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O cisma imaginário

3. 10 - O cisma imaginário

o cisma declarado contra D. Lefebvre não se enquadra, portanto, em nenhuma categoria conhecida e admitida de cisma (Cf. Sim Sim Não Não, último número - maio/2000) Não é o cisma em sentido formal, nem pode ser em sentido virtual. O juízo de condenação da Santa Sé está fundado sobre uma pseudo categoria de cisma tanto no plano teológico como no jurídico. Encontramo-nos diante de uma autêntica monstruosidade.

Mas, não existe arbítrio que não procure dar-se um simulacro de bom direito, mediante qualquer um arrazoado que pareça ter um fundamento. No nosso caso, qual pode ter sido o raciocínio? Pode haver dois raciocínios no caso. Comecemos pelo primeiro.

1) Visto que, com base no novo conceito de colegialidade aprovado pelo Vaticano, deve-se considerar que os bispos, no ato da sagração, recebem também, simultaneamente, o poder de jurisdição (C. 375 § 2 de C.l.C. vigente), daí deriva que uma sagração sem mandato seria cismática. De fato, sagrando os bispos sem mandato, o sujeito agente lhes conferiria, ipso facto, sem mandato, também o poder de jurisdição 1. Mas, se se dá também o poder de jurisdição, então há cisma. A malograda colação, por parte de D. Lefebvre, do poder de jurisdição, não teria êxito para evitar objetivamente o cisma. por causa do sugerido no c. 735, § 2, cit.

Este argumento é totalmente inaceitável. Qual é, de fato, a lógica do c. 375, § 2? Este contém duas proposições, uma principal e uma relativa dependente da primeira. A principal enuncia: "Os bispos com a própria sagração episcopal recebem, com o dever de santificar, também os deveres de ensinar e governar"2.

A disputa plurissecular, se no ato da sagração o bispo também recebe, ipso facto, o poder de Jurisdição, parece ter sido resolvido pelo presente ClC em sentido favorável às teses que sustentam a sua recepção automática. Nisto o Código aplicou expressamente as diretivas do Vaticano II, como aparecem na Lumen Gentium, § 21 e no decreto Christus Dominus, § 23 3. O texto do § 21 da Lumen Gentium é literalmente referido pelo Código. Todavia o cânon prossegue com a seguinte proposição relativa, também expressa nos textos do Concilio: "os quais (deveres - ndr) todavia, por sua natureza, não se podem exercer senão na comunhão hierárquica com a Cabeça e os membros do Colégio"4. Portanto, o texto distingue entre os poderes recebidos com a sagração e o seu exercício. É uma distinção tradicional entre a titularidade de um direito (o poder) e o seu exercício. E como se deve atuar este? Isso se deixa a livre determinação do bispo consagrado, se não houver necessidade de algum ato que o autorize? Não, o exercício dos encargos episcopais deve ocorrer "em comunhão hierárquica com a cabeça e com os membros do Colégio”, isto é, em comunhão com o Papa e os membros do Colégio episcopal. Na prática, como foi recordado na nota praevia à Lumen Gentium, esses poderes se podem exercer somente "iuxta normas a suprema auctoritate adprobatas" ("segundo as normas aprovadas pela suprema autoridade"). Isto significa que a comunhão é "hierárquica" e requer, para sua atuação, o respeito das competências garantido pela missio canonica mencionada expressamente pelo § 24 da Lumen Gentium 5.

