ordem. Os antigos revolucionários moviam-se por alguma utopia. Nisto distingue-se a contestação: tudo demolir sem nada prometer em troca.
 
Atitude contestatória habitualmente se apresenta como uma superficial ruptura com o consuetudinário. Os inteligentíssimos e avançadíssimos contestadores têm gosto pelo extravagante e pelo que escandaliza. Manifestam, por exemplo, especial inclinação pelo travesti e pelo nu (o que facilmente os enquadra em um caso de infantil regressão). Se a revolução, entretanto, pretende substituir verdades, mudar valores, alterar normas morais; a contestação simplesmente nega que tenham algum sentido, verdade, bem ou moralidade.
 
Para ilustrar como se preparam jovens para servir a essa última etapa do mito revolucionário, podemos utilizar um repugnante folheto intitulado “Um lugar ao Sol” (cujo responsável pode ser a CNBB, o ISPAC, o Sono-vídeo ou o Padre Paiva). Na página dois há um cabeçalho em maiúsculas: “As etiquetas não servem mais”. Logo abaixo dele, dentro de umas amebas estão escritas estas palavras: “certo”, “não”, “sim”, “bom”, “longe”, “impossível”, e numa ameba central e eletrizada, “o único melhor”. A ficha de exercícios número um do colégio católico propõe: “As etiquetas não servem mais. Como você interpreta essa afirmação? Prove-a [o grifo é nosso] com algum fato”6.
 
A contestação como a pornografia é incentivada pelos comunistas que as utilizam como instrumento de agressão aos países democráticos. Assim é que as manifestações contestatórias, tipo “chienlit”, contam com uma clientela eclética. As nossas tristes passeatas receberam a contribuição e a participação de comunistas, de padres apóstatas e semi-apóstatas, de freiras desorientadas, de organizações eclesiásticas da hierarquia paralela, de moços desencantados vivendo mais ou menos a moral hippy, e, é claro, de muitos outros tolos sem rótulo adicional.
 
Não nos iludamos que seja a contestação, pacífica e inofensiva, nem que o “amor” hippy (como outrora o cátaro) não esteja pronto a facilmente transformar-se em explosões de violência homicida. O caso de Sharon Tate exemplifica.
 
Hermann Hesse parece ter antevisto a fúria gratuita do ataque desses desesperados à civilização tecnológica.  
 
“Por toda a parte havia mortos e estropiados, por toda a parte viam-se automóveis batidos, amassados e meio incendiados, e sobre aquela confusão selvagem planavam aviões que eram atacados dos telhados e das janelas das casas por rifles e metralhadoras. Em todos os muros havia cartazes selvagens, magníficos, instigadores, pedindo à nação, em letras gigantescas que ardiam como tochas, que se colocasse afinal ao lado dos homens na guerra contra as máquinas, que matasse afinal os ricos, os obesos, os bem vestidos, os perfumados, que com a ajuda das máquinas espremiam a gordura dos demais, e destruíssem os automóveis luxuosos, estrepitoses, malcheirosos, que incendiasse afinal as fábricas e despovoasse e desalojasse um pouco a terra profanada [...]”7.
 
“Mas, ora viva, Gustav! – exclamei feliz – Bons olhos o vejam! Que é feito de você?”.
 
Sorriu contrariado, exatamente como quando era menino.
 
— Vamos acabar com estas perguntas idiotas! Sou professor de teologia, se é o que desejas saber! Mas por sorte agora não se trata de teologia e sim de guerra, meu filho. Vem comigo!
 
Gustav abateu com um tiro o chofer de um pequeno caminhão que vinha resfolegando em nosso rumo, saltou como um macaco à boléia, parou o veículo e me deixou subir a seu lado, após o que passamos a correr como demônios por entre os disparos de carabina e os carros capotados, até deixarmos para trás a cidade e os subúrbios.
 
— Você está do lado dos fabricantes? – perguntei a meu amigo.         
                                     
— Isto é uma questão de preferência que depois veremos. Mas não, espera, sou de opinião que devemos escolher o outro lado, embora no fundo seja tudo a mesma coisa. Sou teólogo, e meu antecessor Lutero ajudou em sua época aos príncipes e aos poderosos contra os camponeses, e desejo corrigir isso um pouco. Este carro miserável, não sei se agüentará mais alguns quilômetros”.
 
— Atira no Chofer! – ordenou Gustav, no momento em que o carro se aproximava da árvore.
 
Apontei para o boné azul do motorista e disparei. O homem caiu sobre o volante, o carro perdeu a direção, chocou-se contra a muralha, deu uma guinada, voltou-se furioso como um besouro contra o parapeito da estrada, mergulhou e espatifou-se lá embaixo no abismo com um ruído surdo.
 
— Acertaste!! — riu Gustav — O próximo será meu”.
 
— Não podemos permanecer aqui por mais tempo — soluçou Dora. — Temos de descer. Com certeza encontraremos nos carros algo que comer. Vocês não estão com fome, seus bolchevistas?
 
Lá ao longe, na cidade em chamas, os sinos começaram a tocar angustiosamente. Iniciamos a descida. Enquanto ajudava Dora a galgar o parapeito, beijei-lhe os joelhos. Ela riu sonoramente, mas aí as pranchas cederam e tombamos juntos no vazio”...
 
Diante de tantas dificuldades e ameaças que mais até parece avolumarem-se na vertente do desespero do que no da presunção, têm os homens que procurar a luz e o sal.
 
