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XV. A Contra Revolução - Os espanhóis

XV

A Contra-Revolução

II. – Os Espanhóis

PREÂMBULO

1o Em regra o francês não conhece a Espanha, e ainda que por lá tenha passado, não compreende absolutamente nada, porque leva consigo juízos de valor pré-fabricados. (Aliás, isso não é de hoje). Do mesmo modo que fica chocado diante de um discutível hábito anglo-saxão, deixa-se levar por um complexo de superioridade em face de um país tão grande e profundamente civilizado quanto a Espanha.

2o O intelectual francês, ainda que por profissão, ao ensinar filosofia, não conhece quase nada do pensamento espanhol (com as honoráveis exceções, que só faz confirmar a regra).

3o A psicologia espanhola rejeita os subterfúgios e as “nuances das nuances etc.”; tal como o céu da Península, ela é toda de contrastes fortes e marcantes: o amor, a morte, a mística religiosa, a anti-religião frenética, a fidelidade monárquica, a anarquia descomedida etc..

4o Os problemas sociais da Espanha são mui reais; contudo nessa lição consideraremos particularmente a doutrina política de alguns importantes autores, sem pretender apresentar juízo adequado da Espanha de 1961.

A filosofia política espanhola possui, a nosso ver, três fases importantes:

  1. a)  O pensamento dos doutores da Contra-Reforma. A Espanha é então a “Luz de Trento”. É Vitória, Suarez etc. (v. lição sobre a Contra-Reforma).

  2. b)  Os autores da idade dita “barroca”, como Castillo de Bobadilla, Covarrubias, Orozco, Gracian, Juan Marquez, Numez de Castro, Quevedo y Villegas, Rivadeneyra, Saavedra Fajârdo etc., solenemente ignorados em França, e que no entanto são interessantíssimos. Em geral não são filósofos, menos ainda teólogos, mas altos funcionários, secretários, advogados, conselheiros, militares, diplomatas. Tendência dominante: concebem a política de maneira menos “sacral” que os contra-reformistas, todavia subordinam-na às exigências da moral: interessados pelo maquiavelismo – por vezes são tentados um pouco por ele – conseguem todavia resistir-lhe, retendo apenas o sentido do concreto e da observação política. Sobre o assunto, consultaremos a obra interessantíssima de J. A. Maravail “La philosophie politique espagnole au XVIIe siècle” (Vrin, 1955). Lamentamos não ter tempo para consagrar-lhe uma lição a parte.

  3. c)  Os autores do séc XIX, que nos são mais próximos devido aos problemas que enfrentam e, como veremos, que possuem uma lucidez assustadora em face da história política contemporânea.
    Dentre eles, ficaremos sobretudo com Balmes, Donoso Cortés e Menendez y Palayo.

    JAIME BALMES (1810-1848) é padre secular catalão (e inutilmente jesuíta, como dirá um guia espanhol recente). De família paupérrima, levando uma austera vida de estudos entrecortada por viagens a diversos países da Europa, morre de tuberculose moço, deixando considerável obra

(“Filosofia fundamental” 4 vol., “O Protestantismo comparado ao Catolicismo”, “O Critério”, “Cartas a um cético” etc., contando inclusive com poemas e ensaios literários variados). Seminário de Vich, universidade de Cervera etc. Poliglota notável, que sabia francês, inglês, alemão. Leitor insaciável. Matemático apreciável (trigonometria).

Sua orientação filosófica é uma doutrina da certeza espontânea e vital, indestrutível apesar das finezas céticas e idealistas. Ademais é eclético, e não “tomista”. Balmes diz que se é para escolher “preferiria permanecer homem sem ser filósofo a deixar de ser homem, vindo a ser filósofo”. (Comparar com a frase em que Hegel diz exatamente o contrário: mais alguém se torna filósofo, mais deixa de ser homem como os demais. Dois temperamentos intelectuais, duas concepções da cultura antagonistas!).

A atividade política de Balmes é um tanto restrita, apesar de seu papel na redação de diversas revistas de idéias. Todavia ao defender as idéias tradicionais, tenta apresentar um fator moderador e conciliador às facções que dilaceravam a Espanha. Respondendo a Guizot, apologista da influência protestante na Europa, justifica a influência católica em face das exprobações que dirigiam contra ela os “filósofos” do séc. XVIII e os liberais do séc. XIX, sobretudo no plano das implicações sociais e políticas. Citaremos mais a frente alguns textos realmente proféticos a respeito do futuro papel da Rússia.

DONOSO CORTÊS (1809-1853). Ele será o destaque dessa lição, tão importantes nos parecem suas opiniões na hora atual.

