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7. O Dom da Sabedoria

 Santo Tomás de Aquino 

 

No quadro Crucifixão, de Fra Angélico, dois personagens chamam em especial a atenção da alma dominicana: dois santos postos à extremidade do grupo à direita da cruz. São Domingos está na primeira fila, de joelhos, com as mão estendidas num gesto de compaixão e amargura. Seus olhos, banhados em lágrimas, mal se podem erguer ao Crucificado, fitos no vulto da Virgem, que São João, Madalena e Maria Salomé sustentavam do outro lado da cruz. Lá atrás, de pé, com as mãos postas no peito e a cabeça inclinada para enxergar melhor, vemos Santo Tomás de Aquino. Seu rosto reflete uma impressão aguda e compenetrada. Ele não chora, mas olha: olha fixamente para Jesus crucificado; a emoção surda que o invade, longe de lhe desviar os olhos, parece ao contrário atravessar as pupilas e arrancar das profundezas do olhar uma chama intensa, como a borbulha de lava ardente que emerge, poderosa e contida, do fundo negro de um vulcão.

São Domingos chorando, com o coração dividido entre as dores de Cristo, que expia pelas almas, e a dor das almas que, aos pés da cruz, iniciam com a Virgem Maria o longo martírio de união com os sofrimentos do Redentor; eis o apóstolo, eis sua dupla vocação: contemplar com amor e transmitir misericordiosamente o contemplado. Eis o homem do Dom de Ciência! — Santo Tomás, ao olhar fixamente o tremendo sacrifício e, apesar do horror do suplício, ao dominar o semblante, como que para penetrar mais a fundo o mistério; eis o Doutor, eis a sua vocação, não mais repartida, e sim unificada numa dupla virtude: absorver-se na luz para tornar-se luminoso; e também iluminar, com plena certeza de sua missão, horizontes longínquos: eis o representante do Dom de Sabedoria.

A sabedoria, ensinou-nos o Santo Doutor, é antes de tudo uma virtude intelectual, pela qual nos habituamos a julgar as coisas de cima, desde o ponto de vista mais alto possível, ou seja, desde o ponto de vista de Deus. Enquanto a ciência se detém nas razões próximas, que só nos dão uma meia-luz, a sabedoria, por sua vez, recorre à explicação suprema. O cientista, para explicar a ordem e a harmonia do universo, discursa sobre a revolução dos planetas, órbitas, rotações etc; o que diz é verdadeiro, mas não é a razão última. O sábio, o teólogo ou o filósofo apela à inteligência ordenadora de Deus e, com uma só palavra explica tudo, mas não revela tudo; pois, onde a razão para, começa o mistério.

Por isso o Espírito Santo, que “tudo penetra, mesmo as profundezas de Deus”, nos associa por um dom a sua própria sabedoria. Quanta diferença entre a virtude e o dom! Em que consistem, com efeito, a nossa teologia e a nossa filosofia senão em “saciar a sede da nossa ignorância de uma fonte mais elevada”? Que fazemos nós teólogos senão delimitar, com mais exatidão que os outros, e mais de perto, as bordas do abismo negro do mistério ou do sol que cega, inacessíveis em seu centro aos olhos humanos, mesmo guiados pela luz obscura que emana da fé? Não sofrem dessa ignorância tanto as almas simples quanto as mais inteligentes? A fé nos transporta para diante de uma muralha coberta de palavras magníficas, que anunciam os mistérios mais sublimes e consoladores, mas não somos capazes de penetrar a muralha que os encerra… precisamos crer, mas não podemos ver, nem mesmo por um só instante, aquilo em que cremos com toda nossa alma: ó dura provação para inteligências vivas e fiéis, para as quais não crer seria ainda mais doloroso que não ver!

De onde tiraste, ó tu, Doutor da Crucifixão, esse olhar que fita o mistério sem ficar vazio, gelado e mortiço como o nosso — que, lá onde me perco no vazio, se vivifica de uma vivacidade espetacular? — se tu não conheceste o olhar de Arquimedes exprimindo a alegria do seu eureka, nem o de um Newton entrevendo pela primeira vez os segredos dos céus? Ou foste tu, pintor Angélico, que num assomo da tua imaginação ardente transfiguraste assim o teu modelo? — Mas não: tu o viste; pois tais criações não se imaginam. O pintor Angélico compreendeu o Doutor Angélico. Eis a chave do enigma.

