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A Semana Santa

Editorial da Permanência

  

A comemoração litúrgica da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, que na dor consumou nosso resgate, é uma lição repetida, é uma sabatina dos dois lados essenciais de nossa vida: o lado Cruz em que Nosso Senhor assumiu todas as nossas dores, convidando-nos a assim nos associarmos à sua obra, e descarregou com seu sangue a tensão de inimizade entre o homem e Deus; o lado Ressurreição com que ultrapassa tudo quanto poderíamos desejar. Para descrever o contraste da obra redentora São Paulo nos diz que “onde abundou o pecado superabundou a graça”, de onde poderíamos tirar várias conclusões de júbilo transbordante: onde abundaram tristeza e lágrima, superabundou a alegria. Ainda vemos essa alegria da Glória no lumem fidei, na lamparina da Fé que nos mostra tudo em sinais enigmas; mas um dia, se não opusermos a nossa vontade à vontade de Deus, veremos tudo o que estava escondido, e tudo resplandecerá no lumem Gloriæ.

 

O “mundo inimigo” que é o mundo, mas é um mundo, um Reino com seu Príncipe, e com seus clérigos nos trânsfugas que querem fundar a “nova Igreja”, que é uma anti-Igreja, a pretexto de exibir um humanismo interessado pela sorte temporal do homem, despreza a Páscoa do Senhor nos seus dois temos essências, na agonia da Cruz, e na Ressurreição.

 

A aliança que Deus nos propôs, por cujos termos toda nossa vida tem de se inserir entre a aceitação da Cruz e a certeza da Ressurreição, faz desta vida uma passagem, uma páscoa de valor infinito pelos seus termos extremos, sob a condição de renunciarmos aos pequenos céus frágeis e fugazes de nossa própria invenção. E é nesta renúncia do hoje horizontal, para uma entrega completa ao “hodie” vertical de vida eterna em Deus, é nesta exigência que tropeça o enorme movimento de apostasia de nossos tempos. Todos nós, ai de nós, apegamo-nos aqui e ali a um simulacro de paraíso neste mundo, mas não fazemos disto um sistema muito menos uma vanglória. Gememos, choramos, pedimos perdão 70 vezes 70.

 

Quando, porém, uma massa volumosa se congrega para secularizar-se, para se apegar ao mundo com grito de triunfo e com risadas de escárnio para a Casa do Pai, então não é só um recrudescimento de pecado o que vemos, não é mesmo uma heresia, “a heresia do século XX” como diz Madiran, não é só uma protestantização da Igreja isto que temos diante de uma consciência boquiaberta.

 

Com a característica de somar todas as heresias, esse movimento dito “progressista” é na verdade uma massificada e volumosa apostasia cujos fautores e cujos carneiros só não se afastam mais decisivamente, num último assomo de lealdade, porque hoje essa apostasia disfarçada rende muito mais do que os trinta dinheiros com que Judas comprou a corda.

 

Roguemos nós pelos irmãos na fé. Observemos bem que no Evangelho de São João, Nosso Senhor não desaconselha nem esconde esse amor de predileção. Depois do anúncio da traição que Jesus pronunciou com espírito aflito, Jesus se volta para despedir-se de seus discípulos, amigos e filhos: “Filhinhos meus, ainda um pouco de tempo estarei convosco; depois buscar-me-eis, e como disse aos judeus também vos digo agora: aonde eu vou não podeis vir, mas agora vos digo: trago-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei; que vós vos ameis mutuamente. E NISTO conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes caridade uns pelos outros”.

 

Os teólogos mais tarde ensinarão que há uma hierarquia na caridade. Neste momento de densidade infinita Jesus não hesita em dizer que seu novo mandamento consiste num amor de coesão dentro da Igreja, e já explica que esse maior amor dos fiéis, uns pelos outros, longe de ser detrimento para os outros, será sinal. “In hoc cognoscent omnes qui discipuli mei estis, si dilectionem habueritis ad invicem”. Pensando o valor deste sinal, para os outros, Tertuliano dizia: “vede como eles se amam”.

 

Mas no enxame de apóstatas que cerca a Igreja, os mais efusivos se apresentam como os mais bondosos e mais compreensivos do que Nosso Senhor, porque não se restringem nesse novo mandamento, e ostensivamente escolhem no mundo alheio à Igreja seus paradigmas e seus modelos de filantropia: Gandhi, Luther King, e os revolucionários Guevara e Camilo Torres. Na verdade, e como tão bem disse Marcel de Corte, esse amor abstrato pela humanidade em geral, pela classe operária, ou pelo Terceiro Mundo não passa de uma cruel falsificação do amor.

 

A semana da Paixão de Nosso Senhor, além de outras lições nos aviva a vigilância e a consciência de estarmos cercados de inimigos. Todas as formas da maldade do mundo têm um papel na Divina Tragédia, e não é de todos que Jesus diz: “Perdoai-os Pai, porque eles não sabem o que fazem”. Não é, portanto, para nos amolecer, e para nos tornar mais filantrópicos do que cristãos, que a Igreja realça a Semana Santa. É antes para lembrar o novo mandamento que nos tempera e nos orienta o amor.

 

PERMANÊNCIA, Ano VI, n° 54-55, Abril-Maio de 1973.

 

 

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