Skip to content

O caráter religioso da Vendeia

 

Os historiadores atuais não se interessam mais pelo caráter religioso da Vendeia. Ou bem não falam, ou se falam, é apenas como uma lembrança1. Contudo, a simples menção não basta. Deve-se tentar compreender a espiritualidade dos vendeianos. Deve-se tentar também definir a relação entre a religião e o combate contra a revolução.

 

 

O movimento religioso anterior à guerra
 
O movimento de defesa da religião é anterior à sublevação. A guerra da Vendeia propriamente dita só começa no mês de março de 1793, antecedida contudo por um longo período de conflitos, cuja origem é religiosa. Durante o curso dos anos 1791-92, quase todas as regiões, formadas pelos quatro departamentos de Loire-Infériore, Mayenne et Loire, Vendeia e Deux-Sèvres, impõem dura e ativa resistência à política do novo regime, quando o assunto é religião2.
 
As populações protestam por duas razões.
 
A primeira é o alijamento de seus curas. A assembléia nacional criou uma nova Igreja, uma Igreja do Estado, sem vínculos orgânicos com o Papa – enfim, uma Igreja cismática3. Os bispos e os curas devem jurar obediência à Constituição Civil do Clero, lei da nova Igreja. Quem se recusa é destituído. Ora nos quatro departamentos supracitados a percentagem dos desobedientes monta em mais de 70%4. São pois mais de três quartos dos pastores que devem ceder o lugar e ir embora, para grande desespero dos paroquianos. O apego dos paroquianos a seus curas parece mais forte nas províncias do Oeste que no resto da França. Os curas cumpriam um importante papel na vida paroquial. Eram designados amiúde como executores testamentários. Enfim na região de Mauges (que será o epicentro da sublevação) eles eram na maioria das vezes naturais da região. Havia entre eles e suas ovelhas uma confiança inexistente em outras províncias, constituindo-os como protetores naturais da população em regiões onde a nobreza era pouco numerosa e pouquíssimo influente. Quando os destituíram, provocaram a inquietude; quando os expulsaram, a loucura. Que mais pode acontecer? Qual o significado dessas medidas bárbaras? “A religião, diriam os habitantes de Cerqueux de Maulévrier numa petição, a religião e os padres são na certa nossas propriedades mais caras, por que querem-nos privar delas5?”
 
A segunda razão do descontentamento popular é a supressão de várias paróquias, logo seguida, após inventário, do fechamento das igrejas. A Constituição Civil do Clero prescrevia a modificação da carta de circunscrições eclesiásticas e a supressão das menores entre elas. As administrações locais da Vendeia propõem 89 supressões, o que num total de 333 paróquias representa um percentual de 26,7%6. Em Mayenne-et-Loire suprimiram 70 paróquias, ou seja, 20% do total7. Os habitantes não entendem nada. Julgam-se expoliados.
 
Num primeiro momento o protesto reveste-se de formas pacíficas – eles peticionam, eles processam.
 
Eles peticionam - por exemplo, a 10 de junho de 1791, a municipalidade de Meley (Mayenne-et-Loire) escreve ao distrito de Choley solicitando a conservação de seu pastor, padre não juramentado; não havia ele “governado a paróquia durante 32 anos8”? Outras municipalidades invocavam os Direitos do Homem. Lê-se numa petição: “O artigo 10 da Declaração dos Direitos do Homem estatui que ninguém deve ser molestado por suas opiniões religiosas e não obstante hoje em dia vemos a violação desse direito, reconhecido de forma solene pela constituição9.”
 
Eles processam – a partir do mês de junho de 1791 multiplicam-se as grandes procissões penitenciais dos peregrinos aos santuários marianos da região de Mauges, Notre-Dame des Garde, Notre-Dame de Bellefontaine e Notre-Dame de la Charité em Saint-Laurent de la Plaine. São manifestações realmente impressionantes: milhares e milhares de pessoas atravessam todo o país, dia e noite, alternando a recitação do rosário e a entoação de cânticos marianos. Trata-se de reparação, de penitência e de invocação deprecatória ao céu contra o cisma e a perseguição.
 
Mas os poderes públicos não querem tomar conhecimento das reclamações e dos cortejos dos peticionários e penitentes. As petições não obtêm resposta, e as forças armadas dispersam as peregrinações. A 24 de agosto de 1791 a guarda nacional enviada à Bellefontaine expulsa os peregrinos e demole a capela. Cinco dias mais tarde o santuário de Saint-Laurent de la Plaine sofre o mesmo destino. As intervenções armadas provocam a cólera da população, que não se contenta mais com manifestações pacíficas. Graves incidentes ocorrem a partir do começo do outono de 1791. Em 1792 os motins são incontáveis, particularmente numerosos nos distritos de Saint-Florent, Cholet e Vihiers, onde os habitantes das paróquias suprimidas opuseram-se por meio da força ao fechamento das igrejas. Em Fosse de Tigné, por exemplo, num dia de novembro de 1791, o padre juramentado da paróquia vizinha de Tigné esbarra numa violenta oposição, quando se apresenta para fazer um inventário do mobiliário e levar os objetos de culto. Uma multidão de insurgentes, em sua maioria mulheres, cobrem-no de ameaças, jogam-lhe pedras e obrigam-no a bater em retirada com os três guardas que o escoltavam10.
 
As medidas de internação dos padres refratários levam a exasperação ao limite. Tais medidas (tomadas pelas administrações departamentais) são interpostas na primavera e no verão de 1792. Desde então sente-se que a Vendeia está em ebulição e que a revolta pode estourar a qualquer momento. Em Deux-Sèvres, no mês de julho, deu-se um começo de sublevação: como se o diretório do departamento resolvesse pela internação dos padres não juramentados, o senhor de Branchamé, Baudry d’Asson, lançou um apelo à insurreição – seis mil camponeses de trinta paróquias marcham sobre Châtillon11. A primeira revolta fracassa, mas se pode considerar como o ensaio da grande sublevação de março de 1793.
 
É permitido falar numa pré-guerra da Vendeia, cujas causas são religiosas. Dizemos religiosas, e não apenas eclesiásticas. Seria um erro reduzir o conflito a uma questão de padres e paróquias. Junto a seus padres e paróquias a população se mobiliza, mas é em defesa da Igreja. Sua queixa em favor dos padres e paróquias exprime tão-somente o apego à Igreja e o horror ao cisma. Vejam o caso dos habitantes da paróquia de Saligny. Eles protestam contra a expulsão do cura, mas que dizem eles? Declaram-se “inviolavelmente ligados à religião católica, apostólica e romana, na qual nasceram, querem viver e morrer12”. Eles protestam a fé, a fidelidade à Igreja. A Vendeia tem raízes na Igreja13.
 
