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Category: PensamentoConteúdo sindicalizado

Quando não é filosofia por não ter uma conotação especulativa natural; quando não é teologia por não tratar de dogmas nem de um ponto preciso da doutrina católica. Quando exprime o pensamento católico na análise do mundo, da vida, das coisas que nos cercam e que nos afligem ou nos alegram.

O Pôncio Pilatos de ontem e os de hoje

Pe. Jean Dominique, O. P.

 

Na sua Encíclica Pascendi Dominici Gregis, São Pio X resumiu o fundamento filosófico da heresia modernista com esses dois termos: agnosticismo e imanência vital. Ele apontava o dedo para as duas atitudes fundamentais do pensamento moderno, que são a recusa do conhecimento especulativo e uma hipertrofia da causalidade. Para bem compreender o espírito do nosso tempo e poder confrontá-lo, convém nos aprofundarmos nesses dois falsos princípios que se encontram na origem de tantos erros. Para ajudar nossos leitores nessa tarefa, propomos uma parábola sobre o agnosticismo, que não é mais do que uma forma derivada do ceticismo.

 

Uma parábola moderna -- o Senhor Philosophus

Os jornais traziam uma triste notícia. Um jovem de cerca de trinta anos fora massacrado, há pouco tempo, por um bando de malfeitores nas redondezas de Jerusalém. A crueldade dessa execução sumária e o renome desse jovem judeu deram ao ocorrido uma repercussão internacional. O Senhor Philosophus, detetive de reputação, foi incumbido de identificar os criminosos e localizar o seu líder. Pôs na cabeça o seu chapéu de feltro, armou-se de sua lupa e de sua lanterna de bolso e, sem mais delongas, lançou-se ao trabalho. Confiando na sua longa experiência e nas suas fontes de informação, nosso homem contava resolver o assunto em pouco tempo. Mas teve de deixar o seu otimismo de lado ao depara-se com uma multidão heterogênea de suspeitos e com testemunhos aparentemente contraditórios. Busquemos acompanhá-lo na sua investigação.

A vítima tinha precisamente trinta e três anos no momento do atentado. Vinha do norte de Israel de uma localidade chamada Nazaré. Sua mãe, presente no lugar do suplício, chamava-se Maria, e seu nome era Jesus.

Quem, portanto, poderia ter cometido uma tal abominação, condenar ao suplício da cruz um homem dotado de tão boa reputação? O Senhor Philosophus seguiu todas as pistas que se lhe apresentaram: os Palestinos?  Os próprios Judeus? Os Romanos que ocupavam a região? Um dos amigos do defunto chamado Judas? A covardia dos seus discípulos que o abandonaram diante do perigo? Soluções as mais contraditórias disputavam o espírito do detetive, sem que ele pudesse resolvê-las de modo categórico.

Ao cabo de muitos dias e noites de trabalho, após ter perseguido escrupulosamente os menores indícios que lhe pudessem conduzir a alguma conclusão, esgotado de tanto esforço sem resultado, Sr. Philosophus ingressou, num belo dia, na sala de reunião dos adeptos desse Jesus. Na esperança de obter um pouco de repouso, sentou-se confortavelmente num banco dessa igreja, abriu mecanicamente um livro que lá estava e, com ar distraído, leu uma página... e tudo mudou subitamente.

Ali, naquela página aberta por acaso, o criminoso tinha deixado seus traços! Repetidas vezes, e vagarosamente, o brilhante detetive repassou com sua lupa o texto em questão. Não havia mais dúvida: ele encontrara a solução do enigma.

 

A profissão de fé dos católicos

O texto que aqui mencionamos é conhecido dos católicos, é o Credo, sua profissão de fé. Ele merece uma leitura lenta, atenta – ser lido de lupa. Desse modo, ele revelará os tesouros que contém. Tudo é belo nesse Credo, é como uma sinfonia maravilhosa. Lá encontramos a glória de Deus, a bem-aventurança do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a Encarnação do Verbo eterno, a virgindade perpétua e fecunda de Maria, o mistério tão consolador da remissão dos pecados e a promessa da vida eterna no céu.

Encantado pelo charme desse texto luminoso, o detetive tinha quase se esquecido das suas preocupações, e mesmo da missão de que fora incumbido de encontrar o assassino. Foi então que se deparou com a palavra que lhe revelaria o segredo que buscava. No meio da profissão de fé da Igreja, escondido no meio de verdades tão elevadas e reconfortantes, enquanto os católicos cantam de todo o seu coração infantil a bondade e a beleza de Deus, surge uma frase curiosa: “Sub Pontio Pilato passus et sepultus est” (Padeceu e foi sepultado sob Pôncio Pilatos). Este inciso aparece subitamente, como um convidado indesejável numa reunião de família, como um furúnculo num belo nariz, como o cabelo da cozinheira na sopa. Ora, essa dissonância, esse aparente erro de digitação permanecerá no Credo até o fim do mundo.

O fato é digno de nota. Pois, nessa profissão de fé, não se fala absolutamente da covardia de Pedro, nem da maldade de Judas, nem do ódio invejoso dos príncipes dos sacerdotes. Só Pilatos é citado no tribunal da história.

Podemos então imaginar a alegria do nosso detetive. Após sua descoberta sensacional, ele se ergueu prontamente, seguro de encontrar o culpado. Encontrar o esconderijo de desse Pilatos será moleza.

No entanto, nosso homem se depara com uma nova dificuldade. Ao abrir as páginas amarelas da cidade vizinha, encontra um senhor Pilchoswki, um Pilhart, e um Pikal. Entre esses nomes, não está o de Pilatos, que é o que procura. Então, expande a sua investigação e lança mão de todos os meios mais sofisticados -- tudo em vão. Por toda a parte, nenhum traço de Pilatos. Ele se desloca até Forez, para o Monte Pilatos onde, dizem os antigos, o célebre governador romano terminou os seus dias. Mas a lenda não foi de grande ajuda. Sobretudo uma vez que os suíços reivindicam o mesmo privilégio que os stéphanois. O seu Pilatusberg, próximo de Lucerna, seria indubitavelmente a derradeira morada do famoso malfeitor. O Sr. Philosophus se viu obrigado a render-se à evidência: o Pilatos que procura se esconde sob um falso nome, possui documentos falsos.

 

Pilatos nos quatro Evangelhos

Para identificar o assassino de Jesus, o detetive decidiu consultar as Sagradas Escrituras. Um exame cuidadoso lhe indicava quatro pistas: com efeito, falava-se de Pilatos nos quatro Evangelhos. Ele se lançou, portanto, à tarefa e, de lupa nas mãos, leu as páginas indicadas. Infelizmente, nem São Mateus, nem São Marcos, nem São Lucas lhe forneceram informações significativas. Havia motivo para se desencorajar.

Após ter utilizado todo o seu savoir faire, ter consagrado tanto esforço e tempo, ter posto em obra os meios mais modernos de investigação, nosso detetive profissional estava prestes a declarar derrota e desistir. Maquinalmente, mais por dever profissional do que por esperança genuína, Sr. Philosophus consultou a última página que ainda poderia lhe ajudar, leu o capítulo décimo oitavo do Evangelho segundo São João. E aí, contra toda esperança, recebeu a luz, descobriu a solução para o apaixonante enigma e conseguiu identificar Pôncio Pilatos. De agora em diante podia anunciar ao mundo quem matou Jesus.

Eis o famoso texto que nos revela a personalidade de Pilatos:

“Tornou, pois, Pilatos a entrar no Pretório e chamou Jesus, e disse-lhe: Tu és o rei dos judeus?”

