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Capítulo 3: O segundo fruto que se há de colher da consideração da primeira Palavra dita por Cristo na Cruz

Se os homens aprendessem a perdoar sem murmurações as injúrias que recebem, e assim forçassem seus inimigos a converterem-se em amigos, tiraríamos uma segunda e muito salutar lição da meditação da primeira palavra. O exemplo de Cristo e da Santíssima Trindade há de ser um poderoso argumento para nisto nos persuadirmos. Pois se Cristo perdoou e rezou por seus verdugos, que razão pode ser alegada para que um cristão não atue de modo semelhante com seus inimigos? Se Deus, nosso Criador, o Senhor e Juiz de todos os homens, o qual tem o poder de vingar-se imediatamente do pecador, espera seu arrependimento, e o convida à paz e à reconciliação com a promessa de perdoar as traições feitas à Divina Majestade, por que uma criatura não poderia imitar esta conduta, especialmente se recordamos que o perdão de uma ofensa obtém grande recompensa? Lemos na história de São Egelberto, Arcebispo de Colônia, assassinado por alguns inimigos que o estavam esperando, que, na hora de sua morte, rezou por eles com as palavras de Nosso Senhor: "Pai, Perdoa-lhes", e foi revelado que este gesto foi tão agradável a Deus, que sua alma foi levada ao céu pelas mãos dos anjos, e posta no meio do coro dos mártires, onde recebeu a coroa e a palma do martírio, e sua sepultura tornou-se famosa por realizar muitos milagres.
 
 
Ó, se os cristão aprendessem quão facilmente poderiam obter tesouros inesgotáveis, se apenas o quisessem; e quão facilmente alcançariam graus notáveis de honra e glória pelo domínio das várias agitações de suas almas e desprezo magnânimo dos pequenos e triviais insultos, certamente não seriam tão duros de coração e tão obstinados contra o indulto e o perdão.
 
Objeta-se que agiriam contrariamente à natureza caso se permitissem ser injustamente rechaçados com desprezo ou ultrajados por obra ou palavra: se os animais selvagens, que apenas seguem o instinto natural, atacam de forma selvagem seus inimigos quando os vêem, e os subjugam com garras e dentes, também nós, à vista de nosso inimigo, sentimos o sangue a ferver e o desejo de vingança aflorar. Tal argumento é falso. Não faz distinção entre a defesa própria, que é válida, e o espírito de vingança, que é inválido. Ninguém pode achar falta em um homem que se defende por uma causa justa, e a natureza nos ensina a rechaçar a força com a força — mas não nos ensina a vingar-nos nós mesmos uma injúria que tivermos recebido.
Ninguém nos impede tomar as precauções necessárias para nos preparamos contra um ataque, mas a lei de Deus nos proíbe que sejamos vingativos. O castigo de uma injustiça pertence não ao indivíduo privado, mas ao magistrado público, e, por isso que Deus é o Rei dos reis, Ele clama e diz: "A mim me pertence a vingança, eu retribuirei" 1.
 
Quanto ao argumento de que um animal é levado por sua própria natureza a atacar o animal inimigo de sua espécie, respondo que isto é o resultado de serem animais irracionais, que não podem distinguir entre a natureza e o que é vicioso na natureza. Mas os homens, que são dotados de razão, hão de traçar uma linha entre a natureza ou a pessoa, que, criadas por Deus, são boas, e o vício ou o pecado que é mau e não procede de Deus. Da mesma maneira, quando um homem for insultado, deve amar a pessoa de seu inimigo e odiar o insulto, e deve antes se compadecer dele que se perturbar com ele, assim como um médico que ama seus pacientes e lhes prescreve com o devido cuidado, mas que odeia a enfermidade e luta com todos os recursos a sua disposição para afugentá-la, destruí-la, torná-la inofensiva. E isto é o que o Mestre e Doutor de nossas almas, Cristo Nosso Senhor, ensina quando diz: "Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e caluniam"2. Cristo, nosso Mestre, não é como os Escribas e Fariseus que se sentavam na cátedra de Moisés e ensinavam, mas não praticavam o que ensinavam. Quando subiu ao púlpito da Cruz, Ele praticou o que ensinou ao rezar por seus inimigos, que amava: "Pai, Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". Porém, a razão pela qual a visão de um inimigo faz que em algumas pessoas o sangue ferva em suas veias, é esta: são animais que não aprenderam a trazer as moções da parte inferior da alma, comum tanto à raça humana como à criação selvagem, sob o domínio da razão, ao passo que os homens espirituais não estão sujeitos a estes movimentos da carne, pois sabem como mantê-los controlados, e não se turbam com aqueles que os injuriaram, senão que, ao contrário, se compadecem, e, estendendo a eles atos de bondade, se esforçam por levar-lhes a paz e a unidade.
 
