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O Apóstolo da Califórnia

Pe. William J. Slattery

O sacerdote que veio a estabelecer a Missão em San Diego em julho de 1769 não parecia destinado a se tornar o Apóstolo da Califórnia. Junípero Serra (1713-1784) media apenas 1,57m de altura, tinha já 56 anos de idade e sofria de asma. Além disso, sua perna esquerda vivia o tempo todo inflamada com enormes úlceras varicosas, causando-lhe também crescentes dores no peito. Era natural que o cirurgião Don Pedro Prat lhe recomendasse algum descanso para minorar aqueles incômodos, mas “descanso” era uma palavra que não se encaixava muito bem no vocabulário de Junípero Serra. Foi só quando o grande homem jazia morrendo, que lhe ouviram murmurar: “Agora irei descansar.”

Num período de 15 anos, apesar de todos os obstáculos interpostos pela saúde, por conquistadores ambiciosos e por um território ainda não mapeado, esse coração heróico e gênio organizador, ao mesmo tempo desbravador, colonizador e construtor de civilização, um dos maiores pioneiros a explorar o solo americano, trabalhando 18 horas por dia, cobriu milhares de milhas para fundar as Missões que um dia se tornariam as cidades da Califórnia.

 

O que a Califórnia deve a seu Apóstolo

E lá ia esse frágil e franzino padre, de sangue-quente, mancando cansado pelos caminhos ásperos, cruzando de cima a baixo Las Californias. Os que o acompanhavam, faziam-no alegremente, sabendo que ali estava um dos grandes da terra; não apenas uma vontade indomável, mas um coração de pura ternura, um homem que trazia paz ao justo, mas que cuspia fogo sacerdotal sobre políticos e soldados se desobedecessem ao seu aviso austero: “Fiquem longe dos índios.”

A Califórnia deve muito a seu Apóstolo e aos outros 146 sacerdotes que dedicaram suas vidas à fundação e ao desenvolvimento das primeiras cidades da região. Sessenta e sete desses padres viveram e morreram nas Missões, enquanto os outros, após seus dez anos de serviço, foram designados para outras tarefas ou tiveram de voltar à Espanha por motivo de saúde. Aquilo que o historiador protestante Herbert E. Bolton diz sobre o co-fundador da cidade de San Francisco poderia ser dito de todos aqueles padres:

“O Frei Palóu era um estudante dedicado, cristão devoto, discípulo leal, viajante incansável, missionário zeloso, firme defensor da fé, pioneiro engenhoso, bem-sucedido construtor de Missões, hábil administrador e historiador da Califórnia.”

Junípero Serra nasceu na Ilha de Majorca e entrou na Ordem franciscana aos 16 anos. Após sua ordenação, ensinou teologia e obteve fama como pregador influente. Em tudo isso, ansiava por ser um missionário no Novo Mundo. Foi só em 1749 que a Ordem permitiu que cruzasse o Atlântico em direção à cidade do México. Em 1767, começou a trabalhar na área da Baixa Califórnia, onde Missões haviam sido fundadas pela Companhia de Jesus.

Em 1769, viajou para a Alta Califórnia. Em San Diego, estabeleceu a primeira das 21 Missões que se alinhariam no chamado El Camiño Real, a estrada de 600 milhas (966 km) que ia desde San Diego no sul, passando pela Missão San Francisco Solano em Sonoma, até o norte. Numa rápida sucessão, seja pessoalmente ou sob sua supervisão, outras oito Missões foram estabelecidas: San Carlos Borromeo (1770), San Antonio de Padua (1771), San Gabriel Arcángel (1771), San Luís Obispo de Tolosa (1772), San Francisco de Asís (1776), San Juan Capistrano (1776), Santa Clara de Asís (1777) e San Buenaventura (1782). Seus companheiros padres fundaram depois mais 12 Missões. Em 1784, aos 70 anos de idade, após viajar 24.000 milhas, o Apóstolo da Califórnia morreu na Missão San Carlos Borromeo.

A cidade de San Diego já havia sido batizada em honra a San Diego de Alcalá em 1602, quando uma expedição de mapeamento, liderada por Sebastián Vizcaíno, parou naquela localidade para celebrar a Missa no dia da festa do santo. Entretanto, foi em 16 de julho de 1769 que o padre Serra plantou a cruz em Presidio Hill, fundando a Missão lado a lado com o posto militar que havia sido estabelecido ali três meses antes, tornando-a o primeiro assentamento europeu permanente na Costa do Pacífico dos Estados Unidos. Os colonos chegaram em 1774 e, entre altos e baixos, por volta de 1797 a Missão havia se tornado a maior da Califórnia, com uma população de mais de 1.400 pessoas.