Jesus respondeu:

“Tu dizes isso de ti mesmo, ou foram outros que to disseram de mim?”

Pilatos respondeu:

“Porventura sou eu judeu? A tua nação e os pontífices são os que te entregaram nas minhas mãos. Que fizeste tu?”

Jesus respondeu:

“O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, certamente que os meus ministros se haviam de esforçar para que eu não fosse entregue aos judeus; mas o meu reino não é daqui.”

Pilatos lhe disse:

“Logo tu és rei?”

Jesus respondeu:

“Tu o dizes, sou rei. Nasci, e vim ao mundo para dar testemunho da verdade; todo o que está pela verdade, ouve a minha voz.”

Pilatos lhe disse:

“O que é a verdade?”

Tendo dito isso, saiu novamente para ir encontrar os judeus, e lhes disse: “Não encontro nele crime algum. Ora é costume que eu, pela Páscoa, vos solte um prisioneiro; quereis, pois, que eu vos solte o rei dos judeus?”[1]

 

“O que é a verdade?”

A marca distintiva de Pôncio Pilatos, a sua impressão digital, por assim dizer, está toda nessa curta questão: “O que é a verdade?” Foi assim que ele entrou para história, foi esse estado de espírito que o levou a entregar Jesus aos verdugos.

Convém reler atentamente essa passagem decisiva para compreender o seu sentido.

O governador romano foi intimado pelos príncipes dos sacerdotes e pela multidão a condenar Jesus a morte. Como bom conhecedor das leis, Pilatos não poderia condenar um homem sem um motivo adequado. Interroga, portanto, o acusado para compreender melhor a natureza da acusação: “Tu és o rei dos judeus?”, o que pode ser compreendido como uma afirmação disfarçada: “Tu és realmente o rei dos judeus, não é?”. Se Jesus é efetivamente o rei dos judeus, Pilatos se encontra, portanto, diante de um caso de sedição de um povo dominado contra o seu legítimo chefe, o que daria ao processo um curso inteiramente novo. 

Com sua resposta, Jesus quer que Pilatos reflita. “Tu dizes isso de ti mesmo?” -- Ou seja, trata-se de um juízo pessoal, autêntico, fundamentado, ou repetes sem refletir os rumores dos que te rodeiam -- “ou foram outros que to disseram de mim?”. A coisa é grave demais para ser tratada de modo tão frívolo, ela não diz respeito apenas ao povo judeus, mas a ti mesmo, Pilatos, e àquele a quem representas, o Imperador.

A resposta de Pilatos mostra que ele indefere. “Porventura sou eu judeu?” – o pleito é um assunto interno do teu povo e quero jugá-lo desse modo. Se tu és o rei dos judeus, tua autoridade se encerra nos limites desse povo, a querela só diz respeito aos judeus. “Que fizeste tu?” – Tratemos o problema de modo puramente jurídico.

O versículo seguinte realmente foi capaz de assustar Pilatos: “O meu reino não é deste mundo”, o que significa, entre outras coisas, que ele está acima desse mundo, acima de todos os reinos e impérios desse mundo. O que se passa hoje em Jerusalém diz respeito a todos os povos da terra. Daí a questão apressada e inquieta de Pilatos: “Logo tu és rei?” -- Procuremos limitar o problema ao pequeno povo judeu. O governo romano está disposto a sustentar a autoridade legítima das terras sob sua ocupação, mas se ela pretende possuir uma autoridade superior, o problema se torna espinhoso.

Ora, é esse precisamente o caso. O reino de Jesus é o reino da verdade. “Nasci, e vim ao mundo para dar testemunho da verdade.” – este reino ultrapassa, portanto, os limites de toda realeza terrestre. Tudo que é verdadeiro lhe está submetido. “Todo o que está pela verdade, ouve a minha voz.”  -- Se tua autoridade é verdadeira, Pilatos, ela está sob minhas mãos. “Tu não terias poder algum sobre mim, se te não fosse dado do alto”[2], lhe dirá Jesus em breve.

Pilatos entende do que se trata, entende que, em nome da verdade, esse Jesus pretende possuir autoridade não apenas sobre os judeus, mas sobre o próprio governo e sobre aquele a quem representa, o Imperador de Roma. É nesse momento que Pilatos revela o fundo do seu pensamento e do seu ser: “O que é a verdade?” O que não significa absolutamente: “como seria interessante falar sobre a verdade, diga-me, o que é a verdade?”; mas antes: “não convém nem interessa falar sobre a verdade” – A verdade não tem nada a ver com o assunto em tela, nem com minha autoridade, nem com a religião. Tratar da verdade está fora de questão. Pilatos traduz aqui a atitude profundamente cética que caracterizava o pensamento dos romanos do seu tempo, o ceticismo enfadado diante da verdade e de suas pretensões.

Ora, foi precisamente essa palavra que condenou Jesus a morte. Jesus realmente padeceu “sob Pôncio Pilatos”, foi crucificado em razão do seu ceticismo.

A sequência do relato o mostra claramente. Após esta resposta evasiva, Pilatos se volta para os acusadores e lhes propõe escolher entre Barrabás e Jesus. Pouco importa a verdade, “não encontro nele crime algum”, pouco importa a inocência de um ou de outro, desde que a lei e as aparências sejam salvas. Eu lavo minhas mãos.

Portanto, foi o medo da verdade e das suas exigências, foi o espírito de dúvida e de indiferença em face de toda verdade especulativa, foi também o respeito humano decorrente, a arma com a qual Pilatos matou Jesus.

Esse ceticismo se encontra em todas as épocas

Mas a história mostra à saciedade que o ceticismo não é um fenômeno passageiro ou localizado, mas se verifica em todas as épocas e em todas as regiões do mundo. É um erro que aflige boa parte da humanidade e é um dos principais motores da história, é o algoz de Jesus e da sua Igreja. Esse estado de espírito ainda segue atual.

Poderíamos apontar todas as escolas de pensamento, todos os filósofos que reivindicam de modo mais ou menos explícito o ceticismo... Cronologicamente, foi o Oriente e o budismo que aparecem primeiro na cena da história. Em seguida vieram os sofistas gregos, depois os da Roma imperial. Na grande época da escolástica e no nominalismo também tiveram adeptos do ceticismo. A filosofia moderna não tem nada a invejar também...

A história demostrou claramente as constantes e os frutos da mentalidade cética, e permite esboçar uma resposta, ou melhor, uma terapia que dê aos espíritos céticos o gosto da verdade: não temamos a verdade e as suas exigências, calquemos aos pés o respeito humano que foi a arma com a qual Pilatos matou Jesus!

 


[1] Jo 18, 33-40.

[2] Jo 19, 11.

Mundo, mundo...

Gustavo Corção

Entre os belos Cantos Eucarísticos do grande poeta místico que foi Santo Tomás de Aquino, vêm-nos à memória estes versos.

Solum expertus potest scire

quid sit Jesum diligere

Traduzimos, sem sabermos traduzir o sabor original: “Somente aqueles que o experimentaram podem saber o que seja o amor de Jesus”. Ou, “somente os que por experiência sabem...”.

Todos os mestres místicos ensinaram que a contemplação infusa é uma “quase experiência de Deus”. Por que “quase”? Este termo parece restritivo, e portanto impróprio para definir a mais alta de todas as aventuras da alma humana, a subida do Carmelo ou do Calvário, nas pegadas de um Deus que por nós se deixou crucificar. É por isso mesmo, aliás, que nunca poderemos encontrar termos próprios para exprimir a sobrenatural aventura. A linguagem dos místicos é inevitavelmente hiperbólica, antitética e metafórica; e é aqui, mais do que na poesia, que se aplica o que disse Rimbaud: que tentava dizer o indizível.

