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Regina sine labe originali concepta

Dentro das comemorações dos 150 anos da proclamação do dogma da Imaculada Conceição (8 de dezembro de 1854), reproduzimos aqui um editorial da Revista Permanência (que eram escritos por Gustavo Corção). A espiritualidade mariana é sempre a mesma, católica, eterna. Já os desmandos e invenções dos modernistas estavam, naquela época, em sua fase de "destruições". Tudo o que era católico, tudo o que "cheirava a incenso", tudo o que era da Tradição, era simplesmente dilapidado, destruído, chutado, desprezado. Tábula rasa, era o lema dos progressistas. Depois virão outras fases que nos conduzirão à construção do monstro que hoje tenta nos devorar. Porque os modernistas instalados no Vaticano, quando toda a Tradição já estava destruída, construíram uma nova religião que tem uma carapaça pintada com "catolicismos", mas cujo conteúdo, tirado de Vaticano II, já não é mais católico. Este editorial pode parecer defasado na sua crítica aos progressistas, mas não é. O monstro cresceu mas é o mesmo daquela época. "Eis que o diabo, como um leão rugidor, vos cerca querendo vos devorar. Resisti-lhe fortes na Fé" (Ep. de S. Pedro)

 
 Regina sine labe originali concepta
Rainha concebida sem pecado original
 
 
In medio sæculi. Cento e tantos anos atrás, no meio do século, sim, no patamar do orgulhoso século XIX em que o homem, além da máquina a vapor e das máquinas elétricas, inventou os “ismos” com que pretendia se erguer contra seu Criador, e mais especialmente contra o seu Salvador, a Igreja Militante, no meio do mais turbulento mundo, no aceso da mais áspera luta, fez uma pausa de silêncio e brancura, e pela voz de um grande pontífice reafirmou o dogma da Imaculada Concepção de Maria Santíssima. E o mundo estupefato, crendo ou descrendo, teve a notícia de que a própria Rainha,
 
Regina Angelorum,
Regina Patriarcharum,
Regina Prophetarum,
Regina Apostolorum,
Regina Martirum,
Regina Confessorum,
Regina Virginum,
Regina Sanctorum omnium,
Regina sine labe originali concepta,
 
descera dos céus para dizer à mais ignorante, à mais pobre, à mais humilde menina de uma aldeia, em língua do povo, o misterioso e glorioso título que lhe dá uma posição singular, única, sem lhe tirar as entranhas de mãe:
 
Que sou er’ Immaculada Conception.
 
Ninguém terá inteligência aberta para a fé dos mistérios marianos, sem os quais é morta ou vazia nossa fé salvadora, se não tiver esta primeira percepção da existencial unicidade, ou da essencial singularidade deste “bendita entre as mulheres” em quem o arcanjo Gabriel saudou a plenitude de graças que é possível numa criatura. É revelada pelo próprio Verbo de Deus a simetria entre Adão e Cristo, ambos colocados num vértice de absoluta singularidade. Adão, na sua singularidade, era a humanidade: Cristo, por sua unicidade, é a nova humanidade, resgatada e desde já, aqui e agora, proposta à transfiguração eterna.
 
Semelhante, Maria e Eva têm na história da Salvação igual simetria: se pela intercessão de uma só primeira Mulher o pecado desordenou a humanidade inteira, no espaço e no tempo, por uma só primeira e única “sine labe originali concepta” a humanidade tem ao alcance do coração o princípio sobrenatural da reordenação da natureza decaída.
 
Quem salva é Deus; quem nos põe na alma o germe do princípio da salvação é Deus sem nenhuma criatura intermediária. A Fé que nos vem de Deus e nos salva não admite nesse sagrado conúbio nenhuma intercessão. Cremos nisto, nisto e naquilo porque Deus revelou e não porque um anjo, arcanjo, os apóstolos e a Igreja nos revelaram. Nessa união inicial e terminal entre eu e meu Criador, nada há de permeio, nada há de intermediação: nihil aliud quæm veritas prima. Nisto consiste o absoluto e o formal de nossa Fé. Mas entre a negação de qualquer tertius na divina intimidade do ato de Fé teologal, e a negação de qualquer condicionamento intercessor, e favorecedor da união realizada na fé divina, há um abismo de equívocos, de rebeldia que, com o protestantismo ganhou proporções catastróficas. Deus mesmo compôs sua obra de redenção deixando sua revelação instrumentalmente condicionada por uma sociedade santa, regida por Cristo e animada pelo Espírito Santo. E assim como o mestre não constitui obstáculo ou intermédio pelo fato de ter sido o encaminhador, o ministro, o aproximador da verdade que a inteligência do discípulo faz sua, sem intermediários, no momento em que a vê; assim também não há Magistério e não há intercessões que constituam espessuras separadoras entre a alma e Deus.
 
Deus mesmo quis assim construir e ordenar sua obra de re-criação, e entre todas as criaturas que, de modo acidental e instrumental, participam desta obra e são co-redentoras, Deus quis que uma única e singular Mulher tivesse, com título único e singular, essa função de Mãe de Deus, Mãe dos homens, e Mãe da Igreja. E para isto quis Deus que essa Mulher de início se singularizasse por um privilégio que é coroa de Rainha no céu e na terra: Regina sine labe originali concepta.
 
