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Breve antologia de trechos admiráveis do Pe. Antônio Vieira

BREVE ANTOLOGIA DE TRECHOS MEMORÁVEIS

COLHIDOS TODOS DA OBRA DO SERMONISTA MOR, GLÓRIA DE PORTUGAL

E GLÓRIA DE NOSSAS LETRAS

PADRE ANTONIO VIEIRA

Invocação do nome de Maria:

Do sermão do Santíssimo nome de Maria pregado na ocasião em que a Santa Sé instituiu a festa universal do nome de Maria.

Sermões, 11° vol.

Só vos digo que invoqueis o nome de Maria quando tiverdes necessidade dele: quando vos sobrevier algum desgosto, alguma pena, alguma tristeza: quando vos molestarem os achaques do corpo, ou vos não molestarem os da alma: quando vos faltar o necessário para a vida, ou despejardes o supérfluo para a vaidade: quando os pais, os filhos, os irmãos, os parentes se esquecerem das obrigações do sangue: quando vo-lo desejarem beber a vingança, o ódio, a emulação, a inveja: quando os inimigos vos perseguirem e os amigos desampararem, e de onde semeastes benefícios, colherdes ingratidões e agravos: quando os maiores vos faltarem com a justiça, os menores com o respeito, e todos com a proximidade: quando vos inchar o mundo, vos lisonjear a carne, e vos tentar o demônio, que será sempre e em tudo: quando vos virdes em alguma dúvida, ou perplexidade, em que vos não saibais resolver, nem tomar conselho: quando vos não desenganar a morte alheia, e vos enganar a própria, sem vos lembrar a conta de quanto e como tendes vivido, e ainda esperais viver: quando amanhecer o dia, sem saberdes se haveis de anoitecer, e quando vos recolherdes à noite, sem saber se haveis de chegar a manhã: finalmente, em todos os trabalhos, em todas as aflições, em todos os perigos, em todos os temores, e em todos os desejos e pretensões, porque nenhum de nós conhece o que lhe convém: em todos os sucessos prósperos ou adversos, e muito mais nos prósperos, que são os mais falsos e inconstantes: e em todos os casos e acidentes súbitos da vida, da honra, da fazenda e principalmente nos da consciência, que em todos anda arriscada, e com ela a salvação. E como todas estas coisas, e cada uma delas necessitamos de luz, alento e remédio mais que humano; se em todas e cada uma recorremos à proteção e amparo da Mãe das misericórdias, não haverá dia, nem hora, nem momento, que não invoquemos o nome de Maria.

O Juízo dos Homens:

D’um sermão do advento, tendo por tema: que o juízo dos homens é mais temeroso que o de Deus.

Sermões, 3° vol.

Vede que grande é a fidalguia do juízo de Deus. Apareceis diante do tribunal divino, acusam-vos os homens, acusam-vos os anjos, acusam-vos os demônios, acusam-vos vossas próprias obras, acusam-vos o céu, a terra, o mundo todo, se a vossa consciência vos não acusa, estai-vos rindo de todos. No juízo dos homens não é assim. Tereis a consciência mais inocente que a de Abel, mais pura que a de José, mais justificada que a de São João Batista: mas se tiverdes contra vós um Caim invejoso, um Putifar mal informado, ou um Herodes injusto, há de prevalecer a inveja contra a inocência, a calúnia contra a verdade, a tirania contra a justiça, e por mais que vos esteja saltando e bradando dentro no peito a consciência, não vos hão de valer seus clamores. Vede que comparação tem este rigor com o do juízo de Deus. Acho eu muita graça aos pregadores, que para nos representarem a terribilidade do juízo divino, trazem aquela autoridade ou oráculo de Deus a Samuel: Homo videt ea quæ parent, Dominus autem intuetur cor: (I Reg. XVI, 7). Os homens vêem só os exteriores, porém Deus penetra os corações: antes por isso mesmo é muito mais para temer o juízo dos homens: se os homens conheceram os corações, se aos homens se lhes pudera dar com o coração na cara, então não havia que temer seus juízos. Que maior descanso e que maior segurança, que trazer um homem sempre consigo no seu coração a sua defesa? Acusais-me, condenais-me, infamais-me; quereis mil testemunhas, pois ei-las aqui, e mostrar-lhes o coração: Bona conscientia mille testes. Sabei vós para quem não era boa invenção a de os homens verem os corações? Para os traidores, para os hipócritas, para os lisonjeiros, para os mentirosos e para outra gente desta ralé; mas para os zelosos, para os verdadeiros, para os honrados, para os homens de bem, ó que grande costume, ó que grande felicidade fora! Mas como a consciência no juízo humano não vale testemunha, quem leva a calúnia nas obras, que importa que tenha as defesas no coração?