No caso em questão, Santo Tomás ousa empregar o termo “experimentar” quando canta, mas seus discípulos, quando tentam explicar o canto de maior linguagem especulativa, recuam diante do termo que traz sobre si uma pesada carga de conotações empíricas e carnais. E até ensinam que na subida do Caminho da perfeição o desejo de experiências sensíveis, sejam elas embora feitas do mais piedoso afeto, constituem pedras de tropeço, e até às vezes atrasos e retrocessos, porque nelas a alma se demora e se compraz no sabor e nas consolações de tal afeto. Ora, não foi este o exemplo que Jesus nos deixou na subida do Calvário. A subida mística só se fará se deixarmos para trás o lastro de terra e de carne, e se, corajosamente, aceitarmos a purificação da noite dos sentidos. Daí se explica a reserva dos mestres quando falam mais na pauta especulativa do que naquela da “experiência” ou “superexperiência” vivida na união com Deus.

* * *

Mas agora, caído em mim de tais alturas que tanto desejara ter alcançado, e das quais só ouso falar com ciência de empréstimo e de desejo, imagino o leitor a interpelar-me: — A que vêm todas essas considerações em torno da experiência mística, e dos cantos eucarísticos de Santo Tomás, quando falávamos da agonia da Espanha, e esperávamos comentários das efervescências nacionais em torno da denúncia em boa hora levantada por Dom Sigaud sobre a infiltração comunista na CNBB?

* * *

Na verdade, leitor, tudo o que toca nossa Santa Religião tem aquela marca antitética da Cruz. O belo canto eucarístico de Santo Tomás nos veio por antítese da matéria ingrata que se impõe à nossa consciência como dever de testemunho. O fato é que daquele canto de amor (somente quem o provou sabe o sabor que tem o amor de Jesus) veio-nos, num contraste abismal, a idéia horrível da “experiência” que o mundo vem fazendo, e a cujas infinitas conseqüências o mundo dia a dia se entrega com uma apavorante submissão: a experiência do mal erigido em sistema ou se quiserem, a experiência do ódio de Satã. É verdade que somente no inferno terão as almas perdidas a ciência mais exata do que seja o ódio de Satã. Mas o fato é que aqui, na terra, neste belo planeta azul que talvez seja o único habitado por seres racionais, capazes de louvar a Deus, e capazes de recusar seus dons, a humanidade já teve várias amostras daquele ódio, e várias vezes já assistiu ao espetáculo da maldade erigida da glorificação. O mundo encheu-se de saber, de saborear os horrores de que recentemente foram capazes os nazistas em torno de uma idéia; o mesmo mundo encheu-se de saber, de experimentar os horrores praticados pelos anarquistas e comunistas em torno de uma idéia.

Houve tempo em que, com raríssimas exceções, o mundo inteiro julgou que Hitler e seus companheiros tinham atingido a máxima crueldade jamais praticada oficialmente e sistematicamente por um regime; atrás da aparatosa e triunfal crueldade do nazismo, seu cúmplice monstruoso esteve agachado, eclipsado, taciturno e ignorado.

Tenho para mim que tais maldades organizadas e coletivas ultrapassam as forças humanas e não são praticáveis sem a ajuda de Satã; não dispondo, porém de um meio de medir, em unidades satanométricas, o grau de satanismo em cada caso, não sei qual dos dois monstros foi em si mesmo o pior, mas hoje não hesito em declarar que, para o mundo, e para o desenrolar do século o comunismo foi e continua a ser a pior das experiências políticas feitas e ainda descaradamente proposta aos homens. Como se explica então que tal hedionda evidência não seja reconhecida universalmente? A razão de tal cegueira, que é cômica numa nação rica, forte e engenhosa, como os Estados Unidos, e que é trágica sem deixar de ser cômica nas hierarquias eclesiásticas, talvez esteja nos quatro ou cinco séculos de humanismo liberal, mais ou menos integral, que afastou de Deus uma humanidade voltada e fechada sobre si mesma. Ora, os homens que se afastam e se tornam insensíveis às “experiências” do amor de Deus, no mesmo passo se tornam insensíveis àquelas do Demônio: e por isso serão capazes de abrir os braços ao comunismo com o entusiasmo que se observa nas Conferências Episcopais, e são capazes de aplaudir o humanismo ateu com a ardorosa e declarada simpatia que, para nossa infinita tristeza, ficou registrada entre os pontos notáveis deste brilhante século em que os homens demonstraram tão extraordinária faculdade nas experiências dos átomos... E é em nome dessa Ciência que dia a dia se acelera a desintegração de um mundo que já foi cristão.

 

O GLOBO — 23/04/1977

Dom Vital

Oração fúnebre por Dom José Pereira Alves,

Bispo de Natal, na cidade de Recife,

aos 17 de agosto de 1924.

 

 

Exmos. Revmos. Senhores Prelados,

Digníssimas altas autoridades,

Meus senhores,

 

Em festas tão solenes, comemorativas da Consagração da antiga diocese de Olinda ao Sagrado Coração de Jesus, neste jubileu de ouro, não podia ser esquecida a memória de Dom Vital, o pastor desvelado que, do fundo do cárcere, entrega o rebanho ao Coração Santíssimo do Divino Redentor.

Os Bispos, o Governo, os sacerdotes, o povo, todos nós, agradecidos, devemos esta homenagem ao nosso grande e excelso morto.

Humilde bispo de Mimosa, parte do rebanho de Dom Vital, explico bem a minha presença diante deste auditório conspícuo, nos funerais litúrgicos do imortal Prelado Olindense.

Mas sinto-me constrangido ante esse negro mausoléu. O meu coração desejava encontrar aqui não um catafalco. Era um altar que eu queria, um altar branco de luz e de flores para receber os ossos de Dom Vital.

Meus senhores, eu não antecipo os juízos da Igreja. Deo Optimo Maximo, porém, permita que o povo brasileiro possa um dia beijar, como se beijam os ossos dos santos, as relíquias sagradas daquele que foi na terra pernambucana a sentinela impávida, o guardião da Fé Católica. Com esse pio voto eu começo, consciente de minha fraqueza, certo da generosa indulgência que sempre me tendes dispensado.

 

Meus senhores:

A Igreja Católica tem um caráter acentuadamente, absolutamente dogmático: é uma suma luminosa de sentenças, de afirmações definidas. A Igreja é um dogma. O Cristo enviando os Apóstolos à conquista social, ordenou-lhes: Ide, ensinai a todos os povos — O dogma é a substância da Igreja, a sua essência, a sua razão existencial.

É o que magnificamente escreve Sertillanges: “Um Deus, um Cristo, uma fé, um batismo, diz S. Paulo. Assim os padres da Igreja chamam a conversão à fé, a volta à unidade de Cristo, à unidade de Deus. Não se pode dizer mais energicamente que a fé é para nós um primeiro princípio; que a doutrina de fé ou dogma é o laço ideal que liga, para dar-lhes um sentido, os elementos desta carta do Cristo que a alma religiosa, segundo S. Paulo, compõe.

Intimar o dogma, convidando os homens à fé, é, pois para nossa Igreja a função primordial, aquela que antes de qualquer outra resulta de sua natureza e da consciência viva que dela toma — Existir para ela, sem reclamar dos que consentem em incorporar-se em seu grupo a fé, seria existir não existindo, isto é, recusando reconhecer-se por aquilo que é, e tirar as suas consequências”.