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Novamente in medio sæculi, no meio de nosso tumultuoso século, a Igreja, pela augusta voz do Papa Pio XII, proclamou o dogma da ascensão corporal de Maria ao céu: “assumpta est Maria in cœlum”. E a nossa doce consolação de cada dia é saber que, no Céu, Maria é mais diligente do que Marta na terra. Ave Maria.
 
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“O dragão se enfureceu contra a Mulher e se pôs a fazer guerra contra toda sua descendência, contra os que observam os preceitos de Deus e dão testemunho de Jesus” (Ap. XII, 17).
 
A nenhum observador, que não queira enganar-se a si mesmo para depois enganar os outros, pode escapar a figura da “heresia do século XX” que devasta o redil de Cristo. Esta figura é a de uma moderna e mais insolente forma de protestantismo com todas as suas características: secularização, democratismo, rejeição do primado de Pedro, dessacralização, horizontalização de todas as transcendências, pluralização, negação de todas as hierarquias, abandono do latim que até o Concílio Vaticano II, num clima de reformismo febril e alucinatório, foi ainda reafirmado como língua oficial da Igreja, rejeição da batina e das insígnias demarcadoras de hierarquia da ordem e de hierarquia de jurisdição. E dentro desse ecumenismo às avessas em que os eclesiásticos, em vez de procurarem formas novas de reconquistar os irmãos separados se precipitam cambaleantes de neo-latria e de alegre apostasia nos braços protestantes que não fizeram o menor sinal de reconhecer o erro de quatro séculos. Ao contrário! ao contrário! a julgar pelo que dizem os “teólogos franciscanos” que hoje parecem surgidos por geração espontânea, e pelo que dizem alguns abades beneditinos evidentemente entediados da stabilitas, somos nós que devemos reconhecer nosso erro, nossa pirraça, nossa estreiteza de vistas. Somos nós que devemos, em procissão imitar o arcebispo nordestino que entrou no templo luterano arquejante de humildade e de contrição. Ia pedir perdão aos protestantes!
 
Os protestantes são convidados a pregar nas missas católicas, e são convidados a colaborar nas reformas litúrgicas.
 
E atrás de todas essas dez mil capitulações se esconde, ou melhor não conseguem eles esconder o que o vidente de Pathmos revelou: “O dragão se enfureceu contra a Mulher e se pôs a fazer guerra contra toda sua descendência, contra os que observam os mandamentos de Deus, e dão testemunho de Cristo Jesus”.
 
Sim, o que essas torrentes de insensatos chamados “progressistas” ou “avançados” fazem hoje, com agudíssima modernidade, com maior atualidade do que o campeonato de xadrez, que brevemente terminará e começará a entrar na névoa do esquecimento, o que eles fazem dia a dia, nos seus jornais, no seu vai e vem publicitário, nos seus congressos de comediantes que querem salvar a América Latina, o que na verdade eles fazem, assim ou assado, sabendo ou não sabendo, é aquilo que em outro versículo do Apocalipse está escrito: — Adorarão a Besta dizendo “quem como a Besta?” (Ap. XIII, 4). E entre as rubricas dessa liturgia tem lugar de destaque o repúdio do nome e do coração de Maria.
 
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O ômega e o alfa se encontram no verbo de Deus, e à perseguição descrita no último livro, O Apocalipse, se contrapõe, no primeiro, o anúncio da vitória final da Mulher sobre a serpente: “Ponho uma inimizade entre ti e a Mulher, entre a tua e a sua descendência, e ela esmagará tua cabeça”. (Gen. III,15).
 
Antes do triunfo final, e enquanto estamos em caminho, convém desagravarmos todas as injúrias feitas a nossa Mãe do céu, e sobretudo, nas horas de desânimo, e de supremíssimo cansaço, convém-nos levantar ao seu regaço todos os nossos cuidados. O doce pé de Maria que Bernadette teve o privilégio de ver em sua puríssima e imaculada carne, e que voltou a pisar nosso áspero chão depois da festa da Igreja que a proclamava sine labe originali concepta, tem a força invencível da humildade. Armado com sua franqueza, vestido com pétalas de rosa, o pé da Santíssima Virgem, que no meio deste século teve de seus filhos na terra a festa da Assunção ao céu, há de vencer e esmagar os adoradores da Besta que hoje — diante de nossa consciência boquiaberta — parecem capitalizar as vitórias de todas as batalhas.
 
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Uma das grandes crises de nosso tempo, especialmente dolorosa em meio católico, é a crise moral que se traduz no amolecimento chamado “falta de caráter” que parece ter-se tornado o novo caráter do homem mutacionado de nosso século.
 
Ora, o melhor exercício espiritual para ganharmos a virilidade evanescente, para recuperarmos a coragem e o vigor de amar o bem e detestar o mal é o de tomar viva consciência de nossa linhagem sobrenatural, e das armas com que venceremos o mundo sob o signo da cruz de Nosso Senhor, que “já venceu o mundo”. E entre as armas do céu, especialmente eficazes contra os demônios que devastam as almas, é oportuno lembrar o santo rosário, cuja festa instituída por São Pio V em 1571 em agradecimento pela vitória de Lepanto, hoje esquecida e desdenhada pelos católicos que invocam a paz da carne e do sangue, por já não terem fibra e fé para pelejarem pela paz de Cristo.
 
Regina sacratissimi Rosarii, ora pro nobis
Regina pacis, ora pro nobis.
 
 
Editorial da Revista PERMANÊNCIA n° 48, Outubro de 1972
 

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