O lugar onde hoje se encontra a cidade de Los Angeles foi observado com atenção pelo Pe. Juan Crespi, que, em 2 de agosto de 1769, escreveu em seu diário que o local tinha potencial para um belo assentamento. O padre era membro da expedição de Gaspar de Portola, que viajava pela Alta Califórnia procurando lugares adequados para Missões. A expedição entrou no que agora é Los Angeles através de Elysian Park e foi bem recebida por oito nativos americanos. O Pe. Crespi registrou em seu diário:

“Após viajar cerca de uma légua e meia através de uma passagem entre algumas colinas baixas, entramos num vale muito espaçoso, bem desenvolvido com choupos e amieiros, entre os quais corria um belo rio de norte para noroeste que, virando depois de uma colina íngreme, seguia para o sul.”

Apesar de terem experimentado três tremores de terra durante sua breve estadia, o consenso foi de que era um “lugar encantador” e que tinha “todos os requisitos para um grande assentamento”.

 

A Missão de San Gabriel

 

Em 1771, o Pe. Serra instituiu a Missão de San Gabriel Arcángel, próxima a Whittier Narrows, no que hoje é conhecido como San Gabriel Valley. Graças à recomendação do Pe. Crespi, o governador espanhol da Califórnia, Felipe de Neve, decidiu fundar um assentamento lá. Em 5 de setembro de 1781, 44 colonos, “Los Pobladores”, acompanhados por dois padres, quatro soldados da colônia e o Governador, estabeleceram a cidade chamada El Pueblo de Nuestra Señora la Reina de los Ángeles del Río de Porciúncula. Dois terços desses colonos eram mestiços; um tributo à integração étnica promovida pelos sacerdotes católicos nas Américas.

O local da atual San Francisco foi descoberto em 1º de novembro de 1769 pelo Pe. Juan Crespi e Don Gaspar de Portola, acompanhados por um grupo de soldados, enquanto viajavam para o norte a partir de San Diego. De 6 a 11 de novembro, o grupo acampou em torno de uma sequóia gigante (palo alto), e o padre anotou em seu diário que lá havia “um ancoradouro muito grande e adequado.” Três anos depois, em 1772, o Pe. Crespi e o Tenente Pedro Fages seguiram viagem ao longo da costa leste da Baía de San Francisco: os primeiros homens brancos a caminhar pela região das atuais Oakland, Berkeley, Richmond, Hayward e San Leandro.

Em 29 de setembro de 1775, Juan Bautista Anza e o Pe. Pedro Font lideraram 200 colonizadores pioneiros no primeiro estágio de sua jornada de 1.600 milhas desde Sonora e Sinaloa até a Baía de San Francisco. Pe. Font, um catalão, era um homem de muitos talentos. Além de saber manusear a balestilha, instrumento que permitia aos viajantes determinarem sua latitude por meio de observações da altura do Sol, o padre também trouxe a música para alegrar o coração dos cansados viajantes nas noites californianas com o seu saltério, um tipo de harpa. Em Monterey, ele e Anza deixaram o grupo momentaneamente para irem além e selecionarem a localização exata para a Missão e para o Forte na Baía de San Francisco. Em 28 de março de 1776, o Presidio (Forte) foi fundado. Em 29 de junho, o Pe. Francisco Palóu e o Tenente José Joaquin Moraga fundaram a Missão de San Francisco. O assentamento ficou conhecido popularmente como Misión Dolores, devido ao riacho próximo chamado Arroyo de Nuestra Señora de los Dolores. Pedro Font escreveu o seguinte sobre o local escolhido para a Missão:

“Cavalgamos cerca de uma légua para o leste (desde o Presidio), um de nós na direção lés-sudeste, o outro na direção sudeste, passando por colinas cobertas por arbustos e por vales de uma terra agradável. Assim chegamos a duas lagoas e a vários mananciais de boa água, encontrando também muita grama, funcho e outras ervas salutares. Quando chegamos a um adorável riacho, o qual, por se tratar da Sexta-Feira da Paixão, chamamos de Arroyo de Los Dolores... nas margens do riacho... descobrimos muitas camomilas perfumadas e outras ervas, e muitas violetas selvagens. Próximo ao regato, o tenente plantou um pouco de milho e grão-de-bico para testar o solo, que para nós parecia adequado.”

A cidade que hoje se chama Ventura foi originalmente denominada San Buenaventura, em honra ao Doutor da Igreja do século XIII. Em 31 de março de 1782, o Pe. Junípero Serra fundou aquela Missão, na presença do Governador, Don Felipe de Neve, e do Tenente José Francisco de Ortega.