Compreende-se então, meus senhores, toda a nobre beleza da Igreja, armada em cavaleira da verdade, em dama guerreira do Cristo brandindo entre os povos a cruz como a espada vitoriosa da batalha cristã. A intolerância é a prerrogativa da verdade. Há vinte séculos que a Igreja com desassombro repete a palavra de Jesus Cristo: eu sou a verdade; há vinte séculos afirma pela palavra, pelo amor, pelo sangue a sua missão de ensinar a verdade ao mundo. A Igreja sempre esteve disposta a perder tudo as suas igrejas, os seus altares, os seus vasos sagrados, os seus túmulos, a vida dos seus fiéis e dos seus pastores, de preferência ao sacrifício da verdade evangélica, de preferência a trair o mandato supremo do seu Divino fundador.

Quando Ela desceu do Calvário, envolta, para usar da frase de Joaquim Nabuco, envolta no sudário do Grande Redentor, com o evangelho sobre o peito e a cruz na mão de peregrina, para percorrer e iluminar o mundo, [a] Roma imperial, Roma dominadora, Roma senhora do mundo, quis embargar os passos da estrangeira. Bradou-lhes pelos seus césares divinos, bradou-lhe pelos seus sacerdotes ambiciosos, pelos seus cônsules audazes, por suas legiões aguerridas, pelo povo rei e escravo, voluptuoso e sanguinário: detém-te.

E a grande peregrina, levantando o facho da verdade através da temerosa noite secular das perseguições, passou por sobre as grelhas ardentes, pelas grades dos cárceres infames, pelos tenazes e pelos cavaletes, pelas feras, pelo fogo, pelo sangue, com o sacrifício de tudo menos da verdade e da sua missão. Os hereges primeiros e os bárbaros, os potentados os infiéis e os ímpios têm arrebentado armas de todo o gênero — as armas da hipocrisia, da calunia, da venalidade, da violência e do sofisma — de encontro ao granito do dogma católico. Ela não cede uma linha só, não receia de uma só afirmação, não sacrifica um só artigo doutrinal, não tolera uma só concessão no terreno intangível do credo secular.

Esta intolerância constitui a sua grandeza, a glória de sua vida, a pujança de sua força no meio das vicissitudes filosóficas e religiosas.

São de notável apologista de nosso século as seguintes magistrais conclusões: “Censurar a Igreja pela sua intolerância doutrinal é censurá-la por ter e crer-se a verdade necessária, é fazer o seu elogio. O próprio da verdade é excluir o que lhe é contrário”.

Toda a ciência é intolerante; desde que um teorema lhe é demonstrado, o matemático tem por absurdas as proposições contrárias. Por isso mesmo que está certa de possuir a verdade religiosa integral, a Igreja deve condenar todo o erro. Assim Bossuet proclamava “que a religião católica é a mais severa e a menos tolerante de todas as religiões em matéria de erros dogmáticos”. E Júlio Simon confessava que “a legitimidade da intolerância eclesiástica está acima de toda a discussão”.

“Reconhecemos que em matéria de dogma as outras sociedades religiosas não são intolerantes. J. J. Rosseau pode dizer o mesmo do Protestantismo: a religião protestante é tolerante por princípio, é tolerante essencialmente, é tanto quanto é possível ser, pois que o único dogma que ela não tolera é o da intolerância. Uma tal confissão é para uma doutrina religiosa a mais esmagadora das refutações.

Mas se a Igreja Católica é justamente intolerante para as doutrinas más e para os vícios, como devem necessariamente ser a verdade e o bem, ela é cheia de indulgência e de misericórdia para os transviados e para os pecadores que reconhecem sua falta e imploram o seu perdão — estabelecida para salvar os homens, nada poupa para arrancar as almas à eterna perdição. Sempre fiel ao mandato que recebeu de Jesus Cristo, ela se limita, para converter o mundo, a pregar o Evangelho, isto é, sempre procedeu por via de persuasão. Como seu Divino Mestre, sofreu em todos os tempos a perseguição e derramou o Sangue pela salvação dos homens. Se por vezes julgou de boa conveniência castigar os seus próprios filhos rebeldes, exerceu um direito que jamais se cuidava em contestar-lhe; ela o fez com mão maternal para convertê-los, para destruir os escândalos e impedir a corrupção de estender-se mais”.

“Tolerância! Tolerância! O século não comporta mais tiranias: nem as tiranias da força que escravizam o corpo, nem as tiranias da força que escravizam o espírito. Todas as religiões fazem o bem, conduzem a alma às ascensões morais, consolam o homem. Toda a religião é boa” — Estranha linguagem! Que Deus é esse cuja essência não seria mais que a colcha de retalhos de diferentes formas religiosas?

Senhores, a minha religião, a vossa religião, a religião do Brasil, meus senhores, a Religião Católica, não suporta essa linguagem, não admite essa equiparação. Ela sabe que a linguagem do Liberalismo é a morte do credo religioso. A Religião que aceita semelhante fórmula suicida-se. A verdade não pode ser múltipla: é uma. O Catolicismo se isola, se separa, se diferencia, se opõe e se afirma na intolerância sublime de suas atitudes gloriosas — a Religião verdadeira, a Religião única, a Religião obrigatória para a humanidade, com exclusão de qualquer outra.

Assim escreve Huby: “A Igreja se apresenta a nossos contemporâneos guardiã incorruptível, e por consequência, intransigente das verdades que tem a consciência de deter, mantendo firme uma hierarquia que não existe senão para o bem dos fiéis que rege heroica e compreensiva, a Igreja Católica.

Como o seu Mestre, e por Ele, tem morada para todos aqueles que não querem deliberadamente pecar contra a luz. Aos grupos fundados sobre a comunidade de raça, a identidade de condições sociais, a adesão revogável das inteligências que se emprestam sem se darem, ela opõe uma comunidade de crenças e ritos que faz com centenas de milhões de homens que, às vezes, tudo separa, um grande povo fraterno”.

Meus senhores, a Igreja Católica, como todo o organismo vivo, defende a sua existência com a plenitude de suas forças interiores e exteriores; afirma e acentua a sua inconfundível individualidade; repele toda a confusão, opondo-se tenazmente aos elementos corruptores do seu dogma e da sua moral, da sua verdade e da sua vida. É o seu direito e é o segredo do seu indiscutível prestígio no mundo. A consciência de sua missão é absoluta. Não pode transigir fora dos limites dos seus princípios dogmáticos e morais. A Igreja está certa de sua finalidade. O Cristo não esqueceu nada. Deu-lhe tudo e traçou-lhe a luminosa rota a seguir. Cousin, algumas semanas antes de morrer, dizia: “Nós outros filósofos, navegamos ao acaso, sujeitos aos desvios, expostos ao naufrágio. Vós católicos, tendes a bússola, a carta do país, as estrelas, o piloto e o porto”.

O Catolicismo é por excelência a religião da ordem, da disciplina, a religião da autoridade.

Lembrada da sentença de Santo Agostinho — amai os homens e destruí os seus erros — a Igreja mantem firme a sua autoridade doutrinal, impõe os seus princípios e a sua lei, e gloria-se da sua intolerância da verdade contra o erro, a intolerância do bem contra o mal.

Meus senhores, Dom Vital foi na terra pernambucana, no Brasil, na América, o expoente glorioso dessa intolerância, o cavaleiro indomável da verdade, o Apóstolo do direito, o Arcanjo do sobrenatural defendendo com o gládio de chamas as portas do santuário contra os inimigos do seu Cristo e de sua Religião.

A justiça da História consagrou a memória desse homem extraordinário do Brasil, verdadeiro gigante moral diante de quem se achatam, no proscênio histórico, os pigmeus da questão religiosa.

