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Além das estrelas que ladram

 

Parece que os compêndios de lógica inculcam a ingênuos principiantes a sólida e errônea convicção da quase impossibilidade de serem cometidos certos sofismas.

A didática, querendo marcar com nitidez a falácia, torna-a por seus exemplos tão inaceitável, que conduz o incipiente estudante a supor com superior desdém: “Esse erro jamais cometerei”.
 
O primeiro tipo de sofisma apresentado pelos manuais é o de termo equívoco, geralmente assim exemplificado:
 
“Todo cão ladra;
Algum cão é constelação;
Logo, alguma constelação ladra.”
 
Substituídos, porém, a Constelação e o Cão por termos como Democracia, Povo, Justiça, Verdade, Amor e outros, e apresentado o argumento com algum disfarce, transforma-se com freqüência o sofisma em suporte para o sucesso dos ideólogos da política e da teologia.
 
Entre os outros possíveis termos quero destacar um: Religião.
 
Por quê?
 
Porque desconfio estarem o ecumenismo e a dita teologia da libertação comprometidos com o uso equívoco do termo Religião, com um sofisma de termo.
 
De sua etimologia diz-se haver três possibilidades: religare (estabelecer elo), religere (respeitar, reparar de modo especial), reeligere (reeleger).
 
Para Santa Catarina de Sena, é Cristo o Pontíficie que estabeleceu com seu sacrifício na Cruz a ponte entre Deus e o homem, refazendo o elo, a religação, a religião entre Deus e o homem decaído e redimido. A santa, mística e doutora, sem cuidar de etimologias, adota o conceito ligado à primeira possibilidade apresentada.
 
Corresponde, porém, o termo Religião a um só conceito? Parece-me que não. Distingo quatro, abandonando outros, menos disponíveis e equívocos, e proponho para eles a caracterização gráfica: “religião”, “Religião”, religião e Religião. Convém a seguir defini-los, ou melhor, fazê-los acompanhar de alguma explicação.
 
A “religião” há de ser definida como o relacionamento do homem com o fundamento de sua essência e existência. Esta relação compreende um conhecimento e reconhecimento, um abandono total existencial, e qualifica este abandono santo, numinoso, misterioso. Uma definição tão ampla abrange a descrição do fato religioso de todas as “Religiões” (ver artigo de H. R. Schlette, “Conceptos Fundamentales da la Teología”, in Teología —Século XX, Ediciones Cristandad, pág. 72; doravante Schelette).
 
A “religião” é “um sistema individual de crenças e de ações habituais que tem por objeto Deus” (André Lalande, Volabulaire Technique e Critique de La Philosophie, Presses Universitaires de France, 1962, pág. 72; doravante Lalande).
 
À “Religião” correspondem “as estruturas sociais e históricas do fenômeno religioso” (Schelette, pág. 85) ou “as instituições sociais caracterizadas pela existência de indivíduos unidos [...] pelos ritos, [...] pela crença, [...] pela relação com uma potência superior ao homem [...] (Lalande, pág. 916). Para o Pe. Terra S.J., é a cosmovisão “a imagem do universo, um princípio integrador nascido da idéia com que o homem concebe o absoluto. Quando o é como um Deus Pessoal, ou ao menos como deuses mais ou menos pessoais, a cosmovisão toma caráter religioso” (J. E. M. Terra, Origem das Religiões, Edições Loyola, 1985, pág. 3; doravante Terra). Nisso me recorda a proposição: “O que declara o homem de Deus, na realidade o afirma de si mesmo” (Feuerbach, The Science of Christianity, Hoper and Row, 1957, pág. 29).
 
As explicações, ou tentativas de definições, geralmente fazem diferença entre “religião”, conjunto de atitudes e atos individuais, e “Religião”, estrutura social e histórica abrangente e sistematizadora desses atos e atitudes.
 
Podem porém a “religião” e a “Religião”, segundo essas definições, reduzir-se a fenômenos da humana natureza, nela originários, correspondendo a atividades biológicas, psicológicas e sociais do homem, e até a suas secretas e profundas marcas, aberturas e aspirações, e ser estudadas pela ciência empírica ou apreendidas pela fenomenologia das religiões. “O fato religioso radica-se na própria natureza humana” (Terra, pág. 76).
 
As diferentes “Religiões” e seus correlatos “atos religiosos” fariam assim parte, respectivamente, dos gêneros comuns “Religião” e “religião”. Provoca isto se proponham as perguntas: Pertencerá aogênero comum “Religião” a Religião verdadeira, que se origina em Deus e não “no absoluto conhecido como Deus Pessoal” (Terra, pág. 3) — no homem? Fará parte do gênero comum “religião” a virtude infusa da religião?
 