A religião e a sublevação de março de 1793
 
Apesar de tudo a causa imediata da grande sublevação armada de março de 1793 não era em nada religiosa, mas sim o decreto da Convenção de 24 de fevereiro, que ordenava o recrutamento imediato de 300.000 homens e o sorteio entre todos os homens menores de 40 anos. O decreto arribou em Cholet a 2 de março. A insurreição estourou ali a 3 de março. Os primeiros insurrectos estão entre os chamados a tirar a sorte. Os vendeianos não tomam armas para defender a religião, mas para escapar ao serviço militar.
 
Não pegariam eles em armas de qualquer maneira? A política antirreligiosa da Revolução não os teria levado sem falta a tais extremos? Não há como saber ao certo. Precisaria de que os padres remascentes na região exortassem à revolta. Ora os padres não apregoaram nada parecido. Nenhum deles aconselhou que se respondesse a força pela força. Nenhum jamais disse: “Rebelai-vos”. Todos eles disseram o contrário, recomendaram a abstenção à toda violência. “Longe de excitar o povo à revolta, escrevia um padre em fevereiro de 1792, exortamo-lo à submissão à lei e ao respeito incondicional das autoridades constituídas. 14” Resistência à Constituição Civil, recusa dos padres intrusos, rejeição ao cisma, sim. Revolta armada, não. Sobre o recrutamento dos 300.000 homens, escreve com justa razão o memorialista Boutillier de Saint-André: “Esse último motivo fora o motor verdadeiro da sublevação e chego mesmo a crer que, sem tal medida extraordinária, não haveria insurreição; o povo assistira à morte do rei e ao fechamento das igrejas sem agitações, apesar de não ir sem dor, contudo preferiram se levantar e morrer a encaminharem-se para a fronteira15.”
 
Não obstante a religião não ser a causa, não tarda a se tornar a inspiração. A sublevação começa a 3 de março e, a partir do dia 13, os insurgentes desfraldam o estandarte da religião. Nesse dia Cathelineau, entrando na guerra, marcha sobre Jallais. Chegando próximo à cidade – são onze e meia da manhã – a tropa descansa ao pé dum calvário. “Meus amigos, diz Cathelineau, não esqueçamos que combatemos por nossa santa religião.” Mal proferidas essas palavras, ajoelha-se e entoa o Vexilla Regis16. No dia seguinte, 14 de março, os insurgentes cruzam Cholet; todos ostentam insignias religiosas: “(...) Eu vi, escreve uma testemunha ‘patriota’, uma coluna de pessoas armadas de fuzis, canjirões, forquilhas, foices... enfeitados de penachos brancos, adornados com uma medalhinha quadrada, sobre as quais estavam bordadas diferentes figuras, como as da cruz, de coraçõezinhos furados de espinhos e outros sinais desse tipo17.” Enfim a 21 de março, na intimação aos habitantes de Chalonnes – primeiro texto conhecido de autoria do estado-maior da insurreição – os generais do “exército católico e real” adjuram os sitiados “em nome de Deus” e “da religião” 18. A sublevação não decorreu diretamente da religião, mas a guerra logo logo tornou-se religiosa.
 
Catolicismo e realismo
 
É verdade que ela também é política. O exército se qualifica como “católico e real”, e a intimação de Chalonnes chama os insurgentes de “realistas” (“um exército de cinqüenta mil realistas”). A política possui maior peso que a religião, ou é o contrário?
 
Longe de nós minimizar a dedicação dos vendeianos à causa realista. A restauração da monarquia estava entre seus objetivos de guerra. Quando os ingleses os interrogaram sobre isso em agosto de 1793, eles disseram que queriam “tão-somente restabelecer o rei no trono, submetendo-se por antecipação a tudo quanto ele ordenasse em vistas à felicidade da França19”. “Viva o rei” é o grito de guerra; a todo instante ele ressoa. Durante a batalha ele aviva a coragem: “Os soldados do Sr. de Lescure, escreve a marquesa de Rochejaquelein, hesitavam deveras em segui-lo; ele avança sozinho cerca de trinta passos para animá-los, pára e grita “Viva o rei20”.” Esse também é um sinal de reconhecimento. “Quando chegáramos perto da cidade (Bressuire), conta o mesmo autor, começamos a topar com vendeianos. Eles souberam quem éramos e puseram-se a gritar “Viva o rei”. Repetimos-lhes o grito chorando enternecidos21.”
 
Afora isso, pode-se falar duma dedicação à pessoa do rei? Nada prova que tal sentimento haja impulsionado os vendeianos. Algumas famílias travaram conhecimento com o testamento de Luís XVI, e a leitura do texto emocionante fê-los verter lágrimas22, mas não encontramos até aqui na crônica da revolta qualquer testemunho de particular piedade à memória do amado rei. Há de se ficar espantado? Os vendeianos poderiam lamentar um rei que se fizera artífice de sua desgraça, quando sancionou a Constituição Civil do Clero e o decreto de juramento? Provavelmente o filho do templo suscitou um sentimento de piedade, mas isso não passa de suposição. Só sabemos que os vendeianos chamavam-no de “reizinho23”. Estamos convictos de que o fervor realista dos vendeianos está menos ligado à pessoa do rei que ao príncipio da realeza. E é claro que este conta menos que o fevor religioso, como provam vários textos, a começar pelo depoimento de d’Elbée diante do tribunal militar de Noirmoutier, que o condenaria à morte:
 
“Eu juro pela minha honra que, ainda que desejasse um governo monárquico, não possuía nenhum projeto em particular; eu poderia viver como cidadão pacato sob qualquer governo que me assegurasse a tranqüilidade e o livre exercício da religião que professo24.”
 
Deve-se citar igualmente as palavras dum simples combatente, dirigidas ao jovem Bouitiller de Saint-André, que as transcreve em suas memórias:
 
“Um dia, escreve ele, (a cavalaria vandeiana) cruzava a cidade, fôramos ao encontro dela gritando com vontande “Viva o rei”. Um dos cavaleiros me disse: ‘Grita sobretudo “Viva a religião”. É por ela que queremos viver e morrer’25.”
 
A primazia da religião explica-se a contento pela ausência do rei. Luís XV e Luís XVI quase não se mostravam ao povo. Luís XVIII e o futuro Carlos X também pouco apareciam aos vendeianos, que morriam por eles. A religião prevaleceu porque o rei não apareceu26. O padre Bernier teve toda razão quando em 1800 disse aos insurrectos: “O conde de Artois não virá hoje, como também não foi a Quiberon e à ilha d’Yeu. Ele não se dignou sacrificar-se em sua própria causa; por que motivo os realistas far-se-iam arruinar ou matar por ela27?“ O primeiro cônsul declarou a Beurmont, sem que ninguém o desmentisse: “Eu sei que o rei reclamou da guerra do Oeste. Vi-o escrever de próprio punho. O padre ??? leu para mim (falta o nome) 28.” Com um rei desses, que poderia fazer o realismo? Em 1795 Charette aceita uma paz sem rei: dentre os 22 artigos da pacificação de la Jaunaye nenhum faz menção à uma eventual restauração29. Em 1800 a promessa de liberdade de culto foi o bastante para desarmar os vendeianos. Não dá para lutar indefinidamente por um rei que nunca viram e de quem não se pode dizer que seja pródigo em encorajamentos.
 