E a sua figura heroica se agiganta ainda mais quando, alguns raros caracteres acidentalmente eclipsados na sombra política daquela época, resgataram a sua criminosa cooperação com a nobreza das grandes almas trabalhadas, pelo remorso e tocadas de salutar arrependimento.

O centurião, ouvindo o estalar dos rochedos, assistindo aos espasmos da natureza, sentindo os tremores do universo na morte de Jesus Cristo desceu, aterrado, o Calvário murmurando: Ele era realmente o Filho de Deus. Assim, meus senhores, esses grandes homens de nossa pátria desceram o Gólgota em que uma desgraçada política governamental crucificara o Atanásio brasileiro, desceram envergonhados de si mesmos proclamando a grandeza moral, a justiça e a imortal beleza da augusta vítima.

Meus senhores, hoje todo o mundo reconhece o vulto épico do herói; todos exaltam a sua coragem apostólica; o desassombro verdadeiramente episcopal com que enfrentou as audácias do poder temporal e desmascarou as maquinações das trevas.

Aos olhos do historiador imparcial, Dom Vital esplende com um brilho pessoal próprio que se irradia de sua poderosa personalidade. Foi um cordeio. Poderia repetir com Nosso Senhor Jesus Cristo: aprendei de mim que sou manso e humilde de coração.

“De espírito calmo, eminentemente lógico, escreve um dos seus companheiros, firme nos princípios, rigoroso nas consequências, sincero indagador da verdade, o jovem Antonio Gonçalves com o trabalho tenaz, o versar os mestres, com mão diurna e noturna, alentou as disposições da natureza. Diz Montaigne que as nossas almas desferem aos vinte anos o que hão de ser depois e, desde então, prometem as posses que hão de ter. foi o que se deu com Antonio Gonçalves — Era o mais lindo desabrochar de rosas a prometeram aromas. Perdido na multidão, não sobrara o jovem Oliveira em virtude aos demais.

O que, porém, atraia a atenção de todos, superiores e iguais, é que sempre achavam-no cingido ao regulamento e nunca ultrapassara os limites do dever. E se por acaso incorria na menor falta, a reparação era pronta.

Mas os seminaristas de S. Sulpício, nós, sobretudo os brasileiros, não devíamos gozar por muito tempo da amável companhia do jovem pernambucano”.

Todos o conheceram risonho, amável, doce, delicado.

A doçura que emoldurava aquela alma varonil e forte, era filha de sua humildade profunda — a virtude dos grandes santos e dos grandes homens.

Foi seu grande espírito de caridade evangélica que ditou ao grande prelado as palavras magníficas da sua posse no sólio da Catedral de Olinda.

“À medida que formos trabalhando por estabelecer entre Deus e vós a mais perfeita união, não cessaremos de envidar ao mesmo tempo, todos os esforços a fim de fazer reinar entre os membros de nossa imensa família a mais bela harmonia de pensamentos e de sentimentos — Quando há dois dias chegamos a este abençoado torrão, onde tanto nos ufanamos de ter recebido o berço, e vimos um povo inumerável levantar-se como um só homem, como um só coração, digamo-lo assim, para sair ao encontro do humilde Pastor que o céu lhe envia, sentimo-nos abalado até à medula dos ossos, enternecido até as lágrimas. E hoje, enquanto lenta e vagarosamente subíamos as ladeiras desta antiga cidade de gloriosas recordações históricas, fervorosos votos e súplicas instantes subiam ao mesmo tempo de nosso coração ao trono daquele que nos mandou apascentar as vossas almas: “Ó Senhor, Deus de toda a consolação, lhe dizíamos nós com o ardor da nossa alma, fazei com que todos estes que me destes por filhos — quos dedisti mihi, se conservem sempre unidos como agora: Sint consummati in unum. Uni Senhor, as ovelhas ao pastor, os filhos ao pai, de tal forma que constituam um só corpo, animado do mesmo espírito Unum corpus et unus spiritus”.

Não são essas as palavras de um prelado imprudente, atrevido ou estouvado, como se teve a ousadia de escrever em livros escolares.

Todas as suas luminosas pastorais, tão ricas de sabedoria, tão opulentas em doutrina, tão elevadas e tão apostólicas, estão ungidas da mais suave caridade; todas elas trescalam o odor do mais admirável amor cristão e da mais terna piedade pelas almas do querido rebanho.

Oh! Como é emocionante o apelo do Pastor regressando do cárcere, restituído ao rebanho, o apelo do Pastor perseguido e ultrajado, à ovelha ingrata. Não se pode ler sem comoção essa benção amorosa e incomparável com que esse belo homem de Deus remata o seu comovente e admirável discurso da Igreja de São Pedro: “Também te abençoamos a ti, ó pobre ovelha tresmalhada, a ti que, desapiedada, tantas lágrimas, tantos gemidos tantas fadigas tem custado a teu Pastor. Não nos fora possível esquecer-te em nossas bênçãos nem tão pouco em nossas orações; antes, nelas tens a maior parte; por quem senão por ti, ovelha desgarrada, nos manda Jesus Cristo deixar as outras noventa e nove?

Tu votas desamor a teu Pastor quando ele só amor te merece; o tens por inimigo sendo ele o teu melhor amigo e o amaldiçoas, ao passo que ele te abençoa. Maledicimur et benedicimus.

Ah, volta arredia! Volta ao redil do Senhor! Volta contrita e seremos para ti médico que te cure, pai que te acarinhe, juiz que te absolva, doutor que te esclareça, sentinela que te guarde, pastor que te defenda.

Eia! Vem, infortunada! Vem, e te provaremos que se detestamos o erro, se o impugnamos com todo o rigor, temos, todavia, entranhas de misericórdia, coração de pai para o infeliz mortal que por fraqueza o comete. Diligite homines et interficite errores”.

Eis aí todo o home, senhores — Mas pela defesa da verdade, pela Igreja, por Jesus Cristo, Dom Vital não era mais um cordeiro, era um leão — Não um leão caricato, um leão de bravatas, de arremetidas e recuos. Não, meus senhores — Era um leão nobre, leal, generoso, marchando por uma estrada deslumbrante de ensinamentos sábios, profundamente meditados, de sentenças retas e perfeitas, de argumentos invulneráveis, irretorquíveis mas sempre dignos de seu alto espírito, de sua dignidade episcopal, de sua santa causa.

E as atitudes brilhantes de sua inteligência, foram esplendidamente realçadas pelos gestos impressionantes de sua ação gloriosa. Fale por mim da linha cristãmente aristocrática dessa heroica figura histórica, uma testemunha ocular e meu querido e antigo mestre: “Tomei-me de verdadeira paixão por aquela mocidade combatente que se impunha à admiração dos homens de sã consciência; por aquela invejável serenidade que se não alterava agrilhoada de máximos sofrimentos; por aquela indômita coragem de confessor da Fé a vibrar o seu non possumus, em frente da triunfante iniquidade das potestades terrenas.

Vi-o desrespeitado em sua autoridade, escarnecido em seus mandatos, insultado de mil formas nos comícios e jornais maçônicos, caluniado em seus atos, ridicularizado em torpes jornais caricatos...

Vi-o depois processado, preso, transportado à corte, julgado por um tribunal sectário e condenado a quatro anos de prisão com trabalhos na Ilha das Cobras.

E tudo isto porque quis separar o joio do trigo; porque quis separar o católico sincero do hereje encapotado.

Em todas as frases da tormentosa luta, vi-o sempre o mesmo, sereno, doce, risonho, imperturbável e nobre sem recuar nem ceder, sem se queixar nem temer; sempre a fazer flutuar bem alto o sagrado vexilo da Fé”.