Aqui não entramos no mérito do conceito semiconciliarista (e portanto errôneo) da colegialidade que o Vaticano II tentou introduzir! 6 No fim do nosso ensaio interessa-nos pôr em relevo o seguinte ponto: se o poder de jurisdição do bispo tem, não obstante, sempre necessidade da "missio canônica” para ser capacitado - missio que efetivamente não foi abolida pelo novo Código - isso significa ser a ''missio'' sempre indispensável para a instituição duma hierarquia. E já que o cisma em sentido formal é, como se viu, a separação com o fim de instituir a hierarquia de uma Igreja paralela, para haver cisma ocorre sempre uma "missio canonica" ilegítima. Com o regime estabelecido pelo Vaticano II foi mudada a qualificação da "missio canônica” de ato que confere um poder (de jurisdição) se tornou ato que confere o exercício de um poder, o qual estaria já intrinsecamente presente no bispo em virtude da sagração. Mas afinal não há nenhuma mudança, porque a "missio" permanece sempre o ato cismático por excelência, porque só ela confere o exercício daquele poder de jurisdição, graças ao qual uma hierarquia paralela se forma. Por isso, faltando tal ato, como no caso das sagrações efetuadas por D. Lefebvre, mesmo sob o ponto de vista do regime vigente,não existe cisma. 7

Abordemos agora o segundo raciocínio possível.

2) As condenações declaradas contra D. Lefebvre salientam como ele, além de ter agido sem mandato, tinha procedido também contra a vontade expressa do Papa, que a 29 de junho de 1988 lhe havia pedido "paternal e firmemente" que adiasse as ordenações. Uma ordenação sem mandato não é necessariamente contra a vontade do Papa. Se existe o estado de necessidade, por cuja causa não é possível obter o mandato, pode-se proceder à sagração confiando no fato de que o Papa aprovará depois da solenidade. Assim aconteceu com os bispos ordenados clandestinamente sob os regimes comunistas.

No caso das sagrações de Ecône verificou-se o fato, aliás raro, de um convite (na realidade uma advertência) do Papa para que não o realizasse, comunicado no dia anterior à data já estabelecida para a cerimônia. Por isso, nos confrontos com D. Lefebvre pesa a dupla acusação de haver agido não só sem a autorização mas também contra a vontade expressa do Papa. O fato de ter agido também contra a vontade expressa do Papa influi na determinação da figura delituosa atribuída ao bispo francês? Não parece adequado. No que respeita à desobediência não parece que, nem mesmo para o CIC, isto constitua um agravante. E realmente, nas comparações da "desobediência" daquele, foi invocado nada menos que o cânon 1382 (citado muitas vezes, que pune a sagração sem mandato). Aqui se pergunta, porém, se o fato de ter agido contra a vontade do Papa poderia ter causado na própria ação um salto de qualidade tal que lhe conferisse a natureza de ato cismático. Este poderia ter sido o "raciocínio". Se se tivesse criado de tal modo uma nova imagem de cisma (mediante a declaração de uma censura ipso iure) que ficaria assim composta ou melhor, constituída de, 1) sagração sem mandato + 2) contra a vontade do Papa. Precisamente uma tal monstruosidade jurídica e teológica foi insinuada no ânimo dos simples fiéis: "desobedeceu a vontade expressa do Papa. portanto é um cismático”':

O fato de que, além da ausência de mandato, tenha havido também uma vontade negativa expressa pela autoridade competente, não muda a qualidade do ato delituoso, que continua sempre um ato de desobediência não cismático por sua própria natureza. Não é sem razão que o Código - isto jamais ficará esquecido - o retoma num cânon bem distinto do que estabelece a pena para o cisma, nem a união entre as duas figuras é possível, fundada noutros cânones, segundo o princípio da interpretação sistemática 8. O que faz a sagração se tornar cismática não é, como deveria desde já ficar claro, a ausência dum mandato, mas a sua conexão com uma missio canonica ilegítima. Nem faz que a ação se torne cismática uma declaração da autoridade competente que, ao lado da ausência de mandato, revele ainda que a vontade de quem o deve conceder é contraria. A presença desta declaração de vontade pode constituir no máximo um agravante para o sujeito desobediente, mas só no foro interno, do ponto de vista moral, uma vez que o CIC não a considera entre as possíveis agravantes (Em todo o caso, poderia considerar-se um agravante quando se tratasse de impor penitências).