A balança sempre pendeu para o lado da religião, que tivera a precedência: já se lutava por ela antes de começar a sublevação. A ela também pertenciam os chefes: Cathelineau e d’Elbée, os dois primeiros generalíssimos do exército vandeiano, eram com certeza muito mais homens de religião que homens do rei. Enfim não nos esqueçamos da importante participação dos padres. Tudo bem, o clero refratário não insuflou a revolta, nenhum deles tomou armas, mas muitos padres serviram como capelões, sendo que alguns não se contentaram em distribuir os sacramentos. Eles não hesitaram em empolgar o zelo dos combatentes com suas exortações. Citemos entre os mais zelosos o padre Barbotin, vicário de Saint-Georges, e o padre Doussin, cura de Saint-Martin de Ré. Um e outro realmente combateram com palavras. “O Sr. Barbotin, escreve Boutiller de Saint-André relatando a tomada de Cholet, estava em meio à tropa indisciplinada, rezando, arengando, implorando por brados ao Deus dos Exércitos, que dera a vitória ao jovem Davi em prol da salvação de Israel30.” O padre Doussin tornou-se célebre na batalha de Dol, a 21 de novembro de 1793: os vendeianos cediam ao pânico; o padre apostrofa os fugitivos e sucede reconduzi-los ao combate. Do cimo dum outeirinho, cruxifixo à mão, dirige-lhes estas palavras:
 
“Marcharei à vossa frente com a cruz; os bravos que queiram combater prostrem-se de joelhos, dar-lhes-ei a absolvição; caso tombem, subirão ao paraíso. Mas aos poltrões que abandonam seu Deus, suas famílias, nada de absolvição; do mesmo jeito vão morrer, mas cairão no inferno31.” A propaganda republicana destacou deveras essas intervenções clericais nas ações armadas, dali tirando argumentos contra os padres refratários, dando a entender que cada um deles seria um novo padre Barbotin ou um padre Doussin.
 
Sabe-se também que vários eclesiásticos exerceram funções de autoridade nas organizações vandeianas. Quatro padres (pelo menos) tinham assento no Conselho Superior formado em Châtillon no final do mês de maio de 1793: o bispo de Agra32 era o presidente, o beneditino Dom Pierre Jagault secretário-geral, e os padres Bernier e Brin, respectivamente cura de Saint-Laud d’Angers e cura de Saint-Laurent, simples membros33. Encontra-se o padre Bernier no Conselho Geral formado por Stofflet em Maulévrier em maio de 1794. Ali exerce importantes funções na qualidade de comissário-geral civil34. O papel do clero no governo da região inssurecta é bastante relevante. Até aí nada de extraordinário: o governo vandeiano inspira-se nas instituições do antigo regime; sabe-se que, nessas instituições, havia lugar para o clero. Não é absurdo pensar entretanto que a importante participação clerical servira a causa da religião às expensas da causa da realeza. Recordemos as relações entre o clero e a monarquia ao fim do antigo regime – o clima entre eles não estava bom. Não melhoraram quando Luís XVI acatou a Constituição Civil e o decreto de juramento. Os sentimentos realistas não estavam muito em voga entre os refratários, e os eclesiásticos do governo vandeiano talvez não fossem exceção35. Eles se declaram realistas, mas no fundo eles o eram? É uma questão para se examinar. Há um caso bem conhecido, o de Bernier. É sabido que ele se aliou a Bonaparte depois do 18 Brumário. Sua campanha pacifista foi que logrou afastar a Vendeia da causa real36.
 
Qual religião?
 
Das duas causas dos vendeianos – a religião e o rei – a primeira ia-lhe mais ao coração.
 
Mas qual religião é essa? Os republicanos qualificam-na de superstição. Ora ela é justamente o contrário. Os vendeianos não se limitam a defender os ministros, as paróquias e os campanários, mas também e sobretudo a glória de Deus. Anunciando em caráter oficial ao exército católico e real a morte de Cathelineau, o Sr. Blon, seu parente, escreve: “O bom Cathelineau rendeu a alma àquele que lha dera para vingar Sua glória37.” Os combatentes, tomados do sentimento da transcendência de Deus, invocavam em público sua proteção. Enquanto durou as extensas campanhas do exército católico e real, celebrava-se uma missa antes de cada investida; por ocasião da cerimônia, o clero abençoava os estandartes. Na véspera da batalha de Torfou, conta a marquesa de Rochejaquelein, “o cura de Saint-Laud celebrara a missa à meia-noite; antes da partida, fizera um belíssimo sermão e abençoou solenemente uma grande banderia branca38.” “Antes do ataque (de Fontenay), escreve o mesmo autor, deram a absolvição aos soldados39.” Cantava-se o Te Deum depois das vitórias. De novo na obra da Senhora de Rochejaquelein encontramos que após a vitória de Saint-Fulgent “cantou-se o Te Deum em todas as paróquias40”. Os cantos de marcha e os de batalha são também cânticos religiosos. Cathelineau, o primeiro generalíssimo, durante muitos anos fora chantre em sua paróquia. Ele conhecia com perfeição os salmos e os hinos, assim como o modo de entoá-los. Quando do 13 de março, diante de Jallais, ele mandara cantar pela primeira vez o Vexilla Regis; de certa maneira ainda conservava-se no papel de chantre. A Marselhesa dos Brancos – composta por um eclesiástico refratário, o padre Lusson, vicário em Saint-Georges de Montaigu – é um cântico religioso, dado o caráter de suas estrofes. Os vendeianos não dissimulam a fé, mas proclamam-na ao marchar contra o inimigo.
 
Eles carregam os símbolos da fé: os corações e os escapulários. Sabemos que já em 14 de março numerosos combatentes ostentavam a insígnia do Coração de Jesus. A 15 de março Lescure escreve à prima: “Envio-te uma coleção de Sagrados Corações de Jesus (...). É uma devoção seriíssima, que praticamos com muito proveito41.” O escapulário de que fala Boutiller de Saint-André, quando do grande ajuntamento de 13 de março (“Todos de escapulário sobre o coração42...”), é o do Sagrado Coração ou o escapulário mariano da Confraria do Rosário43? Parece mais o segundo: sabe-se que os padres monfortianos fundaram por todo o país, durante suas missões, confrarias do rosário.
 