Meus senhores, nada faltou ao esplendor desse caráter cristão, justo orgulho de nossa terra, honra da religião e da Pátria que dá lustre e glória não só à América Católica, mas, digamo-lo com ufania, à toda Cristandade. Foi digno dos primeiros mártires da Igreja pela sua fé, pelo amor ao Cristo e ao Evangelho, pelo heroísmo sem par, pelo sacrifício absoluto de tudo e da própria vida.

Nada faltou a esse assombroso prelado, a grandeza dos pensamentos, a inigualável bondade, a beleza sobrenatural dos lances mais patéticos da vida pastoral — para sagrá-lo o maior bispo do Brasil, o Antístite perfeito, o pastor glorioso e atribulado, que na Terra da Santa Cruz, pelas virtudes e assinalados méritos, pelo martírio, transformou o seu cárcere em santuário de amor nacional.

Dir-se-ia um doa antigos Padres da Igreja ou um daqueles veneráveis bispos da antiguidade cristã resistindo a Cesar com santa liberdade apostólica, e só inclinando a mitra refulgente diante do Vigário Supremo de Jesus Cristo.

Dom Vital, cuja vida no dizer de um dos seus autorizados biógrafos, foi um ato de coragem episcopal, Dom Vital encarnou em sua personalidade extraordinária a intolerância doutrinal, a intolerância necessária, infrangível da verdade.

“Um bispo cerrando o Evangelho sobre o peito e empunhando a Cruz, é invencível: morre, porém não se rende; e só deixa de pelejar os bons combates do Senhor quando exausto, coberto de gloriosas feridas cai sem alento e sem vida no campo das batalhas da fé, envolvido no misterioso estandarte sempre vitorioso, onde se lê em letra de refulgente brilho: Si Deus pro nobis quis contra nos?” Que afirmação! Que destemor! Foi um bravo da fé, um defensor acérrimo do pensamento católico. Ergueu a muralha granítica que salvou o Catolicismo no Brasil, detendo com seu sacrifício pessoal a onda da corrupção religiosa.

Criou assim uma alma nova, integralmente católica na pátria brasileira, preparando o advento de uma era feliz de fervor religioso. Foi o grande mártir e o redentor da fé no Brasil.

Meus senhores, porque hei de continuar? Guardemos silêncio diante desses heróis.

Ali na urna funerária estão escritas as memoráveis palavras do morto: Jesus autem tacebat.

Os ossos de Dom Vital repousam silenciosos. Mas se nós, bispos, se nós sacerdotes e católicos mentíssemos à fé jurada sobre o altar, se nós recuássemos do indeclinável dever da fé, se fugíssemos à honra do sacrifício da prisão, da morte por Jesus Cristo, esses ossos sagrados fremiram no protesto do seu silêncio augusto para amaldiçoarem a nossa covardia.

Isso jamais acontecerá, porque tu, Vital, incomparável Apóstolo, hás de ser sempre, pela tua inspiração e pelo teu exemplo, o custódio de nossa fé, a firmeza inquebrantável de nosso báculo, a força de nosso sacerdócio, o sereno guiador do nosso querido povo.

Dom Vital, se algum dia mãos sacrílegas tentarem apagar no céu da consciência nacional o cruzeiro glorioso, tu, arcanjo do Brasil, aparece de novo e brandindo a tua espada de luz, castiga os malfeitores da Pátria e, castigando-os na verdade e no amor, entrega-os ao Coração de Jesus Cristo para o supremo perdão.

 

Dom José Pereira Alves - Discursos e Conferências, Imprensa Nacional 1948.

Ideologia de gênero: mais um passo da revolução anticristã

“A Revolução é o triunfo do esforço de todas as potências tenebrosas que se sucederam no curso dos séculos (…), a coroação do incansável combate que o Inferno não cessou de travar contra a ordem divina, geração pós geração (...) e objetiva quase que exclusivamente a destruição do Cristianismo. Pois bem: o Cristianismo somente se encontra em estado íntegro, vivo e expansivo na Igreja Católica” (Jean Ousset, “Para que Ele reine”)

 

1. Introdução

 O tema desta conversa é a descrição de um novo intento e ataque à ordem natural, à civilização cristã e à Igreja.

 Por trás desse intento existe um poder oculto, inimigo de Deus, cuja cabeça só pode ser Satanás, que, por meio de organismos internacionais, organizações não governamentais e meios de comunicação de massa, vai impondo ideologias e modos de pensar e falar, em aberta oposição à Igreja Católica, à ordem cristã e natural. Sua meta: a Nova Ordem Mundial, humanista, antropocêntrica, na qual Deus é substituído pelo homem; um pretenso paraíso terrestre, em lugar da vida eterna.

Já faz mais de um século e meio que esse inimigo foi clara e publicamente denunciado pela hierarquia eclesiástica: “A Igreja teve outros inimigos (…); venceu a todos. Hoje, tem de enfrentar a Revolução”. E Monsenhor Gaume a definiu assim:

“Se, arrancando-lhe a máscara, perguntarem-lhe: ‘Quem és tu?’, ela responderá: ‘Não sou o que se imagina. Muitos falam de mim, mas poucos me conhecem. Não sou nem a Carbonária…, nem o motim…, nem a mudança da monarquia em república, nem a substituição de uma dinastia por outra, nem os distúrbios momentâneos da ordem pública. Não sou nem as vociferações dos jacobinos, nem os furores da Montanha, nem o combate de barricadas, nem o saque, nem o incêndio, nem a lei agrária, nem a guilhotina, nem os afogamentos. Não sou nem Marat, nem Robespierre, nem Babeuf, nem Mazzini, nem Kossuth1. Estes homens são meus filhos, não são eu mesma. Estes homens e estas coisas são fatos passageiros; já eu sou um estado permanente. Sou o ódio de toda ordem não estabelecida pelo homem e na qual ele não seja rei e Deus a um só tempo. Sou a proclamação dos direitos do homem sem a preocupação com os direitos de Deus. Sou a fundação do estado religioso e social sobre a vontade do homem em vez da vontade de Deus. Sou Deus destronado e o homem posto em seu lugar (o homem chegando a ser, ele mesmo, a sua finalidade). Eis aqui por que me chamo Revolução, quer dizer, inversão’.”

Nesse plano orgulhoso, blasfemo e diabólico, uma nova inversão vai se impondo com força avassaladora: a ideologia do gênero, aberrante atentado contra a ordem natural. É o que iremos expor com brevidade, propondo ao final algumas idéias para combatê-la.

 

2. Que se entende por ideologia do gênero? Sua definição, suas origens.

« Et creavit Deus… masculum et feminam creavit eos » “Varão e fêmea os criou” (Gn 1, 27)

Pouco a pouco, e cada vez com mais freqüência, encontra-se nos documentos e protocolos elaborados por organismos internacionais, em tratados firmados pelos países, em leis anti-discriminatórias, e mesmo em formulários corriqueiros, como pedidos de empréstimo, reservas de passagem etc., o termo “gênero” para se referir aparentemente ao sexo.

 Será isto algo corriqueiro, uma normal evolução da linguagem, uma moda que expressa com outra palavra o mesmo de sempre; ou, ao contrário, trata-se de transmitir e impor uma nova ideologia com um objetivo determinado?

 A ideologia – fruto de um hábito vicioso do espírito – foi definida como “um sistema fechado de idéias que se constitui, para o homem que se identifica com ele, em fonte de toda a verdade, de toda a retidão prática e moral”. Não vigora somente no plano especulativo, mas funde as funções teórica e prática do intelecto numa só, transformando-as numa tarefa criadora, taumatúrgica, que tem de se realizar sobre o homem, para transformá-lo radicalmente, e sobre a sociedade, vista como a única dimensão real do novo homem, devendo por isso ser modificada absolutamente, para que seja fiel expressão e, ao mesmo tempo, o cadinho da transformação do indivíduo.