Ó tu que te revelaste assim à alma de Fra Angélico, revela-te a nós pela virtude dessa santa imagem, a nós que não sabemos olhar como olhaste e que tanta necessidade temos de robustecer nossa fé pela iluminação dos Dons. Ó tu que visivelmente penetraste os mistérios do Filho de Deus encarnado e morrendo sobre a cruz, fala e escutaremos. Teus olhos, ó vidente, serão os nossos. Tu, que experimentaste as coisas divinas, descobre-nos algo dessas realidades pelas quais nossos corações anseiam e diante das quais nossas idéias e raciocínios de teólogos ou de fiéis de nada valem.

E o quadro parece ganhar vida. — Como uma onda que ultrapassasse os limites impostos pelo litoral, começo a ouvir uma voz que me responde, e me repete aquelas dulcíssimas palavras que em outro tempo disse ao Beato Reginaldo, seu irmão querido:

“Meu filho, olha o Crucificado. É Deus. Deus encarnado por nossos pecados. Por nossos pecados, compreende? Durante muito tempo, raciocinei como filósofo. Parecia-me belo ver na Encarnação do Verbo o coroamento do universo, a glória da humanidade. Dividia-me entre os santos livros que me mostravam a Redenção como a causa da Encarnação e essa sublime idéia de um mundo que conduziria a um ser divino, a um homem cujos pés repousaram sobre a nossa terra, e cuja cabeça habitava não no cume das mais altas montanhas, mas na luz inacessível da Divindade1. Mas, naquele momento, à vista desta cruz tudo se esclareceu, e eu vejo… A Redenção, eis o fim, o único fim. Por que a Encarnação? Para a Redenção. Não foi apenas para manifestar a potência divina que Deus se encarnou; não foi sequer para demonstrar a bondade de Deus e sua divina liberalidade; foi para fazer brilhar a sua misericórdia, o mais inenarrável dos seus atributos2. Agora, tudo se conforma à santa palavra: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”. — “Porque Deus não enviou seu Filho ao mundo, para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Portanto, se o homem não tivesse pecado, Ele não teria vindo. “Suprimi o mal, suprimi as feridas, e o médico não é mais necessário”. — “Ó feliz culpa que nos merecestes tão grande redentor!”3foi preciso sacrificar um motivo inferior; uma bela idéia, mas que não passava de uma idéia humana, foi-me preciso dobrar mais uma vez a inteligência aos ditames da fé: e eis que pela fé encontrei a luz, a causa mais alta do mistério se revelou; eu explicava a Encarnação como homem: agora vejo o motivo como Deus mesmo o vê. Esse motivo são os nossos pecados; é a misericórdia divina. Essa cruz me revelou isso, e eis porque a contemplo assim”.

Que lição para nós, filósofos e teólogos demasiado humanos, essa conversão intelectual de Santo Tomás, esse alegre abandono das sínteses mais persuasivas diante da humilde palavra do Evangelho, dos apóstolos, dos santos! E que lição mesmo para os simples fiéis, que tantas vezes medem as coisas de Deus, seus ensinamentos, o governo da sua Igreja, a conduta os seus ministros, de acordo com a visão míope que procede das suas pretensas luzes, das paixões ou impressões do momento, ou de meras imaginações. Ah, não sabemos julgar bem as coisas, sobretudo as coisas de Deus, pela causa mais alta. Estamos cheios de nós mesmos e, se não no fundo, ao menos na prática real da vida, pouco nos preocupa se julgamos as coisas conforme o julgamento de Deus. Ele mesmo  disse: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos”. Abandone-se esse hábito tão funesto — o amor da verdade o exige.

Mas, como poderemos nos elevar o bastante para observarmos tudo com o olhar do próprio Deus? Uma sabedoria desse tipo não pertence apenas a seres de todo alheios às nossas misérias e fraquezas, como os santos?

Santo Tomás em pessoa nos confiou o seu segredo. Apenas o Espírito de Deus conhece com propriedade os mistérios divinos, disse ele. Nossas forças intelectuais nos permitem alcançar alguns aspectos gerais. Mas, de que vale toda a nossa filosofia ao lado do menor raio que aprouver ao Espírito Santo nos enviar do seio da luz plena onde habita? Travar relação com o Espírito Santo, eis o segredo da sabedoria. “Ora, diz o Apóstolo, o que está unido a Deus — ou seja, pela caridade — é um mesmo espírito com ele” 4. Isso não significa certamente que nos transformaremos, pelo amor, em uma mesma substância com Deus, mas que, unidos a Ele por meio de um sentimento profundo do coração — não do nosso coração abandonado às próprias forças, mas do nosso coração fortificado e instruído por Deus — amaremos apenas o que Ele ama, e nos habituaremos a uma dependência santa e habitual com respeito a Ele.