A cidade de Santa Barbara deve seu nome a Sebastián Vizcaíno, que, em 1602, deu-lhe esse nome em agradecimento à santa, por sua intercessão durante uma violenta tempestade. Em 4 de dezembro de 1786, o Pe. Fermin Lasuen, sucessor do Pe. Serra, fundou a “Rainha das Missões” numa área montanhosa, uma milha a nordeste do forte, com uma esplêndida vista para o vale e para as águas. Em torno dela, agrupou alguns tijolos de argila: o núcleo da futura cidade. Os padres também construíram um sofisticado sistema de fornecimento de água — ainda parcialmente em uso hoje em dia — com um aqueduto de pedra que levava água de um riacho represado nas colinas até a Missão, onde havia até um sistema filtragem para fornecer água potável.

 

A Conversão dos Nativos

Graças ao Pe. Junípero Serra, muitos nativos americanos vieram a conhecer e a amar Jesus Cristo. O padre procurou sempre, em meio a todas as limitações sócio-políticas da Espanha colonial e ao jeito de pensar típico da época, trazer apenas a verdade e a bondade para os nativos californianos. Um empreendimento sucedia a outro num transbordamento de ardentes esforços para oferecer àquele povo Missões que fossem auto-suficientes, nas quais eles estivessem protegidos dos colonizadores e prosperassem tanto materialmente quanto espiritualmente. Por volta de 1830, cerca de 40.000 católicos nativos americanos “possuíam quase 400.000 cabeças de gado, mais de 300.000 porcos, ovelhas e cabras, 62.000 cavalos, e fazendas que produziam mais de 120.000 alqueires de grãos; mais a produção de pomares, hortas, lagares, teares, lojas e forjas.”

O chefe dos Kechis em San Luis Rey contou a John Russell Barlett, um comissário do governo dos Estados Unidos que trabalhou na Califórnia no período entre 1850 e 1853, “que sua tribo era grande e o seu povo, feliz, quando os bons padres estavam ali para protegê-los. Que cultivavam o solo, ajudavam na criação de grandes rebanhos de gado, aprendiam a ser ferreiros e carpinteiros, assim como outros ofícios; que tinham abundância de comida, e eram felizes... Agora estavam dispersos, e ele não sabia por onde andavam, sem casa e sem protetores, passando fome e em condição miserável.”

 

A Formação de uma América Católica

Um exame dos feitos de Eusébio Kino, Júnipero Serra e outros padres pioneiros mostra não apenas como eles desbravavam a terra e fundavam assentamentos, mas também como contribuíram para a formação de uma cultura católica em extensas regiões do Canadá e dos Estados Unidos, o que desmente a quimera sobre as origens quase exclusivamente protestante e anglo-saxã dessas nações. A fundação do primeiro assentamento permanente inglês em Jamestown em 1607 e a chegada do navio Mayflower com os Peregrinos em 1620 certamente foram eventos importantes no início da colonização dos Estados Unidos. Mas no Sul e no Oeste, outra cultura sofisticada, e católica, já havia nascido com o estabelecimento da primeira cidade da nação, St. Augustine na Flórida (1565), seguida em 1608 por Santa Fe aos pés das Montanhas Sangre de Cristo.

Portanto, ainda que nos orgulhemos, por exemplo, da arquitetura colonial em Nova Inglaterra, não podemos deixar de nos encantar com as linhas puras dos edifícios brancos de estilo espanhol no Texas, Arizona, Novo México e Califórnia. Estes devemos aos católicos que os legaram à nação como uma herança que é tão caracteristicamente americana quanto a arquitetura colonial da Nova Inglaterra.

E o que uma mente livre de preconceitos pode pensar ao contemplar as amáveis Missiones da Califórnia? Certamente, em meio às limitações de tudo o que é humano, elas constituíram os empreendimentos mais efetivos em termos de integração racial na história dos Estados Unidos, onde os nativos americanos encontraram um oásis de segurança, e onde os padres preservaram o conhecimento das línguas nativas, estilos de vida e trabalhos manuais dos índios por meio de dicionários, gramáticas e histórias que compuseram.

O comissário do governo americano, John Russell Barlett, observou que as Missões da Califórnia conseguiram tanta coisa “não pela espada, nem por tratados, nem por presentes, nem pela ação de índios traidores, que sacrificariam seu próprio povo sem escrúpulo ou remorso em favor de seus ganhos vis... a Companhia de Jesus (e outras ordens religiosas) conseguiram mais resultado na melhoria das condições de vida dos índios, do que o governo dos Estados Unidos desde o estabelecimento do país.” O histórico do catolicismo na integração das raças das Américas, tanto do Norte quanto do Sul, é insuperável. Quanto mais cientes estivermos disso — e de tantas outras realizações de nossos antepassados católicos — mais vigorosamente ressoará em nossos corações o chamado para imitá-los no presente e no futuro.

(The Angelus, Julho-Agosto/2020, tradução: Permanência)

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