 Em resumo, não é uma teoria comprovada pela lógica ou experimentalmente, mas sim um corpo fechado de idéias, que parte de um pressuposto básico falso – que por sua vez deve impor-se pela recusa de toda análise racional – e  que logo se desdobra nas conseqüências lógicas desse principio falso. As ideologias se impõem pelo uso dos sistemas formal (escola e universidade) e informal (meios de propaganda) de ensino.

No âmbito que nos interessa, [a ideologia] aplica-se a transformar radicalmente as noções de sexo masculino e feminino, unificando-as na de “gênero”, termo que também deixa de ter seu sentido biológico clássico aplicado à espécie humana como conjunto de pessoas que “possuem uma ou várias características comuns dadas pela mesma natureza”, e o substitui pela idéia, não de algo dado pela natureza (os sexos masculino e feminino), mas sim de uma realidade que é escolhida, que o indivíduo mesmo constrói a partir do ambiente cultural.

Para entender melhor o sentido dessa verdadeira revolução, não apenas semântica, mas cultural, citemos um texto utilizado nas universidades norte-americanas sobre o que se pretende introduzir: “O gênero é uma construção cultural. Por conseguinte, não é o resultado causal do sexo, nem algo tão aparentemente fixo como o sexo. Ao se teorizar que o gênero é uma construção radicalmente independente do sexo, o gênero mesmo vem a ser um conceito livre de correntes. Em conseqüência, homem e masculino poderiam significar tanto um corpo feminino como um masculino; mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino” 2.

  Parte-se da falsa premissa de afirmar que as coisas não dependem do que “são”, mas do que alguém desejaria que elas “fossem”, ou do que alguém decide, e da seguinte suposição (de algo que, para essa ideologia, é um abuso): que foi para manter a hegemonia do domínio masculino que o homem constituiu a superestrutura do que denominam “sociedade patriarcal”, na qual a exclusividade da relação entre homem e mulher é uma construção social e cultural que se pode e deve modificar para evitar a “violência do gênero”, e obter a libertação e igualdade de direitos da mulher.

Impera um fundo revolucionário de negação dessa realidade que chamamos de “natureza humana” – sobre isso falaremos mais adiante –, impondo algo a mais que a igualdade entre homem e mulher, tema tratado habilmente na I Conferência Mundial da Mulher, que aconteceu no México em 1975.

 Um dos documentos resultantes dessa I CMM, a chamada “Declaração do México”, tenta definir o que significa a igualdade entre homens e mulheres. Diz assim: “A igualdade entre homens e mulheres significa igualdade quanto à sua dignidade e valor como seres humanos, assim como igualdade em seus direitos, oportunidades e responsabilidades”. Porém, mais adiante, no Plano de Ação da I CMM, amplia-se a definição de igualdade: “A igualdade entre o homem e a mulher implica que deveria existir igualdade de direitos, oportunidades e responsabilidades (…). Quanto a isso, é necessária uma revalorização das funções e dos papéis dados tradicionalmente a cada sexo na família e na sociedade. A necessidade de uma mudança no papel tradicional dos homens assim como das mulheres deve ser reconhecida (…)”. E estende-se a explicação quando se descreve como se deve alcançar essa igualdade tão desejada. A igualdade de direitos, oportunidades e responsabilidades será obtida mediante a “redistribuição de funções e papéis tradicionais adjudicados a cada sexo”, quer dizer, através da desconstrução e reconstrução do que são o homem e a mulher. Como vemos, querem eliminar qualquer resquício de natureza e de tradição.

Mas foi na IV Conferência Mundial da ONU sobre a mulher, celebrada em Pequim, em 1995, que começou a difusão em escala mundial dessa nova ideologia, persuadindo vários delegados de diversos países de que se tratava de uma luta em favor dos direitos da mulher.

As ativistas tiveram a habilidade de distribuir alguns textos com definições ambíguas sobre a sexualidade polimorfa, evitando utilizar palavras como marido, mulher, esposa, mãe, pai etc., e ressaltando em tons vitimistas a perseguição que, segundo elas, sofrem por parte dos setores tradicionais.

A diretora da conferência, ao ser perguntada sobre o tema, assim o definiu: “o gênero se refere às relações  entre homens e mulheres baseadas em papéis socialmente definidos que se atribuem a um ou a outro sexo”, o que por sua generalidade e ambigüidade provocou o pedido de esclarecimentos e definições. Estas chegaram rapidamente com a intervenção de Bella Abzug, representante e ex-congressista americana, explicando mais detalhadamente a noção de gênero: “o sentido do termo gênero evoluiu, diferenciando-se da palavra sexo, para expressar que a realidade da situação e dos papéis da mulher e do homem são construções sociais sujeitas a mudanças”.

A canadense Rebecca J. Cook, redatora do informe oficial da ONU na reunião, não fez cerimônia e disse explicitamente o que se buscava: “os sexos já não são dois, mas cinco, e portanto não devemos falar de homem e mulher, mas de mulheres heterossexuais, mulheres homossexuais, homens heterossexuais, homens homossexuais e bissexuais”.

Outra das feministas [presentes] não hesitou em dizer que “não existe homem natural ou mulher natural, não existe um grupo de características ou condutas exclusivas a um só sexo, nem sequer na vida psíquica”. Chegou-se a afirmar também que era preciso reconhecer os direitos reprodutivos das mulheres lésbicas, no que se incluiria o “direito” a conceber filhos por meio da inseminação artificial com sêmen anônimo, e de adotar legalmente os filhos de suas companheiras.

Para essa corrente revolucionária, o sexo aparece como algo secundário frente ao gênero. O sexo é o aspecto biológico do ser humano; o “gênero”, porém, resulta da própria construção cultural da sexualidade a partir de uma decisão ou escolha autônoma de cada pessoa.

Em suma, cada um não apenas escolhe ser homem ou mulher, mas também o conteúdo do que para cada um significa ser homem ou mulher.

Divinização da pessoa, negação e destruição da natureza.

Isso fica evidente a partir do que disse uma das defensoras dessa nova ideologia, Marta Lamas: “a riqueza da investigação, reflexão e debate acerca do gênero conduz inevitavelmente a suprimir a essência da ideia de mulher e homem”. E, mais adiante, “não existe homem (natural) ou mulher (natural)…”. E, mais radicalmente, afirma que “o movimento gay surge como uma instância libertadora, já que afirma, com razão, que a sociedade está errada a respeito da homossexualidade e da heterossexualidade: nem a primeira é antinatural, nem a segunda é natural”.

Assim negada a natureza, [essa ideologia] trata de apagar os aspectos biológicos do sexo humano. Supõe, para isto, serem possíveis, ao menos em teoria, múltiplas combinações entre cinco áreas fisiológicas do ser humano: genes, hormônios, gônadas, órgãos reprodutores internos e externos, combinações diversas que configurariam “inter-sexos” que se somariam ao masculino e ao feminino.

Como esta tese é indemonstrável biologicamente, outros autores, escamoteando as diferenças corporais, trataram de fundar suas teses em aspectos psicológicos, muito menos rigorosos do ponto de vista científico.

Para isso, afirma-se que investigações em diversas populações do mundo mostraram que a masculinidade psicológica de uma pessoa (homem ou mulher [sic]), prediz de maneira muito significativa não apenas aproveitamento matemático, mas ainda a habilidade matemática e ansiedade pelas matemáticas. Prediz também rendimento em tarefas espaciais. Mesmo assim, dependendo de se a masculinidade é alta, também será a motivação de sucesso e expectativa de êxito.

