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A civilização do prazer

Qualquer pessoa medianamente dotada e ainda não dopada pelo imperativo de um otimismo que é julgado hoje virtude máxima, e máxima lucidez, qualquer pessoa, em suma, que ainda não esteja possessa pelo Sistema, já percebeu que vive dentro de uma decomposição civilizacional cuja característica principal é a de um furioso hedonismo. Todos querem sentir, o minuto que passa, a golfada de ar que respira, a curva que faz a sessenta ou oitenta quilômetros numa rua movimentada. A fisionomia da juventude em tal clima é curiosamente apática, em contradição com o frenesi das reações, e quase se pode garantir que nunca houve em toda a história do mundo uma humanidade tão destituída de gosto e de prazer. Este paradoxo é aliás a bem conhecida contradição moral do prazer: o primeiro de seus malogros é a perda do prazer. Seria, porém, um engano tirar daí uma conclusão tranqüilizadora firmada na suposição de que tal malogro corrigirá o extraviado. Ao contrário, exaspera-o.

 

De onde vem esse extravio moral. Em cada indivíduo a moléstia procede de pequenas e primárias opções subversivas em que, por uma antiga dolência, essa alma volta sua preferência para as coisas exteriores e inferiores; e, deixando-se dominar, torna-se depressa escravo delas. A conquista das coisas inferiores nos afaga ao mesmo tempo o orgulho e a concupiscência, ao contrário do alcance das coisas do alto que nos aprimoram a humanidade e o gosto da sabedoria. O praticante da moral do prazer se torna grosseiro, embotado, às vezes enganosamente aprimorado na conquista de tais bens, e inevitavelmente, como já vimos, se torna exigente de doses maiores, de prazeres mais violentos.

 

Dias atrás dizia-me alguém com bem fundado estupor:

 

“Quando a onda do sexo passar, e os impotentes de amor descobrirem a enjoada monotonia do sexo sem amor, sem grande amor, passarão a matar. A matar em grupos. Comunitariamente. Haverá cursilhos para ensinar a matar sem ódio, como hoje se ensina o sexo sem amor”.

 

Como terá começado o fenômeno coletivo, civilizacional, que hoje tornou o Juízo Final assunto de café-em-pé? Creio que já abordei este assunto aqui e ali dúzias de vezes. É uma de minhas obsessões em resposta ao obsessivo rumo do mundo. Pode-se dizer que a história sofreu esta trágica deflexão no século em que os homens afirmaram um novo humanismo afrontosamente autônomo, como se fossem deuses, e afrontosamente afirmou uma nova religião de seu invento, onde Deus entrará somente como objeto indireto e remoto.

 

Neste tempo que apenas trouxe a eclosão de uma longa e misteriosa carga de ressentimentos acumulados, o orgulho do homem foi espicaçado pelo dilatado domínio das coisas exteriores e inferiores trazido pelas ciências. Muita gente até hoje não aprendeu que a Astronomia é um conhecimento inferior à Sabedoria: seu objeto, pelo fato de serem sóis e galáxias a dançarem numa distância de trinta milhões de anos-luz, ou mais, nem por isso é ontologicamente superior, à entomologia, que estuda formigas, cigarras e demais insetos prodigiosamente dotados de vida. Certamente espantarei alguém, ou confirmarei em alguém a hipótese já alimentada de minha insensatez, se disser que o cientificismo pós-renascentista foi um dos primeiros afluentes desta subversão torrencial cuja pororoca já se ouvem os rugidos. A especulação sobre as coisas inferiores, mas facilmente saborosa que a especulação sobre as coisas do alto, que pedem virtudes e dons, trouxe consigo o domínio efetivo, sobre as mesmas coisas materiais. A austera Ciência brindou-nos com a Técnica. A Técnica presenteou-nos com o delírio das sensações fortes , matar 200.000 habitantes de Hiroxima num segundo, ou ir à Lua como programa de televisão.

 

Eu já escrevi em Fronteiras da Técnica que a técnica é uma das glórias do homem, e que o domínio dos elementos é um direito de seus títulos. Racionalidade. Imagem e Semelhança de Deus. Mas também já escrevei e torno a escrever que certa catástrofe da história, como a querer repetir coletivamente o Pecado Original, nos trouxe a subversão cujos efeitos hoje nos afligem.

 

Não a todos; evidentemente, se a aflição consciente fosse geral esse temor assim difundido já seria o começo de uma sabedoria convalescente. Infelizmente, estamos muito longe de tal difusão. Entre os homens simples, ainda não deformados pela radioatividade da explosão nuclear do eu humano na Renascença e na Reforma, encontram-se muitos que já são sensíveis ao temor e tremor que andam nas almas sensíveis. Mas a maior aberração de nosso tempo não está nas exposições de pornografia , não está na busca desenfreada do prazer sob todas as formas, não está no alastramento do ateísmo que ganhou título de mentalidade oficial em mais da metade do mundo. Não, a maior aberração de nosso tempo está no entusiasmo com que os homens de Igreja aplaudem o dito mundo moderno e ainda censuram à Igreja a falta de tato de não ser atraente para os moços que correm atrás do prazer. Não invento, nem li tal disparate em discurso de algum vigário de Mato Grosso. Li essa queixa em Le Monde, que, com isto, exaltava o queixoso: o Cardeal Alfrink. Eis as palavras aladas do Cardeal holandês:

 

“Como explicar que a Igreja se mostre tão pouco atraente para os homens de nossa época? Os moços que andam à procura de Deus raramente se dirigem à Igreja? Por quê? Que fazer? Não deveríamos nós indagar se não somos nós que obscurecemos a mensagem evangélica?”

 

Respondo ao Cardeal holandês e a todos os outros que dizem coisa parecida, com o atrevimento de atribuir à Igreja verdadeira, à Tradição, aos Santos, à Nossa Senhora, ao Sangue de Cristo a fisionomia que os homens de nossa época acham pouco atraente.

 

E respondo dizendo: a Igreja verdadeira parece ter-se apagado como a estrela dos Magos, e em lugar de sua santa visibilidade vê-se um Sínodo, e dentro dele vêem-se e ouvem-se os senhores cardeais e arcebispos que se inculcam como Igreja, e que publicam, difundem, com grande aparato, tamanho e tão repulsivo amontoado de asneiras. Acrescento ainda uma resposta especial à pergunta: “Que fazer?” O programa mínimo que o pobre homem de nosso tempo ainda espera é a lealdade de dizer que a Igreja não é isto que fala pela boca dos Alfrinks, dos Arns, e outros duzentos. Como ninguém diz, e estou velho demais para fazer tais cerimônias, digo-o eu: eles mesmos dizem aos berros que já não são católicos e se envergonham de um dia terem pertencido a uma Igreja que não acompanha as orgia dos moços e dos velhos; eles querem agradar aos homens, ainda que isto os leve ao desprezo de Deus.

 

 

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