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Art. 3 — Se a Deus convém a misericórdia.

(IIa IIae, q. 30, a. 4; IV Sent., dist. XLVI, q. 2, a. 1, qa 1; I Cont. Gent., cap. XCI: Psalm.,XXIV).
 
O terceiro discute-se assim. — Parece que a Deus não convém a misericórdia.
 
1. — Pois, a misericórdia é uma espécie de tristeza, como diz Damasceno1. Ora, em Deus não há tristeza. Logo, nem misericórdia.
 
2. Demais. — A misericórdia é preterição da justiça. Ora, Deus não pode preterir as exigências da sua justiça, conforme aquilo da Escritura (2 Tm 2, 13): Se não cremos, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo. Ora, negar-se-ia a si mesmo, diz a Glosa, se negasse o que disse. Logo, não lhe convém a misericórdia.
 
Mas, em contrário, a Escritura (Sl 110, 4): O Senhor é misericordioso e compassivo.
 
SOLUÇÃO. — A misericórdia máxima devemos atribuí-la a Deus; mas, quanto ao efeito e não, quanto ao afeto da paixão. Para evidenciá-lo, é mister considerar que misericordioso é quem possui coração comiserado, por assim dizer, por contristar-se com a miséria de outrem, como se fora própria e esforçar-se por afastá-la como se esforçaria por afastar a sua própria. Tal é o efeito da misericórdia. Ora, não é próprio de Deus contristar-se com a miséria de outrem. Mas, é muito próprio dele afastá-la, entendendo-se por miséria qualquer defeito. Pois, defeitos não se eliminam senão pela perfeição de alguma bondade. Ora, Deus, como dissemos2, é a origem primeira da bondade.
 
Devemos porém ponderar que comunicar perfeições às causas pertence tanto à bondade divina, como à justiça, à liberalidade e à misericórdia, mas segundo razões diversas. Assim, a comunicação das perfeições, considerada absolutamente, pertence à bondade, como já demonstramos3. Mas, pela justiça, como mostramos4, Deus comunica perfeições proporcionadas às coisas. Ao passo que pela liberalidade ele lhes da perfeições, não visando a sua utilidade, mas só por mera bondade. Finalmente, pela misericórdia, as perfeições dadas às coisas por Deus eliminam-lhes todos os defeitos.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção procede, considerando-se a misericórdia em relação ao afeto da paixão.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus age misericordiosamente, quando faz alguma coisa não em contrário, mas, além da sua justiça. Assim, quem desse duzentos dinheiros ao credor, ao qual só deve cem, não pecaria contra a justiça, mas agiria liberal ou misericordiosamente. O mesmo se daria com quem perdoasse a injúria, que lhe foi feita; pois, quem perdoa, de certo modo dá; e por isso o Apóstolo chama ao perdão, doação (Ef 4, 32): Perdoai-vos uns aos outros como também Cristo vos perdoou. Donde resulta que, longe de suprimir a justiça, a misericórdia é a plenitude dela. Donde, o dizer a Escritura (Tg 2 ,13): A misericórdia triunfa sobre o justo.

  1. 1. De Fide Orthod., l. II, c. 14.
  2. 2. Q. 6, a. 4.
  3. 3. Ibid., a. 1, 4.
  4. 4. Q. 21, a. 1.
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