No caso de D. Lefebvre, portanto, não cremos que se possa admitir a existência dum agravante deste gênero, uma vez que ele agia em estado de necessidade. O estado de necessidade justifica qualquer agravante deste tipo porque a falta de vontade da autoridade legitima (a qual o Prof Amerio chama desistência sistemática) para executar determinados atos necessários à manutenção da sã doutrina e a salvação das almas, é, em certo sentido, a causa maior da necessidade na qual, um prelado fiel ao dogma chega a encontrar-se (fiel ao dogma e com responsabilidades precisas relativas às almas dos seminaristas, sacerdotes e fiéis). Que a citada falta de vontade na autoridade seja implícita ou não expressa ou se manifeste sob a forma de proibições, é irrelevante no fim da imputação a ser atribuída a D. Lefebvre. Trata-se sempre de simples desobediência, mas efetuada por causa de força maior e por isso não imputável.

Em todo o caso, o fato de que essa se manifeste sob a forma de proibição dum ato em si legitimo e necessário para a salvação das almas não pode ter dado lugar, de modo nenhum, a um novo tipo de cisma, e em sentido formal.

Da circunstância excepcional em que D. Lefebvre deveu agir, mesmo contra a vontade expressa do Papa, querem deduzir a todo o custo, conseqüências indébitas. De fato, quis-se afirmar que o seu ato, adequado àquela circunstância excepcional, não se limitou a violar somente a "lei eclesiástica", mas representou uma "ruptura com a tradição". Isto seria razão porque se deveria considerar "intrinsecamente mau" e por isso, totalmente injustificável. D, Lefebvre ter-se-ia tornado culpado de "ato intrinsecamente mau por uma sagração episcopal contra a vontade do Papa"9. Se essas afirmações correspondessem à verdade, estaríamos em presença de um novo tipo de delito, derivado de uma interpretação completamente nova da categoria dos "atos intrinsecamente maus". Mas, trata-se de uma interpretação insustentável. De fato, a teologia moral nos ensina que o ato intrinsecamente perverso é o que é proibido por ser mau, e não mau por ser proibido. Trata-se de um ato mau em si mesmo segundo a lei natural negativa que proíbe praticá-lo mesmo em perigo de vida "quod in se et intrinsecus malum est", isto é, porque em si mesmo é intrinsecamente mau. Por exemplo, blasfemar, perjurar, mentir, matar um inocente 10. Uma desobediência a uma ordem do superior, por grave que seja, não se pode certamente comparar a um ato de gênero mau em si mesmo, por sua natureza, independentemente da lei que o pune. A sagração de um bispo, feita para a salvação das almas, segundo as intenções da Igreja, não é certamente um ato intrinsecamente mau. Se, na circunstância específica, esta (sagração) é preliminarmente proibida, isto significa que, em conseqüência dessa proibição, pertence mais à categoria dos atos que são maus porque proibidos, não à espécie dos atos em si maus (mesmo se a norma não os pune) e por isso "intrinsecamente maus".

A tese aqui criticada apresenta, pois, um outro aspecto realmente aberrante: o colocar a proibição expressa de efetuar a sagração no mesmo plano do direito natural! De fato, se se diz que desobedecer a um mônito pontifício expressamente dirigido a pessoa que desobedece é ato "Intrinsecamente mau", se dá a este mônito o mesmo valor da lei natural negativa do qual acima se falou, visto que somente as suas proibições se aplicam ao ato em si mau. A advertência do Papa é apenas um dos modos nos quais se exprime o poder supremo de jurisdição possuído por ele na Igreja universal: poder que, embora fundado na constituição divina da Igreja, está certamente subordinado à lei natural, criada por Deus, ocupando na hierarquia das origens uma posição nitidamente inferior.

É, pois, irrelevante a consideração que se desejaria fosse muito importante, se se considerasse a questão a partir do fato de que "nenhum teólogo ou concílio" jamais defendeu a legitimidade de uma sagração episcopal contra a vontade expressa do Papa 11. A constatação e óbvia: qual teólogo ou concilio teria, podido afirmá-Ia no plano dos princípios? Considerando as coisas em abstrato, nem mesmo se poria a questão. Mas o caso nunca foi posto porque jamais houve uma situação como a atual. Ninguém teria podido prever uma crise como a que devasta furiosamente a Igreja a partir do Vaticano II, talvez mais grave que a crise ariana.