Antes de pretender responder, parece conveniente se exemplifiquem em resumidas linhas gerais algumas cosmovisões que não aceitam Deus, a as que se incluem nas “Religiões”.
 
A maior recusa a Deus, a mais nítida, vem obviamente do ateísmo. Freud considera a religião uma neurose obsessiva. Marx nela vê uma alienação resultante da distribuição da propriedade e das relações do trabalho. Feuerbach a postulava como a alienação básica e original. Podem incluir-se no ateísmo, entre outros, Hume, Comte, Nietzsche, Russel.
 
É curioso que certos ateísmos admitem “atos religiosos”.
 
O positivismo de Comte tem calendário litúrgico, templos, imagens propostas ao culto.
 
O marxismo, ateu em teoria e em suas realizações concretas, pratica alguns “atos religiosos”. Venera lugares “sagrados”: o túmulo de Lenine. Guarda dias “santificados”: 1° de Maio, 10 de Outubro. Possui uma organização eclesial, o Partido Comunista, mestre da ortopráxis, infalível intérprete do agir conscientizado em cada momento histórico. Seu absoluto é a matéria em evolução determinística, que no homem assume consciência. Sua “atividade religiosa” máxima — a revolução, para acelerar a evolução.
 
Também o budismo, ainda que agnóstico, envolve “atos religiosos”.
 
Sem pretender negar Deus em sua existência, não o vê pessoa transcendente o imanentismo, que o faz idéia, substância, força, energia, confundido ou dissolvido no cosmos. Vai desde a simples identificação de ambos, Deus e o universo, no panteísmo declarado, até a coincidência parcial ou continuidade natural entre eles. Podem até vir a ser múltiplos os deuses. Fértil é a humana imaginação (alguma razão parece ter Feurbach...). Representam eles no politeísmo grego os mitos do ser e da gênesis do universo.
 
Nas concepções imanentistas, seria dispensável a “religião”. Se não há um absoluto transcendente, se o mundo e Deus coincidem, ou um no outro se prolonga, não pode dar-se uma relação interpessoal. O diálogo torna-se em dispensável monólogo. Tão coerentemente dispensável como o engajamento revolucionário marxista (cuja busca de coerência se revolve na infindável controvérsia: materialismo dialético versus determinismo histórico).
 
Religiões” há, porém, que propõem um Deus “pessoal transcendente”, fruto, entretanto, da humana imaginação, tal o Islã. Outras — as heresias — escolhem da Revelação o que lhes apraz e desfiguram a face do verdadeiro Deus.
 
Infinita ruptura há entre a Religião e as “Religiões”. Et fides et non ficta (S. Paulo, II Timóteo, I — 5): “fé e não fingimento”. A Religião não se fundamentará em humanas fantasias (ficta), mas em dom gratuito de Deus (fides).
 
Dom que, condicionado, não será gratuito. Dependente da crença no homem parece fazê-lo, entretanto, o Pe. Terra S. J.: “O paradoxo cristão é que não se pode crer em Deus sem crer no homem” (Terra, pág. 25). Outra passagem confirma não tratar-se de uma verificação, mas de um condicionamento: “Não se conhece a Deus fora da Polis, fora da história fraternal concreta” (Terra, pág. 21). Ainda que tenha o verbo crer, nas duas ocorrências, diferentes significados, persiste o “crer em Deus” depender de algo relativo ao homem. Se idênticos forem os significados, como crer em Deus é ter Fé, tal acarretará uma fé no homem (no homem que se fez Deus?...).
 
Em qualquer caso, para refutar, não é necessário contrapor Padres ou Doutores; basta a simplicidade de sua doutrina, resumida no antigo Segundo Catecismo: “Que é a Fé? — A Fé é uma virtude sobrenatural infusa, pela qual cremos firmemente em todas as verdades reveladas por Deus e propostas pela Igreja.”
 
Sem a Fé não se pode amar a Deus, ensina Sto. Tomás (Epístola a S. Timóteo I, Cap. III, II-16, Mariete, 1953, pág. 16). O amor de Caridade ao próximo se origina no amor a Deus, e não este naquele. Entretanto, o amor ao próximo permite, sim, verificar a real existência da Caridade, sem que por isto lhe seja causa. “Se alguém disse, pois, eu amo a Deus, e aborrecer a seu irmão, é um mentiroso. Porque aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, como pode amar a Deus, a quem não vê?” (I S. João, 4, 20).
 