Entretanto mais impressionante que as insígnias, as cerimônias e os cantos, é a piedade dos vendeianos. Não se trata aqui de idealizá-los, nem de vê-los como monges combatentes, mas de sublinhar a fidelidade à oração. Todos os testemunhos concordam nesse ponto – eles rezam sempre e com fervor. São vistos a caminho da batalha rezando o terço. Se por ventura topam com um calvário ou uma cruz de missão, em meio ao campo de batalha, logo se ajoelham e, descuidosos do fogo inimigo, continuam a rezar. Esta foi a razão por que na batalha de Fontenay-le-Comte a ofensiva vitoriosa interrompeu-se por um certo tempo: “Naquele momento, conta a marquesa de Rochejaquelein, perceberam um cruzeiro de missão; ato contínuo lançaram-se todos de joelhos, apesar de estarem ao alcance do canhão. O Sr. de Baugé qui-los de novo à marcha. ‘Deixai-os rezar a Deus’, disse-lhe tranqüilo o Sr. de Lescure. Levantaram-se e puseram-se novamente a correr44.” A oração contudo era incessante. Caso os combatentes estivessem muito ocupados no calor da batalha, não encontrando tempo livre para rezar, suas mulheres os substituíam. Dizem-nos que durante a batalha de Châtillon, “seguindo o costume, todas as mulheres rezaram a Deus enquanto esperavam o embate45”.
 
Três devoções inspiram a oração: a devoção à cruz, ao Sagrado Coração e à Virgem Maria.
 
As longas e freqüentes estações aos pés dos calvários e das cruzes de missão – mui numerosas neste país – testemunham a devoção à cruz. O Vexilla Regis, cantado antes das batalhas, exalta a cruz e a saúda: “O cruz ave, spes única46”. Há de se recordar que o início da sublevação coincide com o tempo litúrgico da Paixão: o domingo caía àquele ano em 16 de março. Ora o hino Vexilla Regis é cantado em vésperas durante todo o tempo da Paixão. Cathelineau, cantor da sua paróquia, sabia disso. Por isso escolheram o Vexilla, provavelmente por essa razão.
 
A devoção ao Sagrado Coração, por muito tempo reservada à uma elite piedosa, havia já uns trinta anos que se ia espalhando rapidamente. Ela foi eleita como o recurso predileto das almas inquietas e perturbadas durante os primeiros anos da revolução. Em junho de 1792 o rei Luís XVI promete, caso logo o libertem, consagrar o reino ao Sagrado Coração. Sabemos por meio de correspondências que os indivíduos mais poderosos do clero refratário em solo francês – o padre Emery e o padre de Clorivière – eram praticantes da devoção e diligenciavam em torná-la conhecida. A devoção “cordiana” dos vendeianos nada tinha de estranho. Ela seguia um movimento geral de piedade: os católicos fiéis naqueles tempos de provação voltavam-se à misericórdia infinita.
 
Cremos todavia que o “Coração” vandeiano possui um significado particular. Há de se admitir que as pessoas que portavam tal insígnia, a marca do “Coração”, são combatentes. Ora a devoção ao Coração, como se sabe, não é voluntarista – anima-a o espírito de reparação e humilhação, espírito de união com os sofrimentos do Cristo, de imolação solidária. Se os vendeianos eram verdadeiros devotos do Coração, é razoável pensar que eles não lutavam nem por desejo de conquista, nem por sede de vingança, mas como fiéis devotados ao Coração de Jesus, em busca de sacrifício. Chegamos aqui a um domínio misterioso – a vida das almas – onde nenhum historiador consegue descortinar o mistério. A devoção ao Sagrado Coração todavia é um índice preciosíssimo. Que vendeianos entregassem-se ao combate com espírito de sacrifício, eis uma suposição bem plausível.
 
Ademais, sem isso, como se explicaria determinados aspectos do desenrolar da guerra? Por exemplo a decisão tomada por Seumur de marchar sobre Nantes e não sobre Paris. Algumas das razões são militares: o exército vandeiano não é numeroso, nem assaz estável para empreender uma marcha sobre a capital. Mas a razão principal não é militar, e diz muito do desprendimento dos vendeianos: que importa Paris? Não estão em busca de conquistas, nem do poder. Como se explica, sem a devoção ao Coração de Jesus, a extraordinária tenacidade dos combatentes, a belicosidade e a renovação incessante dos contingentes? Não é o espírito de sacrifício o segredo da coragem guerreira? “Só uma coisa tememos no mundo, diz a canção de guerra, é ofender Nosso Senhor (...). Só uma esperança teremos no mundo, é o Coração de Nosso Senhor47.”
 
As grandes peregrinações de 1791 exaltaram a devoção mariana. Também circulavam notícias sobre aparições. A Virgem Maria aparecera, diziam, em Saint-Laurent de la Plaine, após a demolição do santuário. Ela haveria se mostrado várias vezes no oco dum carvalho, segurando o Filho aos braços. As autoridades mandaram cortar o carvalho, mas as mulheres recolheram os fragmentos, os quais veneravam como relíquias48. Nesse mesmo ano de 1791 difundiram-se por todo o país piedosos folhetos populares intitulados “Cartas à Santissima Virgem Maria, Mãe de Deus, no céu empíreo, Rainha do Universo, para apresentar a seu adorável Filho Nosso Senhor. Amén. Quem trazer consigo esta oração será protegido de todos os riscos e perigos49.” Em 1793 os combatentes do exército católico e real estavam firmes na recitação do rosário. A Senhora de Rochejaquelein é testemunha disso: “Fiquei surpreendida, escreve ela, e edificada com ver todos os soldados abrigados conosco na mesma casa ajoelharem-se e recitarem o rosário que um dentre eles conduzia em alta voz. Percebi que sempre faziam devoção pelo menos três vezes por dia50.” Qual o habitante da região que não possuía seu terço? Nos autos de arresto dos suspeitos, o inventário dos objetos apreendidos acusavam amiúde a posse de “símbolos de fanatismo”, quais sejam, cruzes, Corações, mas sobretudo terços. Os comissários e os soldados arrancavam-nos com violência e os despedaçavam ou jogavam-nos ao fogo. Entretanto não podiam impedir os condenados à morte a recitarem as Ave Marias ou a cantar em coro o cântico do padre de Monfort:
 
“Je mets ma confiance
Vierge, en votre secours
Et, quand ma dernière heure
Viendra fixer mon sort
Obtenez que je meure
De la plus sainte mort.”
 
“Ponho minha confiança
Virgem, em vossa fiança
Quando no final ensejo
De jogarem a minha sorte
Realize o meu desejo
D’uma muito santa morte”
 
A cruz, o Coração e o terço são os três símbolos escolhidos. Mas se alguém quiser definir essa religião, deve-se acrescentar ainda a virtude da esperança. Os vendeianos não aspiram à glória deste mundo, mas a do céu. Eles desejam nessa glória a consolação. Eles cantam (esta é uma estrofe da Marselhesa dos Brancos):
 
“Cette mort dont on nous menace
Sera le terme de nos maux
Quand nous verron Dieu face à face.,
Sa main bénira nos travaux”
 
“Ameaçam-nos com trespasse
Mas é o termo de nossa dor
Frente a Deus então face a face
Sua mão bendirá o lavor”
 
Ao se dirigirem ao suplício em Angers, Marguerite Rouleau e seus companheiros cantaram:
 
“Avancez mon trépas,
Jesus, ma douce vie
Car mon âme s’ennuie
Ne vous y voyant pas51.”
“Dai-me logo um fim,
Doce vida, Jesus.
Meu tédio é uma cruz
E vós longe de mim”
 
Religião e contra-revolução
 
Pode-se dizer, num certo sentido, que a esperança dos vendeianos é contra-revolucionária.
 