Mas se a luz não ilumina e se o sal não salga?
 
Um arcebispo, até então fiel devoto do desenvolvimentismo, já se definiu: “Como não compreender os hippies, seus “slogans”, seu lirismo, seus excessos psicodélicos e sua profunda amargura?”.
 
A hierarquia paralela, atentíssima às fábulas e fidelíssima ao mundo e às “revelações” dele provindas, tem eventualmente favorecido o comunismo ou o hippieismo, mas seu efetivo trabalho é o de tentar destruir a Igreja. Sempre dá ela sua manifestação adesiva ao que se apresenta como prestigiada novidade. Faz-se ela ouvir, por exemplo, através de um outro repugnante folheto catequético, “O Mundo Novo”: “colocar a liberdade antes da autoridade. Cada hippie procura ser ele mesmo. Ser hippie é ser verdadeiro, e a única maneira de ser verdadeiro é desenvolver sua própria personalidade, sendo o único juiz daquilo que nos convém. Não creio nos deveres impostos. Só se tem os deveres e obrigações que se criou. Cada um tem sua felicidade, cada um sua verdade, e cada um a descobre. É preciso ser senhor do próprio destino”.
 
Trata-se de uma resumida, mas cabal, apologia à moral existencialista, à moral hippie, à moral da situação. Recordem-se os pastores, obrigados por dever a guardar o rebanho contra os lobos, que além da evidência de serem o relativismo doutrinário e a moral de situação incompatíveis com a fé e com a moral cristãs, foram explicitamente condenados pelo Papa Pio XII8, disto certamente mofam os progressistas.
 
Tentamos caracterizar alguns aspectos da moderna desesperança, que em alternâncias de otimismo e de pessimismo assola a nossa cultura. Pretendemos ter assinalado as principais paisagens das vertentes da presunção e do desespero, apoiadas ambas em comum base: o desconhecimento ou o desprezo pelo fato de que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade fez-se homem, habitou entre nós, e nos redimiu.
 
Agora voltemo-nos para a cristã, onde, elevada e orientada para o alto está a esperança cristã.
 
As conquistas do homem no conhecimento e no domínio da natureza, e o decorrente progresso material, nada têm de condenáveis. Só deixam de ser coisas boas, quando postas a serviço do mal ou valorizadas de modo errado. Assim, se consideradas valor supremo, cessam logo de ficar submissas ao homem, para com ele voltarem-se agressivas e opressoras.
 
Por outro lado, já o Eclesiastes admitia a humana angústia, “pois não tem o homem debaixo do sol outro bem senão beber, comer e folgar”. Se não há esperança, entreguemo-nos à sensualidade (estaria justificado o hippiesmo). Mas o Eclesiastes se insere num conjunto de revelações onde há uma promessa. Os bem do homem não estão todos debaixo do sol. O mundo marcado pela culpa será redimido. “Oh! Feliz culpa que nos mereceu tal e tão grande Redentor” (Precônio Pascal).
 
São Pedro dirá que não há salvação senão em Jesus Cristo, “porque nenhum outro foi dado aos homens pelo qual devamos nós ser salvos”. São Paulo no Aerópago pregará o Cristo e o Cristo crucificado (pregarão o Cristo e o Cristo crucificado os catequistas preocupados com a “situação histórica completa” e enjoados do “cristianismo tradicional e rotineiro” e “anônimo”?)
 
Natal e Páscoa são duas fontes de nossa esperança. Cristo veio e virá. Cristo ressuscitou e nos ressuscitará.
 
Mas, a vida do cristão tem sempre algo de comum aos tempos do Advento e da Quaresma: penitência e preparação, espera e alegria.
 
“Gaudete in Domino semper, et iterum dico, gaudete”. (do Intróito do 3° domingo do Advento).
 
“Laetatus sum in his quae dicta sunt mihi: in domum Dominum ibimus. Aleluia”  (Ps. 121, I)
 
N’Ele está nossa alegria e nossa esperança.

  1. 1. Sigmund Freud — Civlization and its descontents — The Major Works of Sigmund Freud — Great Books of Western World — Vol. 54, pág. 777 — Encyclopedia Britannica.
  2. 2. J.P. Sartre: “L’Existencialisme est un humanisme”, Paris Nagel 1946, pr.
  3. 3. Na década de 50. Look Back, in Anger, de John Osborne, deu origem ao movimento “The angry young men”. Concomitantemente, surgiram nos EUA os Beatneak, ou Beats, em torno de Truman Capote e de Anatole Broyllard.
  4. 4. Hermann Hesse — O Lobo da Estepe — Civilização Brasileira.
  5. 5. Hermann Hesse — Narciso e Goldmund — Brasiliense pág. 244.
  6. 6. Sempre é deixada uma possibilidade de saída: não está dito “conceitos” mas “etiquetas”. Não é, entretanto, visível que, em nome de autenticidade específica de nosso mundo novo, ignorada por muitos séculos de cristianismo e só agora descoberta, as mentes dos jovens estão sendo subrepticiamente preparadas para admitir que os conceitos e os valores não passam de “etiquetas”?
  7. 7. Hermann Hesse — O Lobo da Estepe — Civilização Brasileira, pág. 160.
  8. 8. Encíclica Humani Generis (1950). Alocução ao Congresso Feminino de Juventude Católica (1952).
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