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3. O Dom da Piedade

Santa Inês de Montepulciano São Pio V São Raimundo de Penaforte

 

Um dos traços mais característicos do catolicismo é a piedade filial por Deus. Sem adentrar na questão – mais de sutileza que de relevância – de saber se ela é a essência do catolicismo, devemos reconhecer que o culto da Paternidade divina se sobressai em nossa religião de modo incomparável. O paganismo e a filosofia honraram o Criador, o Juiz, a Providência; nós, porém, adoramos o Pai consubstancial de Nosso Senhor Jesus Cristo, que também é nosso Pai por adoção, e lhe dizemos em toda verdade: Pai Nosso que estais no céu.

Se é verdade que não se fala o nome de Jesus senão pela virtude do Espírito Santo, como disse o Apóstolo, por uma razão ainda mais forte o nome de nosso Pai celestial também só se fala por essa virtude. O Espírito Santo conduz toda nossa atividade sobrenatural, e não poderia ser diferente: Como produziríamos atos reservados a Deus, como o amor eficaz a Deus, por exemplo, se Deus não fosse, por suas inspirações e  moções, o princípio interno de nossas vidas?

"Ora, entre estas moções", ensina Santo Tomás, “há uma que desperta em nós um afeto filial para com Deus, conforme as palavras do Apóstolo: 'Recebestes o espírito de adoção de filhos segundo o qual dizemos: Abba, isto é, Pai'. À piedade pertencem propriamente a reverência e o culto aos pais. Assim, quando, por inspiração do Espírito Santo, prestamos culto e reverência a Deus como a nosso Pai, agimos sob a influência do Dom de Piedade ”1.

Todos os santos da Ordem dos Pregadores possuíram o espírito de filhos adotivos, todos agiram sob o influxo dulcíssimo do Dom de Piedade. Quando destacamos dos dípticos da nossa Ordem os nomes de Santa Inês de Montepulciano, São Pio V e São Raimundo, não tivemos intenção de excluir ninguém, mas os escolhemos porque esses santos nos parecem manifestar alguns aspectos originais do espírito de piedade filial. 

Santo Tomás, com efeito, nos ensina que a operação do Dom de Piedade não é uniforme. Em uma família, o amor dos filhos deve dirigir-se por primeiro ao pai, unidade e fundamento da sociedade doméstica; mas, por um movimento natural e como que contínuo, esse amor transborda sobre a mãe e dela, em seguida, irradia sobre todos os que têm alguma relação, próxima ou longínqua, com a família. O amor do pai, o amor da mãe e o amor da família são as manifestações típicas do amor filial. 

Ora, se Deus é o Pai da família cristã, se Maria é a Mãe, e a Igreja católica a eclosão total dessa família, parece-nos que os nomes de Inês, Pio e Raimundo simbolizam respectivamente esses três aspectos da piedade filial católica.

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Quando se é pequenino, o papel de filho calha muitíssimo bem. Ora, a bem-aventurada Inês foi, antes de tudo, uma terna e pequenina filha do Pai celestial. Entrou em religião com nove anos de idade! Mas não o fez movida por capricho, sensibilidade ou imaginação, e sim obedecendo a uma inclinação profunda e sobrenatural que nunca desfaleceria e haveria de crescer sempre no mesmo sentido, o que é sinal evidente da intervenção do Espírito de Deus. Não foi esse mesmo Espírito que, aos treze anos de idade, inspirou a padroeira da nossa santa Inês, a homônima virgem e mártir romana, de quem dizia enternecido o grave Santo Ambrósio: “Ela é miúda demais para receber o golpe da espada, mas já consegue vencer a morte”? Vida religiosa ou martírio, não é a mesma coisa para o Espírito que sopra onde quer? De fato, desde o momento em que pisou o claustro, sua morte para o mundo é absoluta, sua oração contínua, sua piedade pelo Pai que está no céu é toda feita de confiança e ternura. 

Coisa admirável: essa criança é madura e piedosa. As faculdades práticas, mesmo as de governo, não lhe faltam. Assim como algumas crianças, criadas de perto na escola dos  pais, manifestam desde cedo a seriedade que antes convém à idade madura, assim essa pequena serva do Rei Eterno já era prudente. Aos quatorze anos, as religiosas já a consideram sua pequena madre. Confiam-lhe a administração do monastério, e sua gestão se assinala pelo sábio entendimento de todas as coisas. Com quinze anos, ei-la abadessa de um convento vizinho! Até o final da vida será sempre superiora, como se o Senhor e Mestre de todas as coisas quisesse revestir com a semelhança da sua Paternidade essa piedosa criança cuja ambição única era viver sob sua dependência filial.