Ela era uma como réplica à provocação revolucionária.
 
Os revolucionários provocavam seus inimigos ao lhes prenunciar a aniquilação. Quando os representantes em missão escrevem que “a Vendeia deve ser pulverizada, porque ela ousa duvidar dos benefícios da liberdade52”, empregam a palavra pulverizar em sentido forte, i. é, não somente matar, mas também reduzir a pó. Em conseqüência, eles ameaçavam, provocavam, desafiavam os vendeianos: não vamos apenas matá-los, mas vamos desafiar sua esperança, porque depois da morte não há nada. Os vendeianos aceitam o desafio. Eles se recusam a ceder ao desespero; recusam a crença no aniquilamento pós-morte. Exorcizam a morte proclamando o triunfo da cruz, dessa cruz que, sem dúvida, é morte, mas morte que conduz à vida. Como se diz no Vexilla Regis, o hino escolhido para se cantar antes das batalhas:
 
“Les étendards du roi s’avancent.
Voici que brille le mystère de la croix
Où la vie a subi la mort
Et par la mort a révélé la vie.”
 
“Os estandartes reais avançam
Eis que brilha o mistério da cruz
Onde a vida sofreu a morte
E da morte luziu a vida.”
 
Não há de que duvidar: a Vendeia é contra-revolucionária em sua espiritualidade. Diríamos até que a espiritualidade é nela o que há de mais contra-revolucionário. A espiritualidade dá-lhe coragem de resistir às forças terribilíssimas dessa Revolução saída das “luzes”, de resistir ao prazer mórbido da morte, à atração do nada, ao ódio ao ser.
 
Poderíamos nos inclinar a pensar que a contra-revolução se explicaria por isso, estaria toda nisso. Vejamos o realismo. O principal motivo não são as saudades do antigo regime, nem o amor ao rei, mas o horror à república, regime de morte e destruição, regime culpado de muitos crimes de sangue. Ao contrário, a Vendeia afasta-se da causa realista cada vez que a república, renunciando por um tempo às ameaças de morte, acena-lhe com uma linguagem humana, a dos trabalhos e dos dias. Quando Hoche disse aos vendeianos, na proclamação de 26 de outubro de 1796: “Reconstruam as choupanas, orem a Deus e cultivem os campos... 53”, estes logo começaram a depôr armas. “A proclamação, disse o padre Deniau, foi mais funesta que dez batalhas perdidas54.”
 
Todavia, quem considera a força espiritual vandeiana em sua justa medida e o obstáculo que essa força representa para a revolução, não é Hoche, simples encarregado, mas Bonaparte. Com o gênio de costume, Bonaparte compreende o ponto capital: enquanto existir essa força, a Revolução não poderá se estabelecer. Ora uma tal força não pode se vencer com armas. Decidiu então entorpecê-la. Ele dissera um dia a Bourmont, um dos chefes da Vendeia de 1799: “Trato a política como a guerra. Distraio uma asa para abater a outra55.” A asa distraida foi a religão. Como ele a distraiu? pela liberdade de culto e a concordata. Assim fez-se a ilusão. Quem poderia ainda enxergar o anti-cristianismo intrínseco do novo regime? Depois disso, era fácil derrotar o realismo. A asa abatida foram os realistas.
 
A clemência dos vendeianos
 
Sempre trazem à tona a questão do perdão aos inimigos, contudo há de ser fazer um exame mais completo e acurado.
 
A clemência dos vendeianos manifesta-se de dois modos: em primeiro lugar eles capturam prisioneiros e os poupam; em segundo não fazem represálias às pessoas e aos bens das regiões conquistas. Desde cedo eles tomaram a decisão de agir assim. No começo da insurreição, houve muitos episódios violentos: em Machecoul mataram o cura constitucional e vários outros “patriotas”; em Montagne os camponeses revoltados fuzilaram 33 homens da guarda nacional enviados contra eles56. Entretanto, nesses primeiros dias, o movimento não estava organizado ainda. Não se assinala nenhum feito desse tipo a partir de 14 de março. Em 19 de abril ocorreu o primeiro gesto espetacular: tendo capturado muitos prisioneiros por ocasião da tomada do castelo de Bois-Grolleau, os vendeianos não somente lhes concedem a clemência como os cumulam de bens. “Os prisioneiros, escreve o Marquês de Colbert, foram mui bem tratados”. O memorialista acrescenta: “(...) Os realistas seguiam amiúde esse sistema de generosidade e humanidade, não obstante os horrores que lhes prodigalizavam os cruéis inimigos57.” Mais tarde, nos meses de maio e junho, quando o exército católico e real apossou-se de várias cidades e burgos, os vencedores se abstiveram à toda exação. “Entravam pelas cidade adentro com toda a força, escreve a Senhora de Rochelaquelein; não maltratavam os vencidos, nem exigiam deles resgate ou contribuições58.” Mas a clemência dos vendeianos manifesta-se com maior esplendor na libertação dos prisioneiros. Depois da tomada de Fontenay (25 de maio) e de Saumur (9 de junho), milhares de prisioneiros foram libertados. Em Fontenay tosquiaram-nos antes de devolvê-los; em Saumur desnudaram-nos. Claro, os vendeianos não se organizaram para guardarem tantos homens, e se tal obra atenuou a magnimidade do gesto, contudo não a suprimiu.
 
Convém dizer também que no começo a clemência ia sem esforço: os bleus ainda não tinham começado a incendiar as vilas e a massacrar a população. Mas como a Convenção decretasse a guerra total, tornou-se mais e mais difícil não revidar da mesma forma A 8 de agosto os maiancences entraram na campanha e começaram a queimar sistematicamente as colheitas e as casas. Segundo a Senhora de Rochejaquelein os chefes da Vendeia decidiram mudar de conduta: “Os horrores cometidos pelos bleus, escreve ela, atiçando o furor de todos, acarretou a decisão de não poupar os prisioneiros (...). Proibiu-se o grito ‘entreguem-se e serão poupados’59”. É possível acreditar na memorialista? Tomaram mesmo uma tal decisão? Em todo caso, se a tomaram, não aplicaram. Em todas as batalhas do mês de agosto e setembro, continuam a fazer prisioneiros e a lhes poupar a vida. Na batalha de Saint-Fulgence, no começo de setembro, capturam cerca de 1800 prisioneiros. Pelo que sabemos, só seguiram o exemplo dos republicanos uma só vez, a Coron, a 18 de setembro, onde “todos os soldados capturados” são “fuzilados60.”
 