Objeta-se que isto é uma prova demasiado difícil e severa para homens de nascimento nobre, os quais devem ser zelosos de sua honra. No entanto, não é assim. A tarefa é fácil, pois, como testemunha o Evangelista, "o jugo" de Cristo, que deu esta lei para guia de seus seguidores, "é suave, e sua carga ligeira"3; e seus “mandamentos não são custosos”4, como afirma São João. E assim, se parecem difíceis e severos, parecem também pelo pouco ou nenhum amor que temos por Deus, pois nada é difícil para aquele que ama, como disse o Apóstolo: "A caridade é paciente, é benigna; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre"5. Nem foi Cristo o único que amou a seus inimigos — ainda que, na perfeição com a qual praticou a virtude, a todos superou — pois o Santo Patriarca José amou com amor especial a seus irmãos que o haviam vendido à escravidão. E na Sagrada Escritura lemos como Davi, com muita paciência, resignou-se com as perseguições de seu inimigo Saul, que por muito tempo procurou matá-lo; e que, quando pôde Davi tirar a vida de Saul, não o matou. E sob a lei da graça, o proto-mártir Santo Estevão imitou o exemplo de Cristo ao fazer esta oração enquanto o apedrejavam à morte: "Senhor, não lhes impute este pecado"6. E Santiago Apóstolo, Bispo de Jerusalém, que foi lançado de cabeça desde o cume do templo, clamou no céu no momento de sua morte: "Senhor, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". E São Paulo escreve de si mesmo e de seus companheiros apóstolos: "amaldiçoam-nos e bendizemos; perseguem-nos e o sofremos; somos difamados e rogamos"7 . Enfim, muitos mártires e inumeráveis outros, logo após o exemplo de Cristo, não encontraram nenhuma dificuldade em cumprir este mandamento. Mas pode haver alguns que continuem argumentando: não nego que devemos perdoar nossos inimigos, mas escolherei o tempo que me apraze fazê-lo, quando, em verdade, tenha quase esquecida a injustiça que me foi feita, e tenha me acalmado após o primeiro arrebatamento de indignação. Mas, quais seriam os pensamentos destes se fossem então chamados a prestar as contas finais, e fossem encontrados sem o traje da caridade, e fossem perguntados: "como entraste aqui, não tendo a veste nupcial?"8. Por acaso não se assombrariam enquanto Nosso Senhor pronuncia sua sentença: "Atai-o de pés e mãos, e lançai-o nas trevas exteriores; aí haverá pranto e ranger de dentes."9. Age melhor e com prudência agora, e imita a conduta de Cristo, que rezou a seu Pai, "Pai, perdoa-lhes", no momento em que era objeto de escárnios, quando o sangue caía gota a gota de seus pés e mãos, e seu corpo inteiro era presa de torturas dolorosas. Ele é o verdadeiro e único Mestre, cuja voz a devem escutar todos que não serão guiados ao erro: a Ele se referiu o Pai Eterno quando uma voz se ouviu do céu dizendo: "Ouviu-o". Nele estão "todos os tesouros da sabedoria e da ciência" de Deus10. Se pudesses perguntar a opinião de Salomão sobre qualquer assunto, poderias com segurança ter seguido seu conselho, mas "aqui está quem é mais que Salomão"11.
 
