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Amor divino

Do Seráfico Padre S. Francisco.
 
Perguntado uma vez como podia tolerar os rigores do inverno com tão rota e pobre túnica, respondeu: Se a chama da celeste pátria nos forrara por dentro, facilmente suportaríamos maiores frios
 

Reflexão e Apóstrofe
 
Chama da celeste pátria é o amor de Deus, como, pelo contrário, o amor sensual é chama do infernal abismo. E o coração de quem ama a Deus é o lar onde o Espírito Santo acende esta chama: Cor amantis, disse S. Boaventura, caminus est Dei inflammantis1. Não só é lar senão também os carvões que este divino fogo investe com sua doce violência e reveste de sua pura semelhança: Carbones succensi sunt ab eo, disse o Salmista2Hoc est, explica S. Isidoro Pelusiota, Sancti viri a Deo. Quoniam enim Deus noster ignis consumens est; idcirco qui per animi puritatem Deum contemplantur, carbones non ab re appellantur3. Porém note-se que não disse o santo que esta chama do amor divino o forrava por dentro, senão que os que ele forrasse não sentiriam frio. Porque assim falava mais humilde, e aquela chama como tão pura, não lança fumos e, como é tão interior, cobre-se com cinzas.
 
Que do sagrado fogo do divino, quando está mui apoderado da alma, redunde também no corpo calor material, há freqüentes exemplos nas vidas dos santos. A virgem e doutora Sta. Catarina de Sena, pela contínua e próxima vizinhança de Deus que lograva no trato familiar com Sua Divina Majestade, andava tão abrasada que nem no coração do inverno consentia senão vestidos mui poucos e singelos. Teresinha de JESUS, pegando nas mãos de um menino em uma manhã de inverno, disse-lhe, mui amorosa e compassiva: Tendes frio, minha vida? pois vinde cá para diante do Santíssimo Sacramento, que ali aqueço eu. Meu glorioso padre S. Filipe Neri4, ainda depois de velho, trazia o peito desabrochado e tomava ar à janela em manhãs rigorosas, e mais já o seu coração tinha aberto, em duas costelas quebradas, aquele admirável respiradouro por onde desafogava. S. João, cônego regular e prior no mosteiro de Bridlingtônia, em Inglaterra5, celebrava com tanto fervor do espírito que se viam subir da sua cabeça fumaças, como de água quente. Sto. Inácio de Loyola, ao sair da oração, trazia ex consortio sermonis Domini o rosto despedindo chamas vivas6. O b. Stanislau Koska, noviço da Companhia de JESUS (e já veterano no seu amor) aplicava ao peito panos molhados em água fria, para o refrigerar dos ardores que da viva fornalha de seu amante coração emanavam. Aquele portento de contemplação e penitência, S. Pedro de Alcântara, muitas vezes, metendo-se em tanques frios, fazia com o calor do corpo ferver a água. Daquela por muitos títulos ilustre dominicana napolitana, Maria Vilani, já deixamos em outro lugar escrito que, para mitigar o excessivo calor de suas entranhas, causado dos incêndios do divino amor em que seu espírito seráfico felizmente se abrasava, bebia talvez doze canadas de água, e esta, ao cair dentro, chiava, como se a lançassem sobre algum forte brasido; e, quando depois de morta foi necessário tirar-lhe as entranhas para embalsamar-se o corpo, o cirurgião que atendia a esta diligência, ao pegar-lhe incautamente do coração, fugiu logo com a mão, porque se escaldava7. Sejam, pois, ou não sejam fabulosas as piraustas de Scalígero, com Aristóteles e Plínio8, aves que dizem viver no fogo e expirar ao sair dele, aqui as temos mais certas e por modo mais admirável e sublime.
 
