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O progresso e Chesterton

Léon Bloy fez na "Exegese des lieux communs" a perseguição impiedosa dessas expressões amoedadas que andam por aí, nas ruas e nas cátedras, como restos ensebados duma sabedoria que a preguiça e a conveniência prostituíram. Bloy não escolhia muito, nem perdia muito tempo em olhar mais de perto os frangalhos que impetuosamente desbaratava.

Numa linguagem viva e desesperada, sem medida, sem precauções, ele fazia um chicote estalar em cada frase...

Chesterton não foi menos inimigo do lugar comum, nem menos tenaz, mas especializou-se numa certa espécie, naqueles que contém verdades de pernas para o ar. 

Passou a vida invertendo os quadros que o jornalismo moderno pendura com o Céu para baixo. Fez isso escrupulosamente e corretamente, com a satisfação que um bom inglês deve ter em corrigir as desordens de seu interior.

Foi um D. Quixote gentleman e conseguiu sempre inscrever uma ardorosa combatividade no recato britânico, no horror ao impróprio; mas foi sempre, fundamentalmente, um "redresseur des torts".

Por isso, a cada instante, o leitor comum, habituado às sentenças de Carrel e ao jornalismo moderno, estaca desconfiado na Ortodoxia ou em A Esfera e a Cruz.

Mas um sorriso vagamente divertido resolve a dificuldade daquele leitor que acha afinal uma saída, ainda e sempre por um lugar comum, decretando que aquilo tudo que o Chesterton diz é paradoxo.

Já ouvi essa apreciação em meia dúzia de tentativas que fiz de tornar lido um daqueles livros por diversos amigos, engenheiros, negociantes, dentistas, todos homens de boas roupas e ótimas familias. Dizem que é paradoxo, assim como que diz que certo indivíduo cego de nascença, com escamas nos olhos, ficou vendo de repente, por sugestão.

Dizendo assim uma palavra ávida de definição, sedenta de exegese, parece que o assunto está definitivamente encerrado e que é melhor falar noutra coisa.

Paradoxo tem dois sentidos, muito diferentes.

Pode ser o sinal de crucificação, o emblema da dialética divina que criou as coisas atravessadas pelas coisas, pode ser a vida da inteligência, pode ser todo o cristianismo. Mas para aqueles leitores o paradoxo é um truc de salão, uma escamoteação engraçada, um tirar ovos do nariz, e seguramente pensam que Chesterton escreveu a Ortodoxia "for fun".

Para responder a essa opinião é preciso buscar inspiração no próprio Chesterton e dizer que, naquele sentido, não há um só paradoxo em todos os seus livros, e que o riso da ortodoxia é extremamente sério.

Por isso tudo e principalmente pensando nos leitores católicos, tive a idéia de tentar aqui uma modesta propaganda.

Recomendo o Chesterton como se recomenda o quinino, principalmente para aqueles que por dever de ofício freqüentam os mangues da inteligência, as paragens encharcadas de lugares comuns, as baixadas do pensamento: para aqueles que possam confundir catolicismo com sisudez e cultura com academias.

Quando por exemplo, em roda de intelectuais, um senhor bem vestido dissesse pausadamente que a Igreja tem feito resistência ao Progresso, algum de nós, católico, antigo aluno distinto de apologética, seria capaz de aceitar uma educada controvérsia, tentando improvisar uma advocacia da Igreja, toda ela miudamente construída com fatos e interpretações.

Iria discutir o caso de Galileu, citar Copernico, lembrar que também a revolução se opôs a Lavoisier, e que Einstein foi desterrado pela cruz gamada. Ficaria tudo cristalizado num ambiente acadêmico, tudo impregnado da mais educada idiotia. Seria uma marcação de pontos como no bridge, a saber quem tinha encarcerado mais astrônomos ou queimado mais químicos.

Ora, quem tivesse o Chesterton na mão, como um vidro de sais, poderia simplesmente responder que, pensando bem, a Igreja é a única coisa que realmente tem progredido. A maior parte dos católicos presentes a tal reunião, ficaria assustada, a tal ponto nós os católicos nos educamos no hábito de defender, de justificar, de desculpar a Igreja, e a tal ponto receamos espantar o adversário com palavras cristãs demais.

Parece que numa discussão inteligente é preciso calar o amor ao Pai para não ficar como testemunha suspeita, e por isso às vezes se nos afigura, a nós católicos, preferível adotar um tom mais mundano do que cristão. Já ouvi turbulentas gritarias cosmogônicas em que cada um tem sua idéia para as origens e para as leis, e numa dessas gritarias lembro-me que um transbordante católico, no auge do entusiasmo, tão fácil lhe pareceu atacar o darwinismo que chegou a gritar: — Para isso nem preciso de Deus...

Esses católicos costumam praticar a contabilidade da Verdade.

Julgam meio caminho andado quando os seus oponentes acabam concordando que são a favor de Jesus. Julgam que a Igreja cresce subitamente e o Cristo ressuscita quando se consegue apurar uma safadeza de Rousseau; julgam que é um verdadeiro apostolado contar que Diderot ensinava o pelo-sinal à filha como se toda a Verdade, todo o Cristo, estivesse à espera de Diderot.

Preferem em presença dos adversários e dos indiferentes não cheirar demais a incenso, e, sempre que possível, se colocar no próprio plano fazendo um miúdo inventário de fatos e anedotas a favor dos Papas. Têm satisfação em citar Psichiari, não por ele mesmo, mas especificamente porque Psichiari responde a Renan e assim, numa espécie de intriga em família, desfaz a má impressão da vida desregrada do avô.