Crido e amado, deve ser Deus também servido. “Sirvamos a Deus em santidade e justiça” (S. Lucas 1, 74-75). E comenta Sto. Tomás: “Mas servir a Deus é religião. A religião e a santidade são a mesma coisa” (S.T., q 81, a 8). Ensina também ser a religião uma virtude moral infusa anexa à virtude da justiça.
 
Comporta a religião atos: adorações, preces, devoções, votos, oblações, esmolas e dízimos. Não se incluem nesses os atos de “religião”, que se inserem no âmbito da magia e da superstição. Fazem os atos de religião parte de todo um relacionamento de piedade filial com Deus de seu filho adotivo — o homem.
 
Vê-se, pois, serem os conceitos religião e “religião” radicalmente diversos, não podendo corresponder a espécies de um gênero comum. Para assim considerá-los, é preciso afastar a Fé; para, com base apenas na ciência empírica e laica, grupar suas eventuais semelhanças em fatos religiosos genéricos. Há ambigüidade também nos termos ciência e científico, que podem significar tanto conhecimento certo quanto método de ciência moderna, cujo protótipo é a física-matemática. O conhecimento da Fé é científico no sentido de certo (não pelo método com que é adquirido); o das ciências é científico quanto à sua metodologia (não tanto quanto ao grau e ao tipo de certeza oferecida, relativa ao comportamento e não ao que são as coisas). Os que preterem a Fé, e tratam da religião e de sua origem, preferencialmente, ou só, pela ciência empírica, nem sequer fazem boa escolha científica.
 
Como não pode revelar-se Deus de modos contraditórios, única é a Fé, e não forma a Religião gênero comum com as “Religiões”.
 
A Religião é a mestra e a guardiã da Fé; a guia da Salvação, na Esperança; a comunhão dos fiéis, na Caridade; excetuada alguma nuança ou virtual distinção, coincide com a Igreja.
 
Não se venha, porém, inferir não se salvarem os não visivelmente pertencentes à Igreja, pois ensinado é sê-lo possível, aos não adequadamente atingidos pela pregação do Evangelho, se crêem (e, portanto, se tiverem recebido o dom da Fé) em Deus criador, providência e remunerador, e se obedecem à lei natural. Tampouco se diga praticarem uma religião natural; pois a religião é sempre sobrenatural, como participação na vida divina. São, de modo não visível, verdadeiros membros da Igreja, usufruindo a habitação do Espírito Santo e participando na Comunhão dos Santos.
 
Eu porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua posteridade e a dela” (Gênesis, 3, 15). Deste singelo modo expressa o Gênesis a primeira Aliança — a Aliança com Adão. Já às portas do Paraíso perdido, com a urgência do amor divino, lança Deus a ponte ao homem, que há de concluir-se com a Redenção. Logo a seguir à queda, a religação —a Religião. Atos religiosos — sacrifícios — são oferecidos por Abel e por Caim, com os conhecidos agrado e desagrado de Deus, daí começando a se diversificarem religião e “religião”.
 
A Aliança renova-se com Noé, Moisés, Davi, e com a SSma. Virgem, e aqui já se trata da Redenção. A Igreja será a perfeição das antigas Alianças, a plenitude e a transfiguração de Israel.
 
Enquanto a Religião progride para atingir sua forma pura e acabada no Cristianismo, as “Religiões” divergem e multiplicam-se como um universo em expansão. Não há como considerá-las convergentes para o Cristianismo, pois seu conteúdo de “fé” lhe é objetivamente contraditório. Mas alguns teólogos preferem sustentar que, “enquanto caminhos relativamente válidos, estão orientados a ter sua plenitude no Cristianismo, frente a este se situando sempre como algo anterior (não no tempo, senão na história da salvação)” (Schelette, pág. 94).
 
Reconhecido o fato de as “Religiões” pertencerem ao plano natural, poderia elaborar-se a hipótese de serem expressões incompletas dos anseios da natureza humana, que, perfeitos, os explicaria o Cristianismo. O que também não é válido, pois o Cristianismo não corresponde aos desejos do homem-velho, do homem da natureza, mas aos anelos do homem-novo, do homem da graça. São as bem-aventuranças evangélicas — sem a graça — aspirações da natureza?
 
Outra tentativa de inserir o Cristianismo na comunidade genérica das “Religiões” resulta em eleger o Mundo-melhor como fim-último do homem, consumando-se a assimilação genérica na práxis promotora da plena felicidade humana neste esférico e azulado planeta.
 
