Skip to content

Pregação subliminal

A lingüística nos ensina que há uma grande diferença entre a língua escrita e adstrita ao texto, isto é, às palavras, e a língua falada que, além de conter nuclearmente o mesmo texto, contém por acréscimo, em torno dele, todo um rico envoltório de sinais comunicativos de várias naturezas: o gesto, a entonação, o ritmo, a modulação da voz, a expressão do rosto, das mãos e do corpo inteiro que é mais rica do que o simples gesto. Todos esses sinais formam o que o lingüista chama contexto. Seria melhor chamar ao conjunto “língua integral”, e a essa parte não traduzida em termos, “língua subliminal”.

Quem se aventura na arte de tentar escrever o que sente e o que pensa, sabe que tem de se ater aos sinais escritos, que dizem os nomes das coisas, os verbos que exprimem ações e paixões, os adjetivos que colorem os nomes, e os advérbios que rendilham as cores além de colorir os verbos; mas os que entraram mais fundo nos segredos de tão esquiva arte sabem que há finos recursos, no ritmo, na escolha da construção verbal, na felicidade de uma inversão ou de um anacoluto, numa elipse ou numa redundância, que conseguem deixar num texto toda a energia efetiva e comunicativa de um contexto subliminal.
 
Mas, no uso comum da palavra, cabe à parte subliminal a função mais ativa e penetrante, e principalmente toda a adjetivação afetiva que varia em matizes infinitos o sentido da mesma palavra. Todos certamente conhecem a anedota do “mande mais dinheiro” que somente pela variação da entonação pode cobrir todo o espectro da afetividade humana.
 
A língua subliminal, embora mais obscura, porque não há dicionários para franzires de boca ou para as porções do dedo mindinho, é freqüentemente mais penetrante porque mexe nas raízes das emoções enterradas. O segredo de certos magnetismos pessoais reside todo nessa eloqüência escondida e tornada confidencial para cada alma dentro de um auditório.
 
* * *
 
Feito esse exórdio em que o texto se alongou talvez demais, pode-se aplicá-lo ao nosso grande, apaixonante, obsessivo problema: o dos sofrimentos da Igreja em nossos dias. Todos nós sabemos, uns para alegrarem-se e outros para chorarem, que houve uma “dessacralização”, uma “secularização”, uma “atualização”, uma febre de reformas, de mudanças, de mutações, de modificações que chamam de progresso. Houve uma horizontalização, uma redução do sobrenatural ao natural, e do natural-humano ao natural-infra-humano. As aberrações de doutrina e de costumes se multiplicam. As casas religiosas se transformam em grêmios ou em quartéis de terroristas, assassinos e ladrões — tudo isto, no dizer deles, para a construção de um mundo melhor!
 
Dentro dessa crise medonha e de imprevisíveis conseqüências, há uma parte do clero e do laicato que aceitou todas as aberrações passando até a defendê-las e a difundi-las. Outra parte, talvez maior, não chegou à apostasia delirante, mas também não se prendeu à verdadeira doutrina e à verdadeira Igreja. Passa de uma para outra como se nada tivesse acontecido.
 
No clero há ainda muitos padres que se atêm à Doutrina, que sofrem com o descalabro, mas que insensivelmente deixaram-se levar pela atmosfera de dessacralização e secularização. Discutiu-se e ainda hoje se discute o Novo “Ordo Missæ”, e as traduções. Mas os mesmos padres que ainda resistem à onda já têm na Santa Missa uma dicção, gestos, passos, que subliminalmente inculcam a idéia oposta à do terrível mysterium fidei de anos atrás. Sim, subliminalmente a tese protestante da simples presença, “quando dois ou três estiverem reunidos em meu nome”, é pregada em todos os altares, com raríssimas exceções. A equipe mista católico-herética que se ocupou da reforma da Missa fez questão de incluir no centro mesmo da definição da Missa essa passagem de Mt. 18, 20, que tem seu valor próprio em todas as circunstancias da vida, exceto naquela em que uma presença mais forte e mais misteriosa deve ser firmemente inculcada.
 
Hoje, pelo “contexto”, a pregação subliminal é generalizada, banalizada, vulgarizada a pregação protestante; e é enfraquecida dia a dia, na mente dos fiéis, a pregação católica da Presença Real de Nosso Senhor na Santa Hóstia. Todas essas maiúsculas caíram. O tom de voz, a naturalidade com que os padres usam as mão que já consagraram as sagradas espécies, tudo é natural, monótono, mais lembrando a leitura da ata da última reunião presidida pelo presbítero, do que a representação do Sacrifício da Cruz. Se ali naquela sala houvesse um morto, vítima de infarto acidental, haveria certamente mais respeito do que se observa diante daquele insistente morto, que morre por nós quando duas mãos ungidas separam o Corpo e o Sangue. Cremos não exagerar se dissermos que a quase totalidade da pregação subliminal de todos os católicos é protestante.
 
A pregação subliminal é praticada de mil modos. Ela está na roupa do padre que se torna assim alheio à Santa Visibilidade da Igreja, e se inculca como-um-homem-qualquer e não como um apartado. Está nos gestos, nas palavras ditas e nas não ditas, está no tom, nos modos desembaraçados daquela contenção que todos, TODOS, os grandes espirituais aconselharam como regras de imitação de Cristo. A pregação subliminal diz que não há mistério, que não há um Cristo realmente crucificado por nós em cada Missa, que não há diferença entre Missa e encontro de dois ou dez de várias religiões. Mesmo sem apregoarem a feira religiosa, todas as cerimônias poderiam ser ecumênicas. E os convites para formaturas e outras solenidades — tudo converge para a negação da Igreja de Cristo. Sim, porque se Ela não é a única verdadeira, então nenhuma é verdadeira nem portadora de fragmentos de verdade em sanduíches de mentira.
 
Podem os senhores padres terem a consciência tranqüila em relação ao programa moderno de agradar à ONU, à Maçonaria, a todos os heréticos e separados. Já fizeram tudo o que lhes disseram que fizessem para agradar aos homens, para agradar ao mundo. Podem agora voltar a Deus, pregar a palavra de Deus não somente pelas palavras mas de toda a alma, de todo o coração e todo o sentimento. Essa pregação assim espargida será uma bênção para as almas que têm sede de Deus.
 
 
(Revista Permanência, no. 67, maio de 1974. Editorial)

AdaptiveThemes