Nosso Senhor Jesus Cristo é o modelo absoluto de piedade filial para com o Pai. Como a união produz a semelhança, a união íntima com Jesus Cristo sempre redundará num sentimento mais profundo de respeito e de amor ao Pai Eterno. Quem mais do que Santa Inês, contudo, viveu em união profunda e quase familiar com Jesus? Para uma língua humana é difícil expressar-se sem trair a delicadeza e a elevação de suas visões sobrenaturais. A Santa Igreja, que para isso tem graça e missão especial, não hesitou em transformar num epitalâmio o ofício consagrado à memória de Santa Inês: 

Magnae dies laetitiae,

Venerunt Agni nuptiae

Et Agnes Agnum sequitur

Sponsoque sponsa jungitur.

Alvoreceu o dia do gozo

Chegaram as bodas do esposo

E Inês ao Cordeiro seguiu

E a esposa ao Esposo se uniu

Evoquem os sentimentos de piedade filial do Filho de Deus, recordem a incomparável oração ao Pai conservada por São João (c.17), mas não receiem pôr no lábios da esposa de Cristo aqueles sentimentos piedosos e expressivos, sempre guardadas as devidas proporções.

Santo Tomás que, conforme o hábito seu, vê cada um dos Dons do Espírito Santo se desabrochar numa das Bem-aventuranças evangélicas, hesita, para o dom de piedade, entre a Bem-aventurança dos que tem fome de justiça e a dos mansos 2, e termina deixando aos diferentes tipos de santos a decisão da escolha. Não há dúvida no que toca a Santa Inês de Montepulciano. A mansidão lhe preside os atos de piedade para com o Pai celestial, para com as irmãs que governa, os pobres que serve, os viajantes que hospeda, os pecadores que converte. Deus reconheceu a mansidão da serva cercando-lhe a morte com fenômenos significativos. “Um perfume dulcíssimo” se espalhou ao redor. “Mesmo os panos embebidos dos suores da agonia exalavam um odor de incenso que enchia por completo a cela”. Odor de incenso, perfume dulcíssimo — piedade, doçura — Santa Inês está inteira aí. 

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Já o dom de piedade em São Pio V se fundamenta, bem em contrário, na fome e na sede de justiça. Guerra e culto são os aspectos marcantes da sua atividade. O espírito guerreiro que o inflama advém da piedade, pois a guerra que declara é a guerra santa, guerra contra o infiel de fora que ameaça a tudo invadir, e guerra contra o infiel de dentro que ameaça a tudo corromper. O zelo do culto é fruto de uma piedade profunda, que se manifesta ao empreender a reforma da grande liturgia da Igreja, e acima de tudo a reforma na devoção piedosa por excelência, cujos Ave multiplicados entrelaçam o nome da Mãe da grande família católica, a Virgem Maria, ao nome do Pai que está no céu:  essa devoção é o Santo Rosário.

O ofício que a Igreja lhe consagra está repleto dessa aliança entre a justiça que sabe recorrer a guerra e a piedade que vive da oração. O capítulo das Vésperas é como que o seu programa: “Deus cobre-te do manto da justiça de Deus e põe sobre a tua cabeça o diadema da glória do Eterno. Deus mostrará o teu resplendor a todos os que estão debaixo do céu. O nome, que Deus te imporá para sempre, será: Paz da justiça e glória da piedade” 3

Em Matinas, apresentam-se figuras religiosas e guerreiras do Antigo Testamento: Moisés sobre a montanha, estendendo os braços acima dos amalequitas subjugados, é uma forte imagem do Santo Pontífice rezando, durante a batalha de Lepanto, com as confrarias do Rosário; São Miguel derrubando o dragão é uma imagem do angélico pontífice que se impõe o nome de Pio para combater os ímpios. Ouve-se como que o entrechoque e o estrépito da batalha em meio a esses louvores varonis: o ardor da sua fé é o ardor do guerreiro, sua esperança é forte como armadura, sua caridade não teme a multidão dos seus adversários.

Em Laudes a piedade do nome que escolheu se relaciona com o seu governo prudente e reparador, sua justiça em reprimir os vícios, a constância, a continência, a abstinência, a temperança, todas as virtudes, enfim, pelas quais ele conquistava sobre si mesmo as mais belas vitórias. Ele é o Príncipe dos seus irmãos, o sustentáculo do rebanho, a força do povo, diz o capítulo de Sexta; o capítulo de Noa, respondendo a essa voz como um eco, confia o segredo do seu poder: "ele louvou o Senhor de todo o coração e amou a Deus, seu Criador".

