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Quinta-feira Santa

A vida cristã vista com os critérios do mundo parece um disparate; e quanto mais perto seguirmos as pegadas de nosso Salvador mais bem fundada parece a exclamação do Apóstolo: — “Escândalo para os judeus, loucura para os gentios.”

 

Eis que nesta semana e especialmente os dias da ceia e da Cruz parece concentrar-se um trágico divino que ultrapasse todos os trágicos humanos. Na 5ª Feira Santa, efetivamente, Jesus desvenda o mistério central de sua obra redentora. Ela será realizada por um Sacrifício — sacrifício único mas de três modos espantosamente diversos representados — em que Cristo Sacerdote, Verbo Incarnado, oferece ao Pai seu próprio corpo e seu próprio sangue, isto é, oferece ao Pai o Cristo–Vítima para a salvação dos homens.

 

Os três modos de presentação do mesmo e único sacrifício são: a Ceia, em que o Cristo, ainda em sua santa humanidade, ele mesmo com as próprias mãos, consagra o pão e o vinho que, por um portentoso milagre, maior do que o de toda a Criação, se transubstanciam e sob as espécies dos sinais sensíveis, nos trazem a presença real de Cristo vítima por nós, desde a ceia oferecido em Sacrifício sob os véus do sacramento.

Detenhamo-nos a meditar um pouco — e que Deus nos ilumine — em certos aspectos da Ceia que merecem especial atenção. Em artigo anterior chamamos a atenção para o caráter de obra-feita, de obra longamente preparada, desta cerimônia que emenda solenemente o Antigo no Novo Testamento. É em Lucas XXII, 7 a 13, que assistimos aos últimos arremates deste cerimonial comandado pelo próprio Jesus. Não sei quantas vezes o termo ide e preparai, preparar, preparativos, mostram bem que o espantoso desenlace no opróbrio da Cruz em todos os seus pormenores foi comandado pelo artífice de nossa salvação. E é em Lucas XXII, 14 e 15, que chegamos à cena que dificilmente um coração católico pode evocar sem profunda compunção e sem um ardente desejo de voar ao encontro daquele ardente desejo que Jesus agora anuncia: — «Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa». Começa nesse ardente desejo a Paixão de nosso Salvador. Na Cruz, como tantos autores espirituais o assinalam, Jesus repete, no extremo desconforto de uma dor inimaginável, a mesma sede de almas, concentrado naquele grito que a Sagrada Liturgia expressa na palavra; — Sitio.

 

Uma nota se impõe à nossa atenção à medida que a cena da Divina tragédia se desenrola naquele cenário cuidadosamente escolhido para a solenidade. Naquele tempo Jesus já era bem conhecido e já contava centenas de seguidores mais ou menos assíduos. No Domingo anterior fora aclamado pelo povo de Jerusalém: “Hosana! Bendito aquele que vem em nome do Senhor! Rei de Israel!”(Jo XII, 13 a 21). As expressões «muitos estenderam seus mantos» sugerem uma apreciável multidão. Ora, naquele instante máximo Jesus fez questão de estar só com os doze como que para mais condensar, e até ouso dizer, para melhor segredar o mistério sagrado da vida profana. Deste arcano e desta segregação resultaria uma maior firmeza nuclear no centro da Igreja. E se essas reflexões são realmente irrefutáveis, concluímos aflitos que as infelizes reformas litúrgicas, especialmente no que concernem à Santa Missa, exibem um espírito que dificilmente se coaduna com o que nos enche a alma diante da ceia.

 

Fugindo à idéia de Sacrifício, pouco aceitável na ONU, e procurando maior apoio na Ceia, os autores do novo missal, no infeliz Ponto 7 do Institutio Generalis apresentam a missa como essencialmente constituída «pela assembléia dos fiéis».

 

Por onde se vê que o extravio provocado pelo horror à Cruz, espantalho dos humanistas, em vão buscará apoio na Ceia. Exageradamente errado o famoso ponto 7 de Monsenhor Bugnini, não sendo apenas um erro material isolado, mesmo depois das serziduras e remendos, continua a bem revelar o novo espírito que alegrou Taizé e que na capa de Documentations Catholiques provocou a tenebrosa hilaridade comentada pela revista Itinéraires (n˚ 178 – Dez. 73).

 

Neste ponto apareceu-me o fantasma de um leitor a me reclamar o que lhe soa como uma impiedade imperdoável: aproveitar a Quinta-feira Santa para referências e comentários polêmicos.

 

Ora, caríssimos leitores, se o que até aqui disse provocou espanto, o que agora acrescentarei ainda mais estranho parecerá: a Quinta-feira Santa é, de todos os dias do ano, o dia mais indicado e mais propício para um artigo polêmico não somente em defesa da Santa Missa mas na denúncia dos traidores. Atrás insisti na idéia de uma esmerada preparação feita pelo próprio Senhor Jesus para a consumação de toda a dramaturgia de nossa salvação. Ora, entre as cenas preparadas pelo divino dramaturgo nós trememos diante desta obra-prima: «...Tendo assim falado, Jesus se perturbou no seu espírito e declarou em voz clara: — Em verdade em verdade vos digo um de vós me trairá. Ouvindo essas palavras, os discípulos se entreolharam sem saber de quem falava Jesus. Então, aquele discípulo que Jesus amava achava-se encostado em seu ombro; Simão-Pedro fez-lhe então um sinal e lhe disse: — Pergunte-lhe de quem fala. E João dirigindo-se a Jesus: — Senhor, quem é? Jesus respondeu: — É aquele a quem darei o pedaço de pão que vou molhar no vinho. Tomando pois o pedaço de pão molhado deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. Tendo Judas recebido o pão, Satã entrou em sua alma. E Jesus lhe disse: — O que tens a fazer faze-o logo. (...) Em seguida Judas saiu. Anoitecera».

 

Este quadro em que Jesus formula uma denúncia que deve ter sido prevista na sua esmerada preparação e em que entra em cena o próprio Satã vem confirmar os seguidores de Cristo nesta ousada idéia de que não há dia mais oportuno para defesa polêmica das coisas santas e denúncia dos traidores.

 

  O GLOBO, quinta-feira, 15/4/76

 

 

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