Por isso tudo Chesterton aparece um pouco bruscamente perturbando a diplomacia filandrosa que julgam necessária para salvar os restos da Igreja. É como se na mais solene sessão de Júri alguém se lembrasse de se perguntar ao réu se o Juiz era culpado.

Depois do susto vem o alívio, o sorriso e a classificação de paradoxo. E o julgamento do Cristo pelos jornalistas continua para a delícia das galerias...

Será preciso ler algumas páginas da Ortodoxia para mostrar que aquele aparente paradoxo não foi feito com propósito. O autor vinha perseguindo a idéia de progresso, vinha cercando o conceito, invertendo aqui e ali os lugares comuns que são os monumentos da cultura moderna, quando subitamente a apologia da Igreja apareceu, sozinha, explodiu por assim dizer, sem ser preparada, como chave de ouro de soneto.

Prefiro citar aqui algumas passagens mais características:

O Progresso deveria significar que estamos sempre querendo mudar o mundo para adaptar a uma visão definida. Realmente, hoje, significa que estamos mudando constantemente de visão. Deveria significar que conseguimos devagar, mas de modo seguro, a justiça e a piedade entre os homens: significa na verdade que estamos prontos a duvidar se a justiça e a piedade são desejáveis; uma página louca de um sofista prussiano qualquer faz os homens duvidarem.

O Progresso significaria talvez que estamos sempre em marcha para a nova Jerusalém. Significa que é a nova Jerusalém que está em marcha longe de nós. Não modificamos o real para o adaptar ao Ideal, modificamos o Ideal: é mais fácil.

Exemplos vulgares são sempre mais simples. Suponhamos que um homem queira um certo mundo, digamos um mundo azul. Não teria nenhuma razão de se queixar da lentidão ou rapidez da tarefa; poderia se fatigar nessa transformação, poderia se esgotar até que tudo ficasse azul; passaria por aventuras heróicas, nos últimos retoques de azul sobre um tigre. Haveria sonhos feericos de um lugar azul... Mas se ele trabalhasse com afinco, esse reformador cheio de altas idéias deixaria, segundo seu ponto de vista, um mundo melhor e mais azul do que tinha encontrado.

Se cada dia ele pintasse uma folha de erva, avançaria lentamente. Mas se cada dia modificasse sua cor favorita, então não adiantaria absolutamente. Se, depois de ter lido um novo filósofo, ele se pusesse a pintar tudo de amarelo, então o seu trabalho estaria perdido: nada teria a mostrar senão aqui e ali algum tigre azul, lembrança desagradável de sua primitiva maneira [...]

[...] senti mais uma vez que uma coisa estava presente na discussão: como um homem ouve um sino de Igreja dominar o tumulto da rua. Alguma coisa me dizia: — Meu ideal está fixado, ele foi fixado antes da fundação do mundo. Vocês todos podem mudar o lugar para onde querem ir, mas não aquele de onde vieram. Para o ortodoxo deve existir sempre um motivo para revolução, porque no coração dos homens Deus está sempre sob os pés de Satã. No mundo do alto o Inferno se revoltou contra o céu, mas neste mundo o céu se revolta contra o inferno. Para o ortodoxo pode sempre haver uma revolução que é uma restauração. A cada instante podemos fazer para a perfeição um progresso tal que nenhum homem viu, desde Adão."

É muito fácil falar em progresso quando se pensa unicamente, com uma concentração demente, num modelo de escarradeira, fazendo uma momentânea abstração de todo o Universo e toda a história. Vê-se nitidamente um progresso de escarradeiras, mas quando se torna a admitir a presença de tudo, do universo e dos homens, é preciso convir que a escarradeira é insuficiente, é forçoso convir também que, falando em Progresso, subentende-se um mundo ora mais azul ora mais amarelo. É fácil gritar que é paradoxo, mas realmente só pode progredir o que permanece, o que é fiel a si mesmo, o que não se destrói. Só vale a pena usar esse termo, pensar nele, como um equivalente de crescer. E somente em cima de um chão que permanece, que fica, que é desde o princípio et semper et nunc, poder realmente crescer a árvore da Igreja.

E cresce. Cresce em torno d'O que não muda, d'O que era antes de Abraão ser. Cresce na vertical da liturgia e na fronde do apostolado. Está em todos os tempos. Preocupa-se com Marx ou Nietzche nas cartas paternais de Pio XI que previnem os povos contra os excessos de azul ou de amarelo, e guarda na Missa o grito de um soldado romano. Vem de sempre. Já era desde o princípio. Traz todos os profetas e todos os salmos; surge de repente na Incarnação emergindo de um oceano de prefigurações e promessas; absorve tudo na passagem: a palavra do soldado, uma impaciência de Marta. Dá flores prodigiosas de aroma e suco para um vinho que há de correr por todos os séculos. É a árvore do pão e do vinho; o tronco se simplifica; os galhos se simplificam; um se atravessa no outro e o pão e o vinho se prendem na cruz. E a Igreja cresce conosco, apesar de nós, espalha em torno, quando floresce, as auréolas dos eleitos, sofre todos os golpes, todos os doutores, todos os Papas. E cresce, e progride, porque é sempre a mesma.

 

(A Ordem, Janeiro de 1940)

 

 

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