Continuo ainda a ouvir objeções. Se decidimos retribuir o mal com o bem, o insulto com a bondade, a maldição com a benção, os maus se tornarão insolentes, os infames se tornarão aprumados, os justos serão oprimidos, e a virtude calcada sob seus pés. Este resultado não se dará, pois de ordinário, no dizer do Homem Sábio, "a resposta branda aquieta a ira"12. Ademais, a paciência de um homem justo não poucas vezes enche de admiração seu opressor, e o persuade a estender a mão da amizade. Por outra, esquecemos que o Estado nomeia magistrados, reis e príncipes, cujo dever é fazer que os malvados sintam a severidade da lei, e prover meios para que os homens honestos vivam uma vida tranqüila e pacífica? E se em alguns casos a justiça humana é tardia, a Providência de Deus, que nunca permite que um ato malévolo passe sem castigo ou um ato bom sem recompensa, está continuamente nos observando e, de um modo imprevisível, cuidando para que as ocasiões em que os malvados crêem que humilharão os virtuosos, conduzam estes à exaltação e honra. Pelo menos assim o diz São Leão: "Estiveste furioso, ó perseguidor da Igreja de Deus, estiveste furioso com o mártir, e aumentaste sua glória aumentando sua dor. Pois que inventaste em tua ingenuidade que se voltasse em tua honra, se até seus instrumentos de tortura foram tomados em triunfo?". O mesmo deve ser dito de todos os mártires e santos da antiga lei, pois que trouxe mais reputação e glória ao patriarca José que a perseguição de seus irmãos? O ter sido vendido por inveja aos ismaelitas foi ocasião para que se convertesse em senhor de todo Egito e príncipe de todos seus irmãos.
 
Mas, omitindo estas considerações, passemos revista aos muitos e grandes inconvenientes que sofrem aqueles homens que, apenas para escapar de uma sombra de desonra diante dos homens, estão obstinados a se vingar daqueles que lhes fizeram qualquer mal. Em primeiro lugar, agem como estultos ao preferir um mal maior a um menor. Pois é um princípio considerado certo em toda parte, e que nos foi declarado pelo Apóstolo nestas palavras: "Não façamos o mal para que venha o bem"13. Segue-se que, por conseqüência, um mal maior não há de ser cometido para que se possa obter alguma compensação por um menor. Aquele que recebe a injúria, recebe o que é chamado de mal da injúria: aquele que se vinga de uma injúria, é culpável do que se chama de mal do crime. Ora, sem dúvida, a desgraça de cometer um crime é maior que a desgraça de ter de suportar a injúria, pois, ainda que a ofensa possa tornar um homem miserável, não necessariamente o torna mau. Um crime, no entanto, o faz, a um tempo, miserável e malvado. A injúria priva o homem do bem temporal, o crime o priva tanto do bem temporal como do eterno. Assim, um homem que remedia o mal de uma injúria cometendo um crime, é como um homem que corta uma parte dos seus pés para calçar sapatos menores, o que é um ato de total loucura. Ninguém comete tal insensatez em suas preocupações temporais, mas, no entanto, há alguns homens tão cegos a seus interesses reais, que não temem ofender mortalmente a Deus para escapar daquilo que tem aparência de desgraça, e para manter um semblante de honra aos olhos dos homens. Caem, pois, sob o desagrado e a ira de Deus, e, a menos que se corrijam a tempo e façam penitência, terão que suportar a desgraça e o tormento eterno, e perderão a honra sem fim de habitarem no céu. Acrescente-se a isto que realizam um ato dos mais agradáveis ao diabo e seus anjos, que urgem a este homem fazer algo de injusto a aquele outro, com o propósito de semear a discórdia e a inimizade no mundo. E cada um deve refletir com calma quão desgraçado não é quem agrada o inimigo mais feroz da raça humana e desagrada o Cristo. Ademais, se sucede que o homem injuriado que ambiciona vingança fira mortalmente a seu inimigo, e o mate, é ele ignominiosamente executado por assassinato, e toda a sua propriedade é confiscada pelo Estado, ou, ao menos, é forçado ao exílio, e tanto ele como sua família viverão uma existência miserável. Assim é como o diabo joga e como se ri daqueles que escolhem antes se aprisionar com as ataduras da falsa honra, que se fazerem servos e amigos de Cristo, o melhor dos Reis, e serem reconhecidos como herdeiros de reino mais vasto e mais durável. Por isso, posto que o homem insensato, apesar do mandamento de Cristo, se nega a reconciliar-se com seus inimigos, e se expõe ao desastre total, todos os que são sábios escutarão a doutrina que Cristo, o Senhor de tudo, nos ensinou no Evangelho com suas palavras, e na Cruz com suas obras.
 

 

  1. 1. Rm 12,19.
  2. 2. Mt 5,44.
  3. 3. Mt 11,30.
  4. 4. 1 Jn 5,3.
  5. 5. 1 Cor 13,4-7.
  6. 6. At 7,59.
  7. 7. 1 Cor 4, 12-13.
  8. 8. Mt 22,12.
  9. 9. Mt 21,13.
  10. 10. Cl 2,3.
  11. 11. Mt 12,42.
  12. 12. Pr 15,1.
  13. 13. Rm 3,8.
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