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Estado de necessidade: sentido objetivo e subjetivo

3.6. Estado de necessidade: sentido objetivo e subjetivo

Do que temos visto, é incontestável que, para o C.D.C. em vigor, as circunstâncias atenuantes e que isentam, têm um valor não somente objetivo, mas também subjetivo. O que significa isto? Que se deve fazê-los valer quando a situação de força maior (estado de necessidade, grande temor, etc) existe unicamente no espírito do sujeito agente, fruto dum erro de avaliação de sua parte, devido mesmo à sua falta, isto é, a uma ignorância culpável que impele o sujeito a um "falso julgamento a respeito duma coisa"1.

Retomemos o texto do professor Kaschewski: "Mesmo se se quisesse pôr em dúvida a situação de perigo ["estado de necessidade"] como foi descrita [a sua definição jurídica e a análise da situação espantosa da Igreja atual - n.d.r.] convém averiguar o seguinte: "Ninguém pode negar que um bispo que, nas circunstâncias assinaladas mais acima, sagre, em vista dela, um outro, está, ao menos subjetivamente, convencido de que se trata dum estado de necessidade ruinoso para as almas. Segue-se que não se pode falar duma violação premeditada da lei. Com efeito, quem, contrariamente à lei, crê, mesmo sem razão, no bom fundamento de sua ação, não age de maneira premeditada contra a lei [O novo Código de Direito Canônico é muito claro neste ponto, como se viu]. Também aquele que quisesse supor a existência do estado de necessidade somente no capricho e imaginação do bispo sagrante, dificilmente poderia objetar-lhe que esta concepção, supostamente errônea, seria punível!

"Mas mesmo se alguém lhe quisesse dizer que ele teria interpretado o estado de necessidade, na realidade inexistente, dum modo punível, seguir-se-ia que: 1) a excomunhão não poderia ser infligida como prevista pelo cânon 1382 [para a sagração sem mandato - n.d.r.]; 2) uma pena eventualmente infligida por um juiz deveria ser, em todo o caso, mais clemente do que a prevista pela lei, de sorte que, também neste caso, a excomunhão não seria admissível"2.

Ora, como se pode negar que, no caso de sagrações impostas pela necessidade, "um bispo está pelo menos subjetivamente convencido de que se trata dum estado de necessidade ruinoso para as almas? E o novo Código de Direito Canônico protege esta convicção a ponto de estabelecer uma verdadeira presunção de boa fé, dado que ele a protege mesmo quando é errônea, isto é, mesmo quando ela fosse a conseqüência dum valor de avaliação atribuído ao sujeito agente e não às circunstâncias. É evidente que as normas em vigor tornam praticamente impossível a aplicação da excomunhão "latae sententiae" à sagração dum bispo sem mandato e que, portanto, uma excomunhão declarada com desprezo destas normas (cânones 1323 e 1324) deve ser considerada como totalmente inválida, tendo em conseqüência a nulidade intrínseca de todos os efeitos que o direito canônico lhes atribui.

Como poderia a Santa Sé cometer um erro deste gênero no caso de D. Lefebvre? Poder-se-ia ter movido um processo de intenções contra ele, violando o principio de internis non iudicat Ecclesia, coisa que só Deus pode fazer? De fato, no famoso Comunicado publicado em "L'Osservatore Romano" de 30/06/1988 - 01/07/1988 "referente a boatos que circulam nos meios de D Lefebvre relativos à excomunhão latae sententiae prevista no cânon 1382", ou seja, em relação à opinião -- bem enraizada neste meio -- de que uma excomunhão deveria ser considerada como totalmente inválida, parece que neste comunicado anônimo há um julgamento de intenções, porque ai se acusa D. Lefebvre, e mesmo não veladamente, de má- fé... Ali se diz, com eleito, que naquela circunstância "não se pode aplicar o cânon 1323", que tem em vista, como se sabe, o estado de "necessidade", como condição que isenta da imputabilidade do cisma, pela simples razão de que "mesmo a pretensa 'necessidade' foi criada por D Lefebvre propositadamente para criar um estado de divisão da Igreja Católica"3. Pode-se ser mais claro? E quem "cria propositadamente" uma situação de estado de necessidade para se manter numa "atitude de divisão para com a Igreja Católica", como se deve dizer que ele agiu: de boa ou de má-fé?