E a oração da festa, resumindo e entrelaçando na súplica os dois aspectos deste santo incomparável, exprime-se assim: "Ó Deus que, para destruir os inimigos da vossa Igreja e restaurar o culto divino, dignastes escolher o bem-aventurado Pio como pontífice soberano, fazei que sejamos defendidos pela sua proteção e associados ao vosso serviço, de sorte que, após termos vencido os nossos inimigos, gozemos da paz perpétua. Amém". 

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O dom de Piedade não poderia se manifestar do mesmo modo na menina santa de Montepulciano e no papa guerreiro do Rosário: “Uma estrela difere de outra pelo seu fulgor”. Por sua vez, o ancião centenário que viu a mocidade religiosa começar na altura dos cinquenta anos de idade, o sábio consagrado aos estudos solitários que, ao assumir o governo de sua Ordem em certo momento, renunciou o quanto antes o comando, não seria capaz da piedade de um rude soldado de Cristo ou de uma pequena religiosa. O que caracteriza São Raimundo é o culto da família católica, considerada já não a partir do  divino Chefe ou da bendita Mãe, mas em si mesma, em suas gloriosas lembranças e tradições. 

Quem já não se deparou com um desses sábios encanecidos pela idade que empregam todas as forças a procurar, a descobrir, a classificar, a publicar os documentos que narram a vida e as glórias da pátria, da cidade, da terra, da família religiosa ou terrestre? Esse culto dedicado aos documentos da família não pertence, à sua maneira, à piedade?

“Quem venera as Sagradas Escrituras, diz Santo Agostinho, pesquisa com piedade e não rejeita o que ainda não compreende” 4. São Raimundo foi piedoso assim. Inspirado por Deus, sob a direção do Papa Gregório IX, empreendeu durante a metade da vida a coleção das Decretais, ou seja, de todos os textos, todos os atos, todas as lembranças, todas as datas memoráveis desta grande família que é a Igreja católica. Os cinco livros das Decretais são ainda hoje, junto ao Decreto de Graciano que elas completam, a base da legislação da Igreja. Desses livros é que vive, em grande parte, a ordem eclesiástica, a harmonia social da qual nós, católicos do tempo presente, nos beneficiamos sem imaginar quanto trabalho foi preciso para nos assegurarmos dela. 

Nosso velho irmão São Raimundo ergue-se por entre os séculos, conservando o passado e assegurando o futuro, inspirado que foi por um profundo espírito de piedade pela família cujo Pai é Deus e cuja Mãe é Maria.

Quidquid est alta pietate mirum

Exhibet purus, niveumque morem,

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Sparsa summorum monimenta Patrum

Colligit mira studiosus arte

Quaeque sunt prisci sacra digna cedro

Dogmata juris

Alta e admirável piedade 

Exibe o justo, e a castidade

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Os monumentos dos Santos Padres

As tradições da fé cristã

As regras do Direito antigo e santo

Com arte recolheu

 

Santo Tomás, fecundíssimo nos desdobramentos do Dom de Piedade, descobre uma terceira analogia com as bem-aventuranças evangélicas. Depois de já ter associado a ele a bem-aventurança dos mansos e a dos que tem fome e sede de justiça, atribui-lhe agora a dos misericordiosos 5. Eis o aspecto sob o qual nos aparece São Raimundo. Por que teria ele passado a maior parte da vida no estudo árido do Direito senão para que merecesse tornar-se, no encargo de Penitenciário-Mor, o órgão supremo das misericórdias divinas na Igreja? A sincera piedade que o inspira não o tornou menos sequioso da salvação do último dos filhos da grande família católica do que dos interesses do seu governo. Sob esse aspecto, como não reconhecer mais uma vez um dom excelente do Espírito de Deus?

(Tradução: Permanência - Revista Permanência 291)

  1. 1. S.T. IIa IIae, q. 121, a. 1.
  2. 2. S. T., IIa. IIae. q. 121, a. 2.
  3. 3. Br 5, 2-3.
  4. 4. Sermo in monte, 1. Essas palavras pertencem ao capítulo em que Santo Agostinho relaciona as Bem-aventuranças aos Dons.
  5. 5. S. T. IIa. IIae, q. 121, a. 2.
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