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O Discurso de Bento XVI em Ratisbone

Achei por bem apresentar uma análise do discurso que o Papa pronunciou aos acadêmicos de Ratisbone e que causou tanta violência. Lendo o texto percebi que Bento XVI foi severo sim, mas em relação aos cientistas e representantes em geral do mundo acadêmico. E fiquei feliz por não haver, até o momento, fundamentalistas entre os professores universitários. O Papa lhes dirigiu palavras certas e duras contra o materialismo agnóstico das ciências modernas, pregando não somente a necessidade de estudos científicos sobre a Religião, mas também a necessidade da fé dentro do contexto científico. Graças a Deus os senhores professores não agrediram o Papa, não queimaram igrejas, não assassinaram freiras, mesmo tendo sido criticados duramente nos seus dogmas cientificistas. Já imaginaram o que seria se ali mesmo se levantassem de dedo em riste, agressivos, violentos, querendo até mesmo matar o papa?
 
Não que a imprensa mundial e os homens influentes deste mundo se inquietem muito com um ataque mortal contra Bento XVI. Seria para uns motivo de vender mais jornais e aumentar a audiência de sites e televisões. Para outros, se sentiriam certamente livres de um chefe católico que consideram conservador demais. Mas um terrorismo dos professores alemães, na hipótese de se levantarem com ódio contra este discurso, seria certamente algo de preocupante para o mundo civilizado... Os professores alemães poderiam fazer uma guerra santa, segundo seus dogmas, e impor ao mundo a sua civilização. Então seríamos todos escravos do Racionalismo pós-moderno, num mundo sem fé, sem religião, e comendo chucrute!
 
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Não deixa de ser impressionante que o Papa formado na escola filosófica moderna, kantiana, subjetivista, apresente uma análise tão abrangente quanto vigorosa contra as correntes que vêm, ao longo dos últimos quatrocentos anos, corrompendo o pensamento, o conhecimento e a moral.
 
Para Bento XVI, o rompimento entre o espírito grego e o espírito cristão tem início com o fim da Idade Média. O que significa isto? Significa que o Humanismo, o Renascimento e a Reforma causam uma ruptura entre o conhecimento da verdade, ou seja, o espírito grego, a razão natural, a filosofia, e o espírito cristão, que pelo Evangelho nos põe em contato com o Logos, o Verbo Encarnado, a Verdade Eterna. É significativo que o Papa inicie este parágrafo afirmando que "por honestidade, devemos assinalar que...", pois a cultura moderna só nos apresenta a verdade histórica de pernas para o ar, quando atribui à Idade Média todos os atrasos do mundo e ao Humanismo a Descoberta do Homem, da Razão, da Ciência.
 
Mas Bento XVI vai além: "A aproximação mútua [entre a fé bíblica e a filosofia grega] é um fato decisivo não somente do ponto de vista da história das religiões, mas também quanto à história universal - um fato que cria para nós obrigações ainda hoje."
 
Em seguida o Papa vai assinalar três épocas, dentro da teologia, que marcam o que ele chamou de "des-helenização" do cristianismo. O que ele quer dizer com esta palavra? A ruptura do pensamento religioso com a razão, com as bases filosóficas realistas que serviram de apoio à teologia católica. O papa não diz, mas está implícito, que se trata do pensamento católico medieval, que atingiu seu ponto mais elevado com Santo Tomás de Aquino, no coração da Idade Média.
 
A primeira etapa da ruptura é a Reforma protestante do séc. XVI. Sem entrar em detalhe na crítica desta ruptura, o Papa prefere mostrar as conseqüências nefastas, como o moralismo subjetivista de Kant, todo baseado numa fé desvinculada do pensamento, mas centrada na razão prática, negando à fé todo acesso à realidade.
 