Nessa suposta comprovação, pode-se observar, como diz um autor: 1) que se escamoteiam os condicionamentos biológicos; 2) não haveria natureza humana, uma vez que os atributos masculinos poderiam ser construídos psicologicamente por qualquer um, seja homem ou mulher; 3) nega-se a complementaridade dos sexos, não apenas para procriar, mas em todos aspectos da vida; 4) atribui-se arbitrariamente a determinadas características o serem elas masculinas ou femininas, em virtude de algumas estatísticas (como se os comportamentos humanos fossem quantificáveis).

Uma vez negada a natureza humana, será preciso afirmar a autonomia absoluta de cada pessoa para “construir” seu próprio gênero; cada cultura conceberia o que é masculino ou feminino por um processo, uma aprendizagem. Por isso, Simone de Beauvoir afirmava que “não se nasce mulher, mas se chega a sê-lo”, e que “identidade de gênero refere-se ao sentimento de pertencer ao gênero feminino ou masculino. É a inscrição psíquica do gênero. Posso ou não coincidir com o meu sexo biológico”. Mais ainda, para essas ideólogas, o gênero não apenas determina os sexos, mas também a percepção de todo o resto, o social, o político, o religioso, o quotidiano.

Se [tudo isto] se escolhe, então pode ser mudado; está aí um elemento para renovar a história cultural, pela “desconstrução (eliminação) de certas práticas, discursos, e representações sociais que discriminam, oprimem e agridem as pessoas em função do gênero”. Importa chegar ao objetivo final, que é reformular, simbólica e politicamente, uma nova definição do que é ser pessoa – um ser humano e um sujeito –, seja em corpo de mulher ou de homem.

A base profunda dessa ideologia é o ateísmo teórico e prático: uma cultura sem Deus, na qual o homem, sem nenhuma limitação que lhe imponha princípios ou alguma ordem determinada, torna-se dono absoluto de seu destino. É o homem que brinca de ser Deus, a heresia liberal, eco daquele primeiro grito luciferino ―“não servirei” ―, e que soprou no ouvido do primeiro casal ― “sereis como deuses”. O fundo filosófico que os sustenta é o relativismo, o liberalismo malthusiano, o marxismo freudiano e o existencialismo de Sartre, que podemos resumir no personalismo.

Os meios de que se vale já adiantamos: organismos internacionais, meios de comunicação de massa, leis3, currículos educacionais obrigatórios com conteúdos “transversais”, isto é, que introduzem a “perspectiva de gênero” em todas as áreas educativas, isto desde a infância4, acompanhados de uma mudança de linguagem5 pela qual os termos usados já não expressam as essências das coisas, mas respondem a significados diversos e carregam uma ressonância espiritual que funciona como um reagente sobre o espírito e faz com que as pessoas não se entendam ainda que utilizando as mesmas palavras. Léxico fechado, inteligível só para os iniciados. É a moderna Torre de Babel6

 

3. Crítica e modo de enfrentar esta revolução:

Nossa refutação será a partir da Revelação, da teologia moral e da sã filosofia.

Do primeiro ponto de vista, é necessário saber o que a Sagrada Escritura diz.

Deus fez chover sobre Sodoma e Gomorra fogo e enxofre, destruiu-as completamente por estas ações nefandas de seus habitantes7. Mais tarde, Deus volta a abominar tais atitudes e/ou ações:

“Não vos mancheis com nenhuma dessas coisas, com que se têm contaminado todas as gentes que eu expulsarei da vossa vista. Mancharam esta terra, castigarei seus crimes e a terra vomitará seus habitantes. Guardai as minhas leis e os meus mandamentos, e não cometais nenhuma destas abominações, tanto os naturais como os estrangeiros entre vós. Todas estas execrações cometeram os que foram antes de vós habitantes desta terra, e assim a contaminaram. Vede, pois, não suceda que, assim como ela vomitou a gente que aqui estava antes de vós, vos vomite também a vós, se fizerdes outro tanto. Todo aquele que cometer alguma destas abominações, será eliminado do meio do seu povo. (...) Se um homem pecar com um homem, como se ele fosse uma mulher, ambos cometeram uma coisa execranda; morram sem remissão: o seu sangue caia sobre eles.”8 

São Paulo recorda essas coisas acontecidas na raiz da idolatria:

“Pelo que Deus os abandonou aos desejos do seu coração, à imundície; de modo que desonraram os seus corpos em si mesmos, eles que trocaram a verdade de Deus pela mentira e que adoraram e serviram a criatura de preferência ao Criador, que é bendito por todos os séculos. Amém. Por isso Deus entregou-os a paixões de ignomínia. Efetivamente, as suas próprias mulheres mudaram o uso natural em outro uso, que é contra a natureza, e, do mesmo modo, também os homens, deixando o uso natural da mulher, arderam nos seus desejos mutuamente, cometendo homens com homens a torpeza e recebendo em si mesmos a paga que era devida ao seu desregramento. E, como não procuraram conhecer a Deus, Deus abandonou-os a um sentimento depravado, para que fizessem o que não convém, cheios de toda a iniqüidade, de malícia, de fornicação... Os quais, tendo conhecido a justiça de Deus, não compreenderam que os que fazem tais coisas são dignos de morte eterna; e não somente quem as faz, mas também quem aprova aqueles que as fazem.”9

E insiste:

“Não sabeis que os injustos não possuirão o reino de Deus? Não vos enganeis, nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os que se dão à embriaguez, nem os maldizentes, nem os roubadores possuirão o reino de Deus.”10

Para todos eles, ratifica o livro do Apocalipse que “a sua parte será no tanque ardente de fogo e de enxofre; o que é a segunda morte”11 .

Recordemos agora, seguindo Santo Tomás, o que nos ensina a Teologia moral sobre os pecados contra a natureza:

“(…) Assim como a ordem da razão reta provém do homem, assim a ordem da natureza procede de Deus mesmo. Portanto, os pecados contra a natureza, que lhe violam a ordem, fazem injúria ao próprio Deus ordenador da natureza. Por isso, Agostinho diz: Os delitos contrários à natureza em toda parte e sempre devem ser detestados e punidos, como o foram os dos Sodomitas; e, se todas as gentes os praticassem, incorreriam ainda assim no mesmo crime, por força da lei divina, que não fez os homens para que entre si se entregassem a tais atos. O que também viola a familiaridade que devemos ter com Deus, pois, a mesma natureza, de que ele é o autor, fica poluída pela perversidade da lascívia.”12

E ainda: “Os vícios contra a natureza são (...) tanto mais graves que a corrupção do sacrilégio, quanto a ordem imposta à natureza é anterior e mais estável que qualquer outra ordem superveniente.”13

Vale a pena recordar seus argumentos:

“Em qualquer ordem de coisas, a corrupção do princípio é péssima, porque dele depende tudo o mais. Ora, os princípios da razão fundam–se na natureza, pois a razão, pressuposto o que foi determinado pela natureza, dispõe convenientemente a sua atividade. O que se dá tanto na ordem especulativa como na prática. E portanto, assim como na ordem especulativa é gravíssimo e o mais funesto o erro em matéria cujo conhecimento é naturalmente infuso no homem, assim, na ordem prática, agir contra o determinado pela natureza é gravíssimo e desonestíssimo. Ora, como pelos vícios contra a natureza o homem transgride o determinado por ela quanto à prática dos atos venéreos, daí vem que, nessa matéria, o referido pecado é o gravíssimo.”14

 Como se pode ver, o núcleo central deste erro monstruoso é sua recusa da ordem divina revelada e impressa também na própria natureza. Esforçam-se assim em