As tomadas de posição dos teólogos e concílios visam freqüentemente resolver os problemas do tempo, à luz do dogma, naturalmente. Mas este fato não significa que ele nunca possa ser posto a priori. A experiência que estamos vivendo demonstrou, ao contrário, que o problema pode ser colocado, por ter demonstrado que os expoentes máximos da Igreja atual preferem novidades que contradizem a tradição, em vez de defenderem a tradição contra a novidade e os inovadores. Numa situação semelhante de novidade absoluta e negativa é inteiramente fora de sentido escandalizar-se (porque jamais sucedeu nem se podia pensar que tal sucedesse) pela novidade de uma sagração que se deveu fazer contra a vontade expressa do Papa, quando é esta mesma que se insurge sistematicamente para defender a novidade do rito de Paulo VI, do novo conceito de Igreja, do novo (laicista) conceito de liberdade do homem, em suma, as múltiplas novidades da Igreja "conciliar" contra a Tradição

Mas os críticos de D. Lefebvre foram obrigados a defender teses contorcidas e até absurdas, porque querem que os fatos digam o que estes não demonstram de modo nenhum, a saber, que a suposta perversidade intrínseca das sagrações episcopais de Ecône seria tal que as tornasse "um ato cismático por sua própria natureza”: justamente a tese insustentável da Santa Sé.

  1. 1. A tese é relembrada em The Roma and Econe Handbook. Holy Cross Seminary, 1997
  2. 2. Comm. cit. p.226.
  3. 3. O ponto é mencionado no Commento cit., pp. 226-227. Sobre este ponto ver também a nota praevia cítada ao pé da página da Lumen Gentium. no no 2. Sobre a disputa plurissecular: Dictionaire de Droit Canonique. V. verbete Evêques, col. 569 ss., col. 571-574. Para uma defesa da posição adotada pelo Vaticano II e pelo novo CIC: Bertrams SJ, O poder pastoral do Papa e do Colégio dos Bispos. Premissas e conclusões teológicas e jurídicas. Herder, 1967, pág. 8 ss.; 19 ss ; 25 ss.
  4. 4. Commento cit., p 226
  5. 5. Nota praevia da Lumen Gentium, 2a. Em I Documenti Del Concilio Ecumenico Vaticano II, texto latino-Italiano, Pádua , 1966, p. 278.
  6. 6. Para esta reenviamos a F. Spadafora. La tradition contra il Concilio. L 'apertura a sinistra Del Vaticano 2o., Roma, 1989. p. 177 ss (reimpressão).
  7. 7. Cf. Bertrams, op. Cit "Em tudo o que concerne ao ofício dos bispos de ensinar e governar, o Concílio faz uma nítida e unívoca distinção entre a sua colação feita na sagração Episcopal e o seu exercício, que se pode dar somente na comunhão hierárquica” (pág. 27, n. 14); ou seja, mediante a “missio canônica”. De fato, “o poder criado na sagração episcopal (segundo a sua substância) recebe na missão canônica a sua constituição jurídica porque precisado em relação ao sujeito passivo” (Ibid., pág. 26).
  8. 8. O fato foi mencionado com vigor pelo Pe. Simoulin em Valeurs actuelles, cit. (ver nota 72 do presente trabalho).
  9. 9. Enquête, cit., pp. 44-49.
  10. 10. Noldin, De Principiis, Theoloqia Moralis. 1911, PP. 202-203. Roberti Palazzini, Dizionario di teologia morale, Roma, 1954, verbete causa excusante (da observância da lei) p. 207: G. B. Guzzetti. Morale generale, Marietti. 1955, 1. pág. 152.
  11. 11. Enquête, cit. p 41.
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