É como se se dissesse: D. Lefebvre é o novo Fócio! A suposta má-fé do Bispo, impedindo a aplicação do cânon 1323, justificaria, portanto, a excomunhão! Em seguida é preciso notar que o Comunicado em questão não menciona absolutamente o cânon 1324, que estabelece as famosas circunstâncias atenuantes, mesmo havendo erro imputável ao sujeito agente. O que chamamos a importância subjetiva do estado de necessidade, concebida pelo novo C.D.C., de modo a excluir qualquer julgamento de intenções, foi aqui totalmente silenciado.

Certamente, não podemos crer que as autoridades vaticanas desconheçam o direito canônico. O Silêncio sobre o cânon 1324 tem, a nosso ver, uma razão precisa. De lato, como se pode provar a suposta má-fé num bispo que acreditasse, sem razão, se achar em estado de necessidade, e agisse em conseqüência dela? É uma demonstração -- nós o repetimos - que pode resultar somente dum processo de intenções. E, não obstante, a alusão à má-fé ("pretensa necessidade criada propositadamente") é inteiramente clara no Comunicado. Segue-se que se tentará fazer aparecer a má-fé a partir da vontade cismática, atribuída (injustamente) a D. Lefebvre. As sagrações de Écône, continua de fato o Comunicado, "realizadas expressamente contra a vontade do Papa", devem-se considerar simplesmente como "um ato formalmente cismático segundo o cânon 751, pois [D. Lefebvre] recusou abertamente a sua submissão ao Soberano Pontífice e a comunhão com os membros da Igreja submetidos a Ele"4.

A vontade cismática de D. Lefebvre seria então a prova de sua má-fé em invocar o estado de necessidade. Esta tese contém, em substância, o dispositivo da declaração da condenatória emitida contra o Bispo francês. O ponto central da principal acusação é dado, portanto, pelo conceito de cisma.

Uma representação deformada das normas em vigor

Antes de analisar o cisma do ponto de vista jurídico (este será o nosso próximo degrau na exposição dos termos jurídicos da questão), queremos, contudo, notar como a ausência de menção do cânon 1324, citado mais acima, equivalente à exclusão de qualquer circunstância atenuante possível, da parte da Igreja "conciliar", na sua vontade de perseguir D. Lefebvre e os que, a seu luminoso exemplo e ao de D. Mayer, se mantiveram e mantêm fiéis ao dogma, se tornou uma verdadeira constante, ao ponto de ter provocado até uma representação deformada duma norma do novo C.D.C.

Nós nos referimos ao parecer contendo a Precisão do Conselho Pontifício, já citada, para a interpretação dos textos legislativos sobre a questão da validade da excomunhão declarada a seu tempo (ver a nota 33 do presente estudo). Nesta precisão se declara, contra a "tese Murray": "De qualquer maneira não se pode racionalmente duvidar da validade da excomunhão dos bispos, declarada pelo motu-proprio e pelo decreto, Em particular, a possibilidade de achar circunstâncias atenuantes ou dirimentes sobre a imputabilidade do delito (cânones 1323-1324) não parece admissível. No que concerne ao estado de necessidade no qual D. Lefebvre ter-se-ia encontrado, é preciso relembrar que tal estado deve existir objetivamente [sic] e a necessidade de sagrar bispos contra a vontade do Pontífice Romano, cabeça do Colégio dos Bispos, jamais ocorre" [68].

Esta precisão fornece claramente uma imagem inexata do que está estabelecido no C.D.C. De fato, ela afirma que, para este Código, o estado de necessidade "deve existir objetivamente", enquanto que, segundo o novo Código, o estado de necessidade, como se viu, pode existir também subjetivamente. Assim se dá uma representação deformada das normas em vigor como se o novo Código considerasse o estado de necessidade somente no seu valor objetivo (como para o código Pio X/Bento XV). Assim se passam em silêncio estas circunstâncias atenuantes. O legitimo recurso a elas, se a Santa Sé o tivesse querido, poderia ter impedido a aplicação duma excomunhão, não só injusta, mas inválida.

  1. 1. É a definição de erro dada pela doutrina, referida pelo Comento, ot., p. 761: "o erro, que está em relação de efeito com a ignorância, é um julgamento falso a respeito duma coisa". Quando a ignorância, "ela é a falta da ciência devida, ou seja. habitual". Ela pode ser culpável ("leve, grave, crassa, passiva, afetada ou inteiramente dolosa"). A ignorância que "suprime toda a imputabilidade penal é somente aquela que não é culpável" (op. dt., ibid.].
  2. 2. Cf. 5151 no no. agosto de 1988. ot., pp. 56, tr Ir .. em "La tradltlon excomuniquée", pp 5 56 (Publicações do "Courrer de Rome") (esgotado) .
  3. 3. Osservatore Romano, cit.
  4. 4. Ibld
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