Os papas e os bispos no Juízo Final:

Sermão do Advento pregado na capela real em 1650.

Sermões, 2° vol.

Sairão pois os anjos; vêde que suspensão e que tremor será o dos corações dos homens naquela hora. Sairão os anjos e irão primeiramente ao lugar dos papas: Et separabunt (faz horror só imaginar, que em uma dignidade tão divina e em homens eleitos pelo Espírito Santo há de haver também que separar). Et separabunt malos de medio justorum. E separarão os pontífices maus dentre os pontífices bons. Eu bem creio que serão muito raros os que se hão de condenar, mas haver de dar conta a Deus de todas as almas do mundo, é um peso tão imenso que não será maravilha que, sendo homens, levasse alguns ao profundo. Todos nesta vida se chamaram padres santos; mas o dia do Juízo mostrará que a santidade não consiste no nome senão nas obras. Nesta vida beatíssimos, na outra mal-aventurados: Oh que grande miséria!

Sairão após estes outros anjos e irão ao lugar dos bispos e arcebispos: Et separabunt malos de medio justorum. Lá vai aquele porque não deu esmolas: aquele porque enriqueceu os parentes com o patrimônio de Cristo: aquele porque, tendo uma esposa, procurou outra melhor dotada: aquele porque faltou com o pasto da doutrina a suas ovelhas: aquele porque proveu as igrejas nos que não tinham mais merecimento que o de serem seus criados: aquele porque na sua diocese morreram tantas almas sem sacramentos: aquele por não residir: aquele por simonias: aquele por irregularidades: aquele por falta de exemplo da vida e também algum por falta de ciência necessária, empregando o tempo e o estudo em divertimentos, ou da côrte e não de prelado, ou do campo e não de pastor. Valha-me Deus, que confusão tão grande! Mas que alegres e que satisfeitos estarão neste passo, um São Bernardino de Sena, um São Boaventura, um São Domingos, um São Bernardo, e muitos outros varões santos e sisudos, que quando lhes ofereceram as mitras, não quiseram subir à alteza da dignidade, porque reconheceram a do precipício. Pelo contrário, que tais levarão os corações aqueles miseráveis condenados? Maldito seja o dia em que nos elegeram, e maldito quem nos elegeu: maldito seja o dia em que nos confirmaram, e maldito quem nos confirmou. Se um homem mal pode dar conta de sua alma, como a dará de tantas? Se este peso deu em terra com os maiores atlantes da Igreja, quem não temerá e fugirá dele?

A casa da Sabedoria

Do conhecido sermão de Santa Catharina pregado à Universidade de Coimbra em 1663 e destinado a exaltar o valor da verdadeira sabedoria.

Sermões, 2° vol.

A casa que edificou para si a Sabedoria: Sapientia ædificavit sibi domun (Prov. IX, 1) era aquela parte mais interior e mais sagrada do tempo de Salomão, chamada por outro nome Sancta Sanctorum. Levantavam-se no meio dela os dois grandes querubins, cujo nome quer dizer sábios, e são entre todos os coros dos anjos os mais eminentes na sabedoria. Com as asas cobriam estes querubins a Arca do testamento, e com as mãos sustentavam o propiciatório, que eram o tesouro e o assento da sabedoria divina. A Arca era o tesouro da sabedoria divina em letras, porque nela estavam encerradas as tábuas da lei, primeiro escritas e depois ditadas por Deus; e o propiciatório era o assento da mesma sabedoria em voz, porque nele era consultado Deus, e respondia vocalmente, que por isso se chamava oráculo. As paredes de toda a casa em roda estavam ornadas com sete palmas, cujos troncos formavam outras tantas colunas; e os ramos de umas para as outras faziam naturalmente seis arcos, debaixo dos quais se viam em pé seis estátuas também de querubins. Esta era a forma e o ornato da casa da Sabedoria, edificada por Salomão, porém traçada por Deus; e não se viam em toda ela mais que querubins e palmas, em que a mesma Sabedoria, como vencedora de tudo, ostentava seus troféus e triunfos.