Também o termo mundo é equívoco. Múltiplos são seus usuais significados. Na Sagrada Escritura corresponde a três conceitos. Há o mundo físico: o dos animais, das pedras e das plantas. É o mundo ontologicamente bom. O do Gênesis: “E viu Deus que isto era bom” (Gênesis, 1, 13). O mundo que serve de matéria, que o homem vai enformar e transformar em seu Mundo — o Mundo da Cultura. E o Mundo do homem divide-se no Mundo que rejeita o Evangelho, Mundo da cultura anticristã, Mundo que tem seu Príncipe e que já foi julgado, e no “Mundo” que adere a Cristo, confundido, salvo virtuais distinções, com o Reino de Deus, e com a Igreja. “Mundo” que “Deus tanto amou, que lhe enviou seu Filho único, para que todo aquele que n’Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João, 3-16).
 
Já o Pe. Terra S.J. diz: “Esta cosmovisão libertadora da religião consiste em ver que Deus confiou ao homem o mundo que ele criou e o encarregou de continuar a criação e transformar o mundo fazendo nele penetrar a caridade que comunica através de seu Filho e de sua Igreja” (Terra, pág. 21)
O autor aí está afirmando que o homem foi encarregado — e que é Deus que lho atribui — de transformar o mundo e de fazer nele penetrar a caridade.
 
O Gênesis diz exatamente assim: “Tomou pois o Senhor Deus ao homem e pô-lo no paraíso das delícias, para ele o hortar e guardar. E deu-lhe esta ordem e lhe disse: Come de todos os frutos das árvores do paraíso: Mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem a do mal (Gênesis, 7, 15-17).
 
Não deve ser o mundo das plantas, das pedras e dos bichos que pretende o Pe. Terra S. J. penetrar pela caridade. O “Mundo”, confundível com a Igreja, já é pela Caridade constituído. Restaria o mundo avesso ao Evangelho, e que tem seu Príncipe, e que já foi julgado. Este Mundo exclui-se da Caridade — e a proposição fica sem sentido. Poderia alguém ainda replicar: a penetração da caridade consistiria em converter as pessoas, comprometidas com o Mundo (o que é missão da Igreja Católica e Apostólica). Sim, mas seriam as pessoas que se converteriam e, penetradas pela Caridade, rejeitariam o Mundo, para optar por Cristo e sua Igreja. O Mundo continuaria Mundo.
 
Reitera o autor sua concepção de relacionamento Igreja/Mundo: “[...] o Reino de Deus já se antecipa historicamente e começa a concretizar-se agora no coração da sociedade” (Terra, pág. 31).
 
A imagem que parece restar disso tudo é que o Reino de Deus, ou a Caridade, é uma espécie de recheio da sociedade ou do Mundo. Algo como camarão empanado.
 
Nessa imagem, porém, propõe-se o primado do serviço ao Mundo.
 
Também em Marx o conhecimento que não estiver comprometido com a transformação do Mundo será alienado. E, no fim, quando a revolução eliminar as classes sociais a as alienações, alcançar-se-á a conciliação homem-natureza. Eis o que seria para os marxistas, se figurasse no léxico deles, o Mundo-melhor.
 
A primazia das reformas sociais como “atividade religiosa” é uma inculcação da “espiritualidade” marxista, que se efetiva nos “meios católicos”, principalmente os latino-americanos. A teologia da libertação assume as coerentes conseqüências desse sincretismo, adotando a práxis marxista da luta de classes.
 
A partir do engajamento da “Religião” no serviço do Mundo, explícita ou veladamente proposto pelo ecumenismo, seguido do admitir o Mundo-melhor como fim-último e até a práxis marxista da teologia da libertação, tudo afinado no mesmo “estilo de espiritualidade”, posta a Fé entre parêntesis, ou negada gradativamente, fundem-se Religião e “Religiões” numa comunidade genérica.
 
Ambos, ecumenismo e teologia da libertação, não distinguindo Religião e “Religião”, fixam-se em um vergonhoso sofisma de termo.
 
Mas e se for a Fé rejeitada ou simplesmente esquecida?
 
Não seria o prêmio ultrapassar o humilhante sofisma a reaver a coerência lógica?...
 
Sim! Mas além das estrelas que ladram poderá haver choro e ranger de dentes.
 
* * *
 
Nota: Não é analógico o conceito Religião. Não se realiza de modo absoluto em um analogante, nem de modo relativo nos analogados, os quais participariam proporcionalmente nas perfeições dele.
 
Há para Religião, como para Deus, apenas analogia de termo, pela qual o termo que designa certa realidade é usado em coisas que falsa ou supostamente o realizam. Exemplos: Deus, deuses; Religião, religiões.
 

 

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