Espanhol do sul. Estuda em Sevilha, onde lhe ensinam...Voltaire e Rousseau. Flerta com a carreira política (1832). Em 1834, chocado com o espetáculo dos motins, incêndios de igrejas, massacres de padres. De 1837 a 1848 ação política, jornalismo, discursos etc.. Deputado diante da Corte1. Emigra quando do golpe de estado liberal de 1840. Após 1847 (morte de seu irmão), político francamente contra-revolucionário, católico “a toda prova”. Em 1849 embaixador extraordinário a Berlim. Donoso Cortés conhecerá os maiores homens da época, desde o rei da Prússia Guilherme IV, Metternich, até a Veuillot, Montalembert, Ranke, Schelling etc.. Sua opinião terá peso no meio diplomático europeu. Bismark o estimará. Pedir-lhe-á em diversas ocasiões o parecer sobre a situação européia, em diversas chancelarias. (Ele não é, como podemos ver, teólogo ou filósofo, mas diplomata e escritor político “engajado” ).

Obras a citar: “Discurso acerca da ditadura” (1849), “Discurso acerca da Europa” (1850). “Ensaio acerca do Catolicismo, do Liberalismo e do Socialismo” (1851), “Carta ao cardeal Fornari acerca dos erros de nosso tempo” (1852). Sem falar da volumosa correspondência com o duque De Broglie, Montalenbert etc...2

Na época moderna, seu pensamento chamou a atenção de considerável número de filósofos políticos, de sociólogos e de historiadores das idéias, sobretudo alemães (Carl Schimitt, Schram, L. Fisher, Pazywara), mas também franceses (Chaix-Ruy), italianos, espanhóis, portugueses etc..

A idéia que tem do homem não é por assim dizer otimista: sem dúvida a criatura humana originou-se das boas mãos de Deus, mas escolheu o mal (pecado original) e, apesar da Redenção, continua profundamente ferida. Se autores há que “confiam no que é humano”, Donoso certamente não está entre eles; com a [usada] rispidez espanhola, as descrições do homem concreto semelham-se sobremaneira com as de De Bonald (v. lição precedente). Para ele a civilização dita “moderna” está totalmente fora de rumo – trate-se do liberalismo político, do coletivismo ou da adoração à ciência, ela é maléfica e voltada ao erro, geratriz de catástrofes. Já compararam Donoso Corte ao profeta Jeremias, sem refletirem no fato de que, ao plano religioso, tal idéia diz mais do que queriam dizer3. Não crê no concerto da Europa (v. mais a frente). Contudo faz-se desgostoso ao lhe taxarem o “pessimismo” ou o “desespero”, já que acima de tudo a constatação de uma triste realidade não é pessimista ou otimista, mas verdadeira e objetiva... Além crê na Providência e na intervenção de Deus, ao menos no final, para concertar a situação aparentemente perdida (“Proclamo o triunfo natural do mal sobre o bem, e o triunfo sobrenatural de Deus sobre o mal”).

Enfim exorta à ação militante: difusão de idéias verdadeiras, luta incessante contra os erros doutrinais e sanguinários (“Depois dos sofismas, vêm as revoluções; depois dos sofistas, vêm os carrascos...”), e como último recurso a luta armada, se todos os outros meios revelarem-se impossíveis4.

O pensamento de Donoso expressa-se de forma às vezes veemente, oratória (por vezes até demais) e ao mesmo tempo dialética, quiçá axiomática (por ex., no “Ensaio acerca do Catolicismo” etc.), i. é, enunciando o mais claro possível seus princípios e os do adversário, aproximando-os ao máximo, clarificando-lhes as perspectivas etc..

O catolicismo militante e combativo inspira toda a obra, dentro da melhor tradição espanhola. De alto a baixo toda a síntese donosiana inspira-se no catolicismo tradicional, de tal modo que poderia derrotar um francês de semelhante espírito. Não suporta as aproximações, nem as soluções provisórias (v. a violência com que apostrofa a clerezia francesa em 1848 e seus complexos de inferioridade, sua cumplicidade latente para com a Revolução em ascensão, sua adoração ao que é novo etc.).

As revoluções, sobretudo a Revolução com R maiúsculo, i. é, a Revolução Francesa e suas repercussões européias, e depois mundiais, não tem para Donoso uma causa essencialmente econômica ou social. A fome, a miséria podem engendrar motins, mas não subversão organizada e prolongada. Para isso faz-se mister de idéias, de doutrina, de militância; enfim a intervenção do fator ideológico enquanto tal. Para ele, como para Camus, trata-se de uma revolta metafísica (“Sereis como deuses”).

De fato existem duas concepções do mundo em ação, face a face: uma, plena, afirmativa, construtiva, pautada no firme conhecimento do real e dos valores autênticos, e por conseguinte, politicamente tradicionalista, inimiga da abstração (v. lição sobre Bonald – Maistre), eis a concepção católica. A outra, negativa, hipercrítica, pautada na discussão e no perpétuo questionamento de tudo, dissolvente e paralisante, tendo como conseqüência política a passagem do liberalismo “burguês” e individualista ao coletivismo integral. No rejeitar as noções clássicas de religião, de pátria, de autoridade, de sacrifício, a Europa virtualmente se suicidou. Donoso prediz-nos a dissolução do espírito militar e religioso (cuja simbiose salvara a ordem ocidental), a ascensão das morais da facilidade e do prazer, a destruição das elites e das hierarquias qualitativas, em suma a atomização gregária e totalitária da sociedade, nova forma da barbárie. Ele dá um papel de destaque a Espanha como catalisador na resistência a tal processo, chegando mesmo a compará-la a Israel em sua luta por Deus (não detivera, depois rechaçara o Islão? Não parara e reprimira a expansão da Reforma? Não dera um basta às idéias revolucionárias vindas da França?) É preciso não perder a coragem... Essa é a mensagem final de Donoso Cortês. Se acrescentarmos ainda as previsões acerca da Rússia (v. adendo a essa lição) não se poderá dizer que está ultrapassado!