Nesse momento torna-se mui dificultoso conter a cólera vingadora do povo e dos simples combatentes indignados da sorte cruel infligida aos familiares e aos bens. Por vezes os chefes chegam tarde demais: a justiça já está feita. Em Pont de Bonne-Eaux, no mês de agosto, os campônios massacram os soldados republicanos em fuga. O manuscrito Colbert relata sobre o episódio o seguinte: tendo encontrado “muitas mulheres em oração próximas a alguns cadáveres”, La Rochejaquelein “pergunta-lhes o que faziam ali”: “meu general (responderam elas) oramos pelos pobres bleus que acabamos de matar61.”
 
Não é sempre que se evita o massacre, mas são muitas as vezes – sempre graças à intervenção dos chefes – que vidas são poupadas. Imortalizado pelo buril de David d’Angers, o “perdão de Bonechamps” é o mais conhecido, mas não é o único. No ano de 1793 destacamos seis outras intervenções do mesmo gênero. A primeira deu-se a 11 de abril, na noite do “embate de Chemillé”: os soldados queriam fuzilar os prisioneiros. D’Élbée manda-lhes recitar o Pater. Finda a oração, eles os apostrofa: “Desgraçados, vós ousais implorar a Deus o perdão, na medida em que perdoais a outrem.” Os soldados ficaram abalados; os prisioneiros estão salvos. A cena seguinte se passa a 20 (ou 21) de abril em Mortagne, no monastério beneditino, onde os inssurectos encurralaram os “patriotas” da cidade. Havia lá cerca de trinta prisioneiros. Os vendeianos, retornando à cidade depois do conflito de Bois-Grolleau, queriam-lhes dar um fim. As portas já estavam arrombadas. O antigo senescal de Mortagne, Boutiller de Saint-André, alertado pelos gritos dos familiares desesperados, interpôs-se e “enfrentou todo mundo”, “ocupou o batente com seu corpo” e, dirigindo-se aos prisioneiros, tratou de tranqüilizá-los: “Eu vos prometo, na certa, infelizes captivos, que vos salvarei ou morrerei convosco62.” Não foi preciso morrer. Os assaltantes já tinham voltado a si: “Do mesmo modo que os insurrectos mostraram-se bárbaros, tornavam-se calmos e tranqüilos63.” Cena análoga se deu em Châtillon poucas semanas mais tarde. Desta vez trata-se de soldados bleus feitos prisioneiros durante o ataque à cidade. Lescure ordenara que fossem encerrados, mas não o escutaram: “(...) Os camponeses, em vez de obedecer, puseram-se a degolá-los64.” Marigny, um dos chefes, comandava o massacre. Correm para procurar Lescure, até encontrá-lo. Furioso, Marigny o interpela: “Retira-te, gritou ele, pois estou matando os monstros. Eles queimaram teu castelo.” Mas Lescure não se deixa convencer e põe cobro à carnificina. Ele disse a Marigny: “Marigny, tu és cruel demais; morrerás pela espada65.” Ainda mais dramáticas foram as circunstâncias da intervenção de Bonchamps, a 18 de outubro. É o momento da passagem pelo Loire. Fugindo adiante da cavalaria de Westermann, uma multidão atulhada de bagagens, composta em parte por mulheres e crianças, está cruzando o rio em meio à uma confusão e precipitação inauditas. Ora existem cerca de cinco mil prisioneiros bleus trancados na igreja de Saint-Florent, à montante do rio. Levá-los junto com o exército é impensável, são muito numerosos. O oficial de guarda propôs metralhá-los e, unindo a palavra ao gesto, mandou apontar os canhões em direção às portas da igreja. Nesse preciso momento Bonchamps em seu leito de morte – gravemente ferido, morreria poucas horas depois – dá ordens para lhes perdoar. Sem perda de tempo seu lugar-tenente leva a ordem: “Perdão a prisioneiros, Bonchamps moribundo o quer, Bonchamps moribundo ordena66.” A 3 de novembro próximo, em Fougères (durante a volta de Galerne), é a Senhora de Rochejaquelein em pessoa – quando ainda se chamava Senhora de Lescure – que intervém para salvar os prisioneiros: Marigny (sempre ele) e seus homens já haviam começado o massacre67. Enfim, há de se mencionar o episódio de Entrain ao mês de dezembro, durante o recuo da volta de Galerne: trancaram 150 soldados republicanos dentro duma igreja; monsenhor Gilbert e Tourrault interpõem-se e impedem o fuzilamento68. Eis os perdões que nossas fontes mencionam. Existiram outros perdões? Talvez, mas para encontrá-los deve-se reler com atenção as memórias e as correspondências. Os textos são quase sempre alusivos. Por exemplo, a Senhora de Rochejaquelein conta incidentalmente que o padre Doussin “salvou uma vez a vida de muitos prisioneiros69”.
 
O fato de poupar prisioneiros não tem em si nada de extraordinário. Agindo assim os vendeianos limitavam-se a aplicar o direito dos povos, o direito de guerra em vigor antes da Revolução, e em geral observado. Contudo eles tinham muitos méritos em aplicá-la, já que seus adversários não lhe davam a menor importância. E não só não lhe davam a menor importância, como sequer podiam conceber a possibilidade do perdão. O representante Merlin de Thionville não chegou a qualificar o perdão de Bonchamps de “inacreditável hipocrisia70”? A palavra perdão não tem nenhum sentido para esse convencional e seus pares. Estariam perdoando culpados. Mas os vendeianos são muito mais que culpados. São uma variedade inferior da humanidade, “raça de bandidos”, “raça abominável”. A única coisa a fazer é purgá-los de sobre a terra71. A Vendeia massacrada exprime o desprezo ao homem. Em contrário, o perdão aos prisioneiros republicanos manifesta o respeito ao homem criado e resgatado por Jesus Cristo. O perdão vandeiano, tal como a sua esperança, possui um sentido contra-revolucionário e anti-iluminista.
 
No entanto convém esclarecer que a clemência dos vendeianos só durou algum tempo. De 1794 em diante a crônica dos combates não relata mais episódios semelhantes aos que vimos de mencionar. A devastação acarretata pelas Colunas Infernais levaram à radicalização da guerra por parte da Vendeia? É bem provável e além disso muito compreensível72. Deve-se invocar o exemplo dos chouans? Talvez. Em todo caso estes nunca mostraram, parece, os escrúpulos dos primeiros chefes da Vendeia. “A guerra é cruel, escreve em 1796 Francheville, um chefe chouan de Morbihan; tanto dum lado como do outro não existe clemência. Os prisioneiros são logo fuzilados73.”
 
Conclusão
 
Evocar o caráter religioso da Vendeia não é dizer muito. Mas se considerarmos a fé, a esperança e o espírito de perdão que a animava, ela é a própria religião. A Vendeia possuia uma grande riqueza espiritual, riqueza escondida e misteriosa, difícil de se vislumbrar a luz do dia. Dentre todas as revoltas contra-revolucionárias, esta é com certeza a mais religiosa. Pode-se compará-la neste mister com a guerra nacional dos espanhóis contra Napoleão.
 
Se não se leva em conta o caráter religioso, não dá para explicar a humilhação, nem a obscuridade.
 