Mas se Deus naquele tempo se chamava Dominus exercituum, e se prezava de mandar sobre os exércitos e batalhas, e dar ou tirar vitórias; parece que as estátuas colocadas debaixo dos arcos triunfais de palmas não haviam de ser de querubins sábios, senão de capitães formosos. Não pareceria bem debaixo do primeiro arco a estátua de Abraão com a espada sacrificadora de seu próprio filho, vencendo a quatro reis só com os guardas das suas ovelhas? Não diria bem debaixo do segundo arco a estátua de Moisés com o bastão da vara prodigiosa, afogando no Mar Vermelho a Faraó, e triunfando de todo Egito? Não sairia bem debaixo do terceiro arco a estátua de Josué com o sol parado, desfazendo o poder e geração dos gabaonitas sem deixar homem a vida? Não avultaria bem debaixo do quarto arco a estátua de Gedeão com a tocha na mão esquerda, e a trombeta na direita, metendo em confusão e ruína os exércitos inumeráveis de Madian e Amalech? Não campearia bem debaixo do quinto arco a estátua de Sansão com o leão aos pés, e a queixada do jumento na mão matando a milhares de filisteus? Finalmente, não fecharia esta famosa fileira a estátua de David com a funda e a pedra derrubando o gigante, e cortando-lhe a cabeça com a sua própria espada? Pois se estas seis estátuas famosas ornariam pomposamente a sala do Senhor dos exércitos, porque razão os arcos triunfais das palmas cobrem antes estátuas de querubins sábios, que de capitães valorosos? Porque é certo na estimação de Deus (ainda que alguns homens cuidem o contrário) que as vitórias da sabedoria são muito mais gloriosas que as das armas, quanto vai das mãos à cabeça. Por isso quis o mesmo Deus que lhe edificasse a casa não o pai senão o filho; não David, o valente, senão Salomão, o sábio.

Utilidade da dor

Do segundo dos discursos apelidados “Cinco pedras de David” e proferidos em Roma, em italiano, perante a Rainha da Suécia.

Sermões, 12° vol.

Nem a natureza, nem Deus fizeram neste mundo coisa alguma ociosa, inútil, e sem fim; e qual é o fim para que Deus fez a dor, que parece tão contrária e tão inimiga da mesma natureza? Pelos efeitos se vê: nenhum mal se remedeia com a dor senão o pecado; nenhum bem se restaura pela dor senão a graça; logo só para remédio deste mal e só para restauração deste bem foi feita a dor. Oh dor! remédio único do sumo mal! Oh dor! preço único do sumo bem! E que maior dor, que ver os abusos em que te desperdiçam os homens sem utilidade, nem proveito! Este se dói da sua pobreza, e nem por isso deixa de ser pobre; aquele se dói da sua enfermidade, e nem por isso se vê são: outro, e tantos outros, se dóem da má correspondência dos poderosos, e nem por isso os fazem mais justos, ou menos ingratos. Dói-se o amor e o ódio, dói-se o desejo e o temor, dói-se a esperança e a desesperação, dói-se a miséria e a fome; e o fastio e a abundância também se dóem; dói-se a soberba, dói-se a cobiça, dói-se sobre todas, a inveja; e não pelos males próprios, senão pelos bens alheios; porque o outro cresce, porque sobe, porque pode, porque manda, e ainda porque vive e porque tarda em lhe vir a morte, gênero de dor que não alcançou a imaginar o pensamento de Crisóstomo, pregando não em Roma,mas em Constantinopla: Ut non in morte, aux in re tali doleamus. Estas são as dores do mundo, e não sei se também as da cabeça do mundo, menos miserável por aquilo de que se dói, que por aquilo que não se dói. Que miséria mais miserável que ver tantas almas que têm perdido a graça de Deus, doer-se, e doer-se de outra coisa que não são os seus pecados? Senhores meus: desengano; livrar-se, ou escapar-se da dor nesta vida, é impossível; não há fortuna tão alta, ou estado tão feliz, nem a púrpura, nem a coroa, nem a tiara, que, dentro ou fora, não pague tributo a dor: que melhor conselho logo, que reduzir todas as dores a uma só dor, e tantas dores inúteis e vãs, e de maior tormento, a uma só dor, que nesta e na outra vida me livra de todas? Levai este último documento, e sejam epílogo de todo o meu discurso estas duas palavras: conhecer que a dor é o único remédio do bem perdido; e que o maior bem perdido é a dor que se perde.

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