MENENDEZ PALAYO (1856-1912) é um notável polígrafo. Nascido em Santander, ensinara literatura a Universidade de Madri, sendo em seguida nomeado diretor da Biblioteca Nacional. De erudição assombrosa, não é todavia filósofo; algumas de suas conclusões nessa matéria (severidade defronte a filosofia escolástica, amor da Renascença) parecem-nos deveras discutíveis. Mas o cerne da obra é assaz sólido, notadamente “la Ciencia española”, onde o autor demonstra, através de faustoso aparato bibliográfico, a enorme contribuição da Espanha à cultura e à civilização ocidentais, além da “História dos heterodoxos espanhóis”. Infelizmente, faltam-nos o tempo e espaço para lhe consagrar uma lição em especial. De resto a síntese de Donoso parece-nos mais importante e atual que a de Menendez.

Não faltariam nomes para citar dentre os autores espanhóis que continuaram essa grande tradição de pensamento contra-revolucionário cristão e não totalitário, procedentes da Contra-Reforma (Maextu, J.M. Peman etc.). Há aí uma grande lição que devemos aprender. Como escrevera Leopoldo Palácios, professor na Universidade de Madri, “no momento em que os cristãos aceitavam – como aceitam – retornar sem resistência às catacumbas, a Espanha recorda que sempre lutara pela Igreja das catedrais”.

 

Addendum

Os Espanhóis do séc. XIX e a Rússia

“Alguns crêem que a Europa não conhecerá novamente conflitos semelhantes aos da irrupção dos bárbaros do norte ou dos árabes. Talvez não tenham refletido o bastante para o que poderia advir, dentro da ordem da Revolução, de uma Ásia governada pelos Russos”. (Balmes).

“Entre o despotismo moscovita e o socialismo europeu há afinidade profunda. Isoladamente, agem da mesma forma, um em prol do outro. Um dia tornar-se-ão uma só e mesma ação... aí então, a hora da Rússia soará; aí então, a Rússia poderá marchar tranquilamente de arma em punho por sobre a Europa; aí então o mundo presenciará a maior desgraça que a História tenha registrado” (Donoso Cortês, 1850).

Igualmente:

“Na Rússia haverá um colossal império materialista e comunista” (textual, 1850).

Louis Veuillot é francês, mas mui ligado a Donoso Cortês. Imbuído daquela escola, escreve:

“Chegará a hora, cada vez mais próxima, em que a Rússia, mestra das hordas incontáveis que ela adestra, mestra dos segredos da ciência, assaz civilizada para lhes perfeccionar, mas assaz bárbara para lhes usar sem escrúpulo, estenderá suas pretensões de domínio sobre a Europa. Que poderá fazer esta, corrompida de impiedade, depravada pela Revolução e por dissensões intestinas, sem comandantes, ou com comandantes dispostos à traí-la, ou ainda, disposta a trair-se?”. 

 

  1. 1. A Corte: assembléia representativa em Espanha e Portugal [N. da P.]
  2. 2. Esse homem de família numerosa (marques de Valdegamas) vivia em tal desapego que dava, literalmente, tudo o que lhe pertencia. No momento de partir a uma cerimônia oficial, Veuillot alertou-o da camisa rasgada. Ele respondeu, com grande embaraço: “é que não tenho mais nenhuma”...
  3. 3. ...O autêntico profeta é o pregoeiro da desgraça? (S. Dheilly, professor no Instituto Católico de Paris, “Les prophètes”, Fayard, p. 31 e p. 33). Os adversários de Jeremias, que só de anunciar prosperidade e vitória tratavam, não se quietaram até que o profeta fosse reduzido ao silêncio. Como recentemente dizia um jornalista: “Tornamo-nos mais odiosos ao anunciar as desgraças que de fato acontecem, que ao predizer alegrias que nunca vêm...’.
  4. 4. Se se vê nisso um não sei quê de “fanatismo espanhol”, queiram ler o que diz o Doutor-Tipo da Igreja, São Tomás de Aquino: o que padece a morte pelo bem comum sem parte com o Cristo, não merece a auréola (de mártir); mas, se tem parte com Ele, merecerá a auréola e será mártir, defendendo a cidade contra o ataque de inimigos que tentam abalar a fé no Cristo, recebendo a morte em tal defesa (Suma Teológica. Supl. q. 96, art. 6, art. 11).
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