A humilhação primeiro. De fato foi a religião dos vendeianos, seu “fanatismo”, que lhes valeu o desprezo dos adversários, uma vez que para os revolucionários, discípulos das “luzes”, não há sinal mais revelador de inferioridade que o fanatismo religioso. É imperativo dar sumiço nos “fanáticos”. Em Angers e em Nantes, a acusação de “fanatismo” é por si só suficiente para condenar à morte mulheres e crianças: à margem da folha, escrevem tão-somente a letra “F” (fuzile-se).
 
Agora a obscuridade. A Vendeia foi vítima da ignorância, do desamparo e do isolamento – e tudo isso entendemos como obscuridade. Este fora seu grande infortúnio, infortúnio causado pela religião. O zelo religioso dos vendeianos tornaram-nos suspeitos aos outros movimentos contra-revolucionários da França, os quais em sua maioria só possuiam motivos políticos. Quem eram esses intransigentes, esses cruzados? Eles estragavam tudo com seu radicalismo. Encontra-se nos arquivos ingleses a carta dum “realista do midi” contendo esse julgamento severíssimo: “O estandarte (dos vendeianos) anunciou cedo demais a revolução completa. Essa falha congregou dentro da Convenção os republicanos hesitantes e até mesmo uma parte dos antigos convencionais. O zelo religioso, excelente arrimo naquela região, é um motivo falso para o restante do império74.” A devoção dos vendeianos igualmente os separou da nobreza no exílio e dos príncipes, já que os nobres e os príncipes eram adeptos da filosofia das “luzes”: poderiam eles levar a sério soldados que marchavam para o combate recitando o rosário? Enfim a orientação mormente religiosa da Vendeia militar não tivera o condão de conquistar a simpatia das potências estrangeiras. A maioria dos soberanos e dos políticos europeus eram homens “esclarecidos”, impregnados de filosofismo e por conseguinte inaptos para compreender as razões duma sublevação em defesa da Igreja e da fé católica. Curiosamente a única potência que ajudou a Vendeia fora a Inglaterra, monarquia não-católica, e até data bem recente, duma hostilidade violenta para com Roma e tudo o que soubesse a papismo. Os reis Bourbons e católicos de Espanha e de Nápoles não deram nenhuma ajuda efetiva. Mas há com que se espantar? Suas cortes não estiveram durante muito tempo entre as mais “esclarecidas” da Europa das “luzes”? Por ocasião dum colóquio recente, sublinhou-se justamente “o isolamento político e ideológico” da Vendeia, atribuído não menos justamente à “indiferença da Europa das luzes75”. Mas isso não basta. Força é dizer que o isolamento é a causa e a indiferença a razão. A Europa das “luzes” permaneceu indiferente, e foi por causa do fervor do catolismo vandeiano, que lhe era estranho, quando não odioso. O clamor da Vendeia não encontrou eco, porque em verdade era a fé católica que bradava por meio dele.
 
(Tradução: Permanência. Originalmente em Le Sel de la Terre no. 8 pp. 211-229)

 