O efeito dessa dependência efetiva se faz sentir antes de tudo na conformidade de nossos julgamentos com os dele. E posto que não podemos por nós mesmos nos elevar até as concepções de Deus, força é portanto que nosso Deus, para efetivar a sua amizade, nos participe dos julgamentos da sua sabedoria. Eis o que é ser um mesmo espírito com Deus. “É ser instruído pela sua unção, como diz São João, e isso em todas as coisas” 5: o que significa que a alma, cheia do amor de Deus, se sente doce e suavemente tocada por luzes superiores que a elevam a uma altura de visão que não conhecia, a uma pureza, a uma penetração, a um domínio do seu olhar intelectual que não parece mais ser deste mundo. É como o viajante que, do alto da montanha, contempla todas as coisas, o mar bravio e as colinas rugosas, as florestas silenciosas e as cidades repletas do rumor humano, e sente o coração invadido pela alegria indizível de estar por um instante apartado dos pormenores da terra e de poder apreendê-la num só olhar.

Nada há tão repousante quanto um espetáculo desses, abundante de reflexões salutares. A pequenez das coisas que costumam irritar nossas paixões nos aparece então em toda a sua realidade. A alma que observa de tão alto é ao mesmo tempo engrandecida e pacificada. É por isso, sem dúvida, que Santo Agostinho relacionou o Dom de Sabedoria à bem-aventurança dos pacíficos: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus” 6. A paz não é senão a tranquilidade da ordem. Ora, só é capaz de assegurar a ordem aquele que vê o detalhe no conjunto, que julga, por um olhar superior, o que é grande e o que é pequeno. Para pacificar a própria vida, para pacificar a vida dos demais, é absolutamente necessário erguer-se para além de si, para além de todos, e de julgar-se a si na verdade. Mas, como fazê-lo? Não podemos nos separar de nós mesmos e, ademais, não é preciso viver no mundo? Como então elevar-se acima de nós mesmos? Onde está a montanha de onde poderemos, por um olhar apartado e dominador, juntar-nos à verdade e apreciar a nossa vida e a vida dos demais?

Essa montanha é Deus. Deus domina, por natureza, a sua criação: só podem dominar-se a si mesmo e julgar a tudo aqueles a quem Deus comunicar o seu adorável julgamento. Eis porque a figura do Filho de Deus feito homem nos aparece, no seu Evangelho, com uma expressão única de domínio e paz. Ele é um Sábio: julga-nos com pensamentos distintos dos nossos, pensamentos que exprimiu com simplicidade e que são matéria de reflexão para os sábios de todos os tempos. Mas, não nos destrói com seu cetro dominador: não quebrou a cana rachada, nem apagou a mecha fumegante. Assim como é sábio, assim também é pacificador. Sua divindade se assemelha a um cume de onde vê e aprecia em sua verdade as causas de nossas lutas e contratempos, de onde faz irradiar a ordem, a tranquilidade e a paz nas almas que crêem em sua palavra divina. Esse é o modelo.

Ele também é a recompensa, pois está escrito: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus”. Sim, algo desse domínio inteligente e sereno, dessa ordem tranquila que caracteriza a fisionomia do Filho de Deus passará aos sábios deste mundo, e a humanidade, pasma com a semelhança, o reconhecerá e proclamará em alta voz.

Vejamos Santo Tomás de Aquino. Qual teólogo, nos julgamentos que por toda a vida formulou sobre as coisas divinas e humanas, uniu-se mais ao pensamento próprio de Deus? Quem foi mais sábio dessa sabedoria que vem do Alto? No entanto, que figura intelectual mais serena, e que vida mais pacificada, e que obra mais pacificadora!

Não, depois do Evangelho e do Apóstolo, não há leitura que produza no espírito tão viva impressão de tranquilidade na ordem quanto as obras de Santo Tomás. Jesus vê, Santo Tomás raciocina: eis a diferença, e é imensa. Mas entre ambos os espíritos se nota — ousarei dizê-lo? — um parentesco! Simplicidade e profundidade, universalidade e fineza de detalhe, sublimidade e condescendência, são marcas do Evangelho que reencontramos na obra de Santo Tomás, certamente num grau menor, mas num grau eminentíssimo. Não seria essa a prova da lei estabelecida pelo próprio Espírito Santo: “O que está unido a Deus é um mesmo espírito com ele”? E a semelhança da figura inteligente e serena do Doutor Angélico com a fisionomia intelectual de Nosso Senhor não seria a realização da promessa de bem-aventurança feita aos sábios: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus”?

  1. 1. S. Tomás, in 3um sent. dist. 1.
  2. 2. S. T., Ia, q. 21, a. 3.
  3. 3. S. T., IIIa, q. 1, a. 3.
  4. 4. S. T., IIae IIa, q. 45, a. 2.
  5. 5. S. T., IIae IIa, q. 45, a. 5.
  6. 6. S. T., IIae IIa, q. 45, a. 6.
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