A segunda etapa da ruptura é o liberalismo do séc. XIX e XX. O papa cita Adolf Harnack como representante de uma teologia liberal protestante cujo programa "era fortemente realizado também na teologia católica" na época em que Ratzinger seguia sua vida acadêmica. Também aqui, teríamos preferido uma palavra mais crítica do atual papa, visto que esta influência protestante na teologia era toda subterrânea, escondida, revolucionária. Os papas da época lutavam contra estas tendências e teremos na Encíclica Humani Generis, de Pio XII, um exemplo forte de condenação do pensamento liberal, protestantizado, da Nova Teologia. Mas o Ratzinger de hoje, Papa, parece criticar o pensamento de Harnack que conduz a um Cristo humano, esvaziado do divino. Com Harnack, a religião não precisa mais de rito, nem de dogma, nem de fé, pois tudo se explica pela razão e por uma moral imposta e sem fundamento fora da consciência. O Papa mostra com muita propriedade que este pensador protestante reduz a teologia a uma ciência histórica, crítica, que nada mais tendo de fé, pode ser vista de modo "científico", sendo aceita dentro das Universidades.
 
Da Reforma e do Liberalismo nasce um novo conceito de Razão, ao mesmo tempo "matematizado", tornado número, pelo método crítico e histórico e, por outro lado, fundado no empírico, na experiência pessoal e subjetiva. O certo e o errado só existem, então, na consciência de cada um, e o indivíduo se torna o único critério moral. Para o papa, este individualismo retira da religião e da moral toda a sua força, jogando a humanidade numa situação perigosa. E tem razão, pois sabemos que são estes os fundamentos de um Hitler ou de um Stálin.
 
A terceira etapa da ruptura entre a razão e a fé corre nos dias de hoje. A análise de Bento XVI tem algo de lúcido, mas parece preso ao espírito de "inculturação" nascido com Vaticano II. O Papa perdeu certamente uma boa ocasião para assinalar este Concílio como um marco desta ruptura que ele critica tão fortemente. Isto torna o pensamento de Bento XVI confuso neste ponto, talvez porque ele saiba que contraria um dos dogmas mais duros do mundo moderno. Ele percebe que o mundo pluri-cultural de hoje tenta se desvencilhar da fé, logo da verdade, rechaçando justamente a cultura grega que dá sustentação à fé católica. Mostra que "as decisões de fundo que concernem precisamente a relação entre a fé e a razão, estas decisões de fundo fazem parte da fé ela mesma e nada mais são do que o próprio desenvolvimento da fé, conforme à sua natureza". Isso significa que o uso de termos filosóficos próprios à filosofia realista grega servem, ao longo do tempo, para explicar melhor a verdade de fé. Pensamos, por exemplo no termo "transubstanciação", definido pelo Concílio de Trento como necessário para a compreensão do dogma da Presença Real.
 
O papa entra, assim, na conclusão, onde mostra aos eminentes sábios deste mundo, o quanto a ciência é diminuída pelo afastamento de toda idéia de Deus, como se esta noção fosse a-científica ou pré-científica. Ao contrário, é preciso trabalhar para, juntamente com todo o progresso do conhecimento científico moderno, realizar novamente o encontro da fé e da razão, desviar os homens de ciência deste falso critério científico que decreta que somente o empírico pode fazer parte daquilo que se considera científico. E reclama um lugar para a teologia, não como ciência histórica, mas como discurso sobre a Fé, dentro do mundo acadêmico.
 
Esperemos que o Papa perceba todas as lacunas do seu discurso, pois elas existem. Mas o pensamento que emitiu nesta ocasião não pode significar apenas uma pregação do pluralismo de Vaticano II. Pela forte afirmação da necessidade da fé para o mundo, mesmo sem considerar ainda, de modo mais claro, em que consiste esta fé, e pela corajosa defesa da verdade e da formulação filosófica desta verdade, como base da fé, Bento XVI afasta-se do pensamento pluralista do último Concílio. Mas precisará de maior coragem para perceber até que ponto precisa se afastar deste Concílio que tanto diminuiu a fé no mundo. Parece-me exagerado dizer que este discurso já o posiciona na defesa da Tradição ou num pensamento tomista, mas é verdade que nos deixa a esperança de que ele se mova nesta direção.
 

 

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