  1. 1. Eles tratam, é claro, da questão dos padres refratários, mas nunca da religião em si. Por exemplo, não se fala uma palavra sequer sobre o tema nas várias obras de M. Reynald Sécher, nem nas atas do colóquio Les résistentes à la Révolution (Imago, Paris, 1987); quanto ao colóquio La Vendée dans l’histoire (La Roche-sur-Yon, 22-25 de abril de 1993) – colóquio internacional contendo dezenas e dezenas de comunicações – a religião não estava sequer no programa.
  2. 2. Permitimo-nos remeter o leitor à nossa obra, Christianisme et Révolution, Cinq leçons d’histoire de la Révolution française (2ª edição, Paris, 1988), segunda lição: “La nouvelle Église”.
  3. 3. Ibid.
  4. 4. O estado da arte atual dessa questão encontra-se na tese da Senhora Patricia Lusson, La vie religieuse des catholiques dans l’Ouest, Maine et Loire-Vendée, à l’époque révolutionnaire (para sair na Nouvelles Éditions Latines, Paris), p. 57-59.
  5. 5. Citado por Patricia Lusson, op. cit., p. 47.
  6. 6. Ibid. p. 37-47.
  7. 7. Cf. nosso estudo “La circonscription des paroisses pendant la Révolution. Premières recherches”, Histoire de la paroisse, Angers, 1988, p.101-121.
  8. 8. Arquivos de Maine-et-Loire, 1 L 963 (nº 79).
  9. 9. Ibid., nº 111.
  10. 10. Cf. nosso estudo já citado sobre a circunscrição das paróquias.
  11. 11. Cf. sobre esse ponto A. Billaud, La guerre de Vendée, Fontenay-le-Comte, 1977, p. 28.
  12. 12. Citado in Patricia Lusson, op. cit., p. 51.
  13. 13. O que lhe confere um caráter sobrenatural. “A Igreja, disse um teólogo contemporâneo, tem suas raízes no céu...” (Cardeal Charles Journet, Comme une flêche de feu, Paris, Le Centurion, 1992, p. 102).
  14. 14. O padre chamava-se Guillaume Repin. Ele redigiu o Adresse des prètres non assermentés de Maine-et-Loire à Louis XVI de 9 de fevereiro de 1792, reproduzido in Guillelmi Repin et XCVIII Sociorum... Positio super introductione causae et martyrio..., Roma, 1969, p. 49.
  15. 15. Boutiller de Saint-André, Une famille vendéenne pendant la grande guerre 1793-1795, Paris, 1896 (reed. Cholet, 1988), p. 53.
  16. 16. Episódio relatado por A. Billaud, op. cit., p. 53.
  17. 17. Genneteau, depoimento, Arquivos de Maine-et-Loire, 1L 1018.
  18. 18. O texto completo está citado in Jacques Crétineau-Joly, Histoire de la Vendée militaire, 2ª edição, Paris, 1843 (4 vol.), I, p. 40.
  19. 19. Citado in Billaud, op. cit., p. 62.
  20. 20. Mémoires de Madame la marquise de Rochejaquilin précédés de son éloge funèbre, Neuvieux édition, Paris, 1860 (2 vol.), I, p. 185.
  21. 21. Ibid., p. 147.
  22. 22. Boutiller de Saint-André conta que seu pai lera o testamento de Luís XVI para toda a família reunida “sufocado pelas suas lágrimas e as nossas” (op. cit., p. 54).
  23. 23. Lê-se na “Mémoire inédit de M. de comte de Colbert composé sur ceux de MM. Gibert et Coulon” (publicado in Jacques Crétineau-Joly, Histoire de la Vendée militaire, nouvelle édition illustrée... par le R.P. Emmanual Drochon..., Paris, 1896 (5 vol.), I, ch. 12, p. 397) a seguinte indicação: “...Se os generais pudessem tirar proveito do terror que suas repetidas vitórias espalharam entre os republicanos... os vendeianos buscariam, como costumavam dizer, seu reizinho e sagrá-lo-iam em Cholet”.
  24. 24. Citado in Jacques Crétineau-Joly, op. cit., (edição de 1843), II, p. 116.
  25. 25. Boutiller de Saint-André, Une famille vendéenne pendant la grande guerre 1793-1795, Paris, 1896 (reed. Cholet, 1988), p. 78.
  26. 26. Xavier de Boisrouvray, citado in La Révolution dans l’Ouest de la France vue de l’Angleterre. Guide des sources d’archives et choix de textes, Nantes, 1989, p. 151-152. Assim era, apesar dos instantes e reiterados apelos dos chefes vendeianos. O primieo apelo fora lançado a partir de 18 de agosto de 1793 pelo estado-maior do exército católico e real. Dirigia-se ao conde de Artois: “Vinde, meu senhor, vinde! Um neto de São Luís à nossa frente será para nós e para todos os intrépidos soldados o presságio de novos sucessos e novas vitórias...”
  27. 27. Citado in Jacques Crétineu-Joly, op. cit., (edição de 1896), II, p. 535. Entretanto, o autor não dá a referência.
  28. 28. “Précis de la conversation de Buonaparte et de Bourmont”, publicado in Jacques Crétineu-Joly, op. cit., (edição de 1896), II, p. 592.
  29. 29. Alguns historiadores criam na existência de artigos secretos prevendo a restauração eminente da monarquia. Na ausência de provas decisivas, não é possível acreditar nisso. Em 1815 o conte de Colbert já escrevia: “É falso que o tratado de paz (de la Jaunaye) houvesse por base o restabelecimento da realeza.” (Mémoire, citado supra, p. 441.)
  30. 30. Boutiller de Saint-André, Une famille vendéene pendant la grande guerre 1793-1795, Paris, 1896 (reed. Cholet, 1988), p. 61.
  31. 31. Palavras transcritas in Jacques Crétineau-Joly, op. cit., (edição de 1843), I, p.377/378.
  32. 32. De fato, pseudo-bispo: Gabriel Guillot de Folleville valia-se dessa dignidade, mas não passava dum impostor.
  33. 33. Mémoires de Madame la marquise de la Rochejaquelein précédés de son éloge funèbre, Neuvieux édition, Paris, 1860 (2 vol.), I, p. 192.
  34. 34. Mémoire du comte de Colbert, citado supra, p. 432.
  35. 35. Cf. nossa “Introdução” in Pierre-J. de Clorivière, Adelaïde de Cicé, Correspondence, 1787-1804, Beauchesne, Paris, 1993, p. 19-34. Nem na correspondência de M. Emery, nem na de Pierre de Clorovière, ambas personalidades destacadas do clero refratário, encontramos qualquer traço de tais sentimentos.
  36. 36. Remetemos aqui à obra de Jean Leflon, Étienne-Alexandre Bernier, évêque d’Orléans (1762-1806), Paris, 1938. 2 vol. Cf. em particular o capítulo IV, “A pacificação”.
  37. 37. Mémoire du comte de Colbert, citado supra, p. 432.
  38. 38. Mémoires de Madame la marquise de Rochejaquelein..., p. 277.
  39. 39. Ibid., p. 284
  40. 40. Ibid.
  41. 41. Citado in Patricia Lusson, op. cit., p. 165.
  42. 42. O escapulário mariano associa-se à devoção do rosário. O padre de Monfort e seus discípulos fundaram numerosas confrarias do rosário em continuação às suas missões.
  43. 43. Mémoires de Madame la marquise de la Rochejaquelein..., p. 185.
  44. 44. Mémoires de Madame la marquise de la Rochejaquelein..., p. 185.
  45. 45. Ibid., p. 288.
  46. 46. Ó cruz, única esperança, salve.
  47. 47. Citado in Patricia Lusson, op. cit., p. 164.
  48. 48. Ibid., p. 98.
  49. 49. Ibid., p. 187.
  50. 50. Mémoires de Madame la marquise de la Rochejaquelein..., p. 148. 10
  51. 51. Citado in Patricia Lusson, op. cit., p. 213.
  52. 52. “Carta dos representantes em missão junto ao general Haxo”, dezembro de 1793, citado em Jacques Crétineau-Joly, op. cit., (edição de 1843), II, p. 24.
  53. 53. Citado in A. Billaud, op. cit., p. 286.
  54. 54. Ibid.
  55. 55. “Précis de la conversation de Buonaparte et de Bourmont”, publicado in Jacques Crétineau-Joly, op. cit., (edição de 1896), II, p. 592.
  56. 56. Boutillier de Saint-André, Relation du massacre, p. 71.
  57. 57. Conde de Colbert, Mémoire, citado supra, p. 391.
  58. 58. Mémoires de Madame la marquise de la Rochejaquelein..., p. 72.
  59. 59. Mémoires de Madame la marquise de la Rochejaquelein..., p. 277.
  60. 60. Conde de Colbert, Mémoire, citado supra, p. 405.
  61. 61. Ibid., p. 403
  62. 62. Boutiller de Saint-André, Une famille vendéenne pendant la grande guerre 1793-1795, Paris, 1896 (reed. Cholet, 1988), p. 74.
  63. 63. Ibid.
  64. 64. Mémoires de Madame la marquise de la Rochejaquelein..., p. 233.
  65. 65. Ibid.
  66. 66. A. Billaud, op. cit., p. 127
  67. 67. Mémoires de Madame la marquise de la Rochejaquelein..., p. 288.
  68. 68. Conde de Colbert, Mémoire, citado supra, p. 418.
  69. 69. Mémoires de Madame la marquise de la Rochejaquelein..., p. 271.
  70. 70. Eles (os vendeianos) pouparam, pelo que se diz, 4000 dos nossos que mantinham como prisioneiros. Isso é verdade, pois eu o escutei da boca de muitos dentre eles. Alguns se deixaram tocar por esse ato de inacreditável hipocrisia...” (Ciatdo por Tony Catta, La Vendée, la foi, la patrie. Synthère du soivenir vendéen, Paris, 1960, p. 181).
  71. 71. Desenvolvemos esse tópico numa comunicação (a sair) do colóquio de Roche-sur-Yon, 22 a 25 de abril de 1993: “As ‘luzes’ e a Vendeia: as origens intelectuais do extermínio”.
  72. 72. A questão mereceria todavia ser examinada de mais perto.
  73. 73. “Carta de Francheville ao príncipe de Bouillon”, a 12 de março de 1796, publicada em La Révolution dans l’Ouest de la France vue de l’Angleterre. Guide des sources d’archives et choix de textes, Nantes, 1989, p. 151-152.
  74. 74. Citado ibid., a 29 de setembro de 1793, p. 154.
  75. 75. Expressões utilizadas pelo Sr. Xavier du Boisrouvray em sua comunicação (a sair) no colóquio de la Roche-sur-Yon, em abril de 1993. Essa comunicação tinha como título “O isolamento internacional da Vendeia: por quê?” Todavia, o título não é realmente apropriado. O Sr. de Boisrouvray provou o isolamento, mas não o explicou de todo.
AdaptiveThemes