De todas as coisas duras e difíceis que Deus nos propõe no grande torneio de amor — o dogma de Seu Corpo, a porta estreita de Seu reino, a imitação de Sua cruz — nenhuma é tão árdua e tão desconcertante como a compreensão e a aceitação de Seu governo no mundo.
O acontecimento, isto é, aquilo que vem à tona do presente, que se realiza no tempo, que se torna visível nessa fugaz travessia de um raio de sol, aquilo que ocorre, que nos cruza o caminho, aquilo que “é” em suma, embora do mais fraco e efêmero modo de ser — eis o grande, o supremo desafio de Deus.
Ah! Se pudéssemos voltar atrás! Se pudéssemos recompor e recomeçar a partida!
Mas o que acontece só acontece porque Deus consente. Não cai um só fio de cabelo, como não cai um Império, sem o divino beneplácito. E nesse sentido tudo o que acontece é bom, essencialmente bom, adoravelmente bom. E nesse sentido nós devemos aceitar os acontecimentos como propostas às vezes enigmáticas de nosso Pai.
Mas a aceitação, nessa ordem de idéias, não significa conformidade acabrunhada; não quer dizer que devemos nos entregar à onda dos fatos, ou que nos deixemos “devorar pelo Minotauro da história”. Não. Somos nós que devemos devorar a história. Se agora são repelentes as iguarias que descem do céu numa grande toalha aberta, como os quadrúpedes e répteis que Pedro viu em Joppe, nem por isso podemos fugir, repetindo a palavra do apóstolo que se gabava de não tocar coisas imundas, e impuras.
O acontecimento que nos é proposto agora é terrivelmente impuro. Mas Deus quer que o aceitemos. Não para saborear as impurezas, não para aderir, não para chamar de branco o preto e de bom o mau. Deus quer que o aceitemos como ponto de partida, porque está combinado entre Ele e nós que todos os minutos de nossa vida, sejam quais forem as circunstâncias são pontos de partida. Deus quer que o aceitemos como matéria a ser trabalhada, substância a ser transformada, arrumação de peças a ser adotada para uma nova partida nesse grande jogo de amor entre Pai e filhos.
E é nesse sentido dinâmico e corajoso, impaciente na obediência e pacientíssimo nas compensações, é nesse sentido forte e espiritual, submisso e altivo, humilde e impetuoso, que nós devemos aceitar os acontecimentos. Porque tudo, tudo o que acontece, tudo o que é empurrado pelo tempo para a festa do real, por mais desagradável que pareça, por mais repelente que seja o amontoado de répteis e quadrúpedes, tem o selo da irrepreensível Providência.
Comecemos pois hoje mesmo a nossa aceitação, isto é, o nosso combate.
Outubro de 1950.