Nossa vida transcorrendo nas duas ordens, natural e sobrenatural, interpenetradas em cada instante, e sendo elas como vimos no artigo anterior, tão contrastadamente constituídas, é de se esperar que freqüentemente surjam situações conflitantes em que a alma religiosa pode esquecer a fulgurante e maravilhosa descoberta da infinita prevalência da ordem da salvação e da graça sobre a ordem natural das atividades humanas. Meu Deus, como poderemos contestar a superioridade da vida eterna e da eterna felicidade na luz da glória e na terra dos ressuscitados, com os peregrinos e efêmeros sucessos deste sopro que ontem nos tirou do nada e amanhã nos deixará no mesmo pó de onde viemos? Posto o problema nesses termos — e as almas de eleição são marcadas pela heróica opção que assim coloca a problemática da vida — nada mais teríamos a acrescentar. O critério da alma religiosa deve ser o critério dos santos, o critério do Nosso Senhor Jesus Cristo.
Além do natural anseio da alma humana que pede uma ascensão e uma superação que nenhuma fortuna do século pode satisfazer, a mente cristã encontra no lado divino da ordem sobrenatural e especialmente no mistério divino-humano da Encarnação e da Paixão razoes de sobra para afirmar a confiança, a prevalência infinita da ordem sobrenatural; e quanto mais trágico e contrastante é o abismo cavado entre as atividades naturais do homem e a adorável brutalidade da crucificação de um Deus, mais impetuoso será nosso gritos de fé: — Quanto a nós convém gloriarmo-nos na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
E se acaso, Deus não permita! num só momento duvidarmos da absoluta prevalência da ordem sobrenatural sobre todos os interesses e valores da vida na ordem das naturais atividades, nesse momento estaremos desprezando o Sangue de nosso Salvador, ou estaremos a desconfiar vagamente da autenticidade de todo o Cristianismo, ou até mesmo estaremos a imaginar que há na dramaturgia da Salvação uma mancada do bom Deus que seria, decididamente, “un Dieu maladroit” inclinado a certo maniqueísmo larvado... Deus meu!... Das profundezas do abismo clamamos.
Retomando o sangue frio, e reatando o itinerário de nossas considerações, reafirmamos a absoluta e infinita prevalência da ordem da salvação e da graça, já sabendo que as conseqüências práticas deste fulgurante artigo de fé estão cheias de pedras de tropeço e de situações conflitantes em que o mundo nos aparece erigido em termos de inimizade.
Para bem conduzir as considerações em torno do entrelaçamento das duas “criações” de Deus, lembremos que o homem é naturalmente sociável, naturalmente político: em razão de nossa natural indigência de um ser animado por um espírito mas condicionado em tudo por um corpo, o individuo humano, para realizar sua integridade de pessoa precisa dos outros. Precisa dos outros como mendigo que não sabe por si mesmo se bastar, mas também precisa dos outros em razão de sua riqueza espiritual e de seu tropismo de generosidade. Na ordem natural o homem vive em grupos de critério natural, família, nação, continente civilizacionais; na ordem sobrenatural o mesmo excessivo e exclusivo Jesus quis que seus seguidores vivessem em Igreja.
E aqui se arma novamente o vivo contraste entre as duas ordens, agora posto em termos de Igreja e Cidade, onde as acidentais opiniões e acidentais conflitos serão mais do que nunca cortantes e pontiagudos.
A organização da ordem da graça e da salvação em Igreja é uma característica essencial do plano de Deus para a nossa redenção e para a restauração da Ordem ferida pelo pecado original. Se é sempre de Deus que nos vêm os dons que salvam, as virtudes que santificam e a doutrina de sabedoria revelada que nos orienta no caminho de volta à casa do Pai, quis Ele mesmo que sua Igreja sem se tornar uma “intermediária” que pretendesse usurpar as funções que não podem ser exercidas senão pela causa primeira — se tornasse conditio-sine-qua-non na obra da salvação. “Fora da Igreja não há salvação” diz-nos Deus pela voz da própria Igreja.
E aqui — sem quebra da essencial unidade da ordem sobrenatural — desdobram-se os aspectos essenciais da Igreja (e de vários modos o desdobraremos): o primeiro é o que se observa entre as duas grandes funções da Igreja: a) antes de tudo ela tem a missão de guardar o depósito sagrado, e a de guardar sua ovelhas. Repitamos os verbos essenciais da missão eclesial: guardar, conservar; guardar-se idêntica a si mesmo para manter idêntica e invariável a obra de Deus, a obra de Cristo, o sangue e o ensinamento de Jesus; b) a segunda função da Igreja é missionária: “Ide, portanto, e fazei discípulos todos os povos batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto eu vos mandei”. (Mt. 28, 19-20).
E aqui, mais uma vez, devemos firmar uma hierarquia de valores, e uma forte prevalência: a da primeira sobre a segunda. No critério do mundo e das coisas temporais prevaleceria a função missionária, dinâmica, sobre a função guardadora estática; mas os critérios da ordem sobrenatural mais uma vez aqui se opõem aos critérios da ordem temporal: nas coisas da ordem da salvação e da graça, por sua divina elevação, o imóvel prevalece sobre o móvel, o estático sobre o dinâmico e assim, a guarda do depósito sagrado deve absolutamente prevalecer sobre a expansão da Boa Nova, mesmo porque, se o Depósito não fosse mantido em sua perpétua Virgindade, o que seria expandido no mundo em vez da Boa Nova seria a última invenção de algum iluminado.