Mas, oh, que viva e picante repreensão temos nestes exemplos todos os que no amor de Deus estamos mais frios que o norte enregelado! Deste norte procedem todos os males da nossa alma: Ab aquilone pandetur omne malum. E deste frio, tão reconcentrado em nosso coração, evidente sinal são as ânsias e fadigas com que buscamos as coisas terrenas, para nos vestirmos com elas: Quid enim, disse S. Gregório, sunt terrena omnia, nisi quaedam corporis indumenta? E o pior é que, quanto mais nos vestimos, mais frio sentimos, e queira Deus, ainda assim, que o sintamos. Grande coisa é ser pobre de espírito, para ser de espírito fervoroso; nem há mais útil diligência para aquecer do que despir: Quantos, diz o nosso v. p. Bartolomeu do Quental9, em um ponto das suas "Meditações", que serviam a Deus com fervor em quanto se conservavam em pobreza de espírito, depois, crescendo as riquezas e multiplicando os vestidos, esfriaram no serviço de Deus porque os vestidos que aquentaram o corpo esfriaram o espírito! E um poeta, não dos do tempo que fazem mais cabedal de folhas que de frutos, disse10:
 
Son los pies de Amor Divino
Religion y Castidad;
Mas quién no lleva contino
Desfalça la voluntad
No viene por buen camino.
 
Amar a Deus não é outra coisa que seguir a Cristo com a nossa cruz até o Calvário, e, se nem a cruz material pôde levar o imperador Hieráclio antes de se despir e descalçar, como poderemos nós levar a espiritual, indo tão vestidos e calçados? Figura de Cristo foi o capitão Jefté e a este diz a Escritura que se acolheram e agregaram os pobres e vazios de bens terrenos: Congregatique sunt ad eum viri inopes11. Outra letra: Collecti sunt ad Jephte homines vacui. Se Josef12 não largara a capa nas mãos da infiel egípcia, não se se aguardaria a fé a seu senhor Putifar. Pela capa nos pega o mundo; pelos vestidos, riquezas e comodidades nos atrai; a alma que não quiser ser adúltera em ofensa de seu legítimo esposo, o amor divino, largue esta capa e fuja: Ut evadas Aegyptiam dominam, disse S. Jerônimo, saeculi pallium derelinquis13.
 
Finalmente, o Espírito Santo é significado na letra hebraica Mem, que se interpreta Ignis ex ultimis. Fogo procedido dos últimos, isto é, como expõe Pascasio Ratberto14, fogo que, consumidas já as últimas fezes do pecado e concupiscência, então se ateia mais copioso, então resplandece mais claro, então rompe fora mais ativo. Assim sucedia àqueles santos cujos exemplos alegamos. Porém, naqueles pecadores em que este fogo nem ainda começou a debastar as primeiras e mais grossas materialidades, como pode mostrar fora aquela luz e eficácia que procede das últimas já vencidas: Ignis ex ultimis?
 

(Extraído de “Nova Floresta”, pde. Manuel Bernardes)

  1. 1. Ser., II, feriae 2 post Pascha.
  2. 2. Sl 17, 9.
  3. 3. Lb. I, ep. 2, Dorotheo.
  4. 4. [N. da P.] São Felipe Néri, chamado aqui "meu glorioso padre", foi o fundador do Oratório, ordem a que pertencia o Pde. Manuel Bernardes.
  5. 5. Odorico Rainaudo, na continuação dos Anais, ano 1378
  6. 6. P. Blanc, in Salm. 38, 4.
  7. 7. Fr. Antônio Jacinto Zuazo, na vida desta serva de Deus, lib. 2, cap. 10 e lib. 3, cap. último.
  8. 8. Saclig., exercit. 23 et 129, n. 4; Arist., lib. 5 de hist. Animal, cap. 19; Plin., I. 6, cap. 36 e 38.
  9. 9. Medit. I da Paixão, ponto 3.
  10. 10. Ledesma, nos Conceitos espirituais.
  11. 11. Judicium, II. 3.
  12. 12. Gen 39, 12.
  13. 13. In Consolatione ad Julianum.
  14. 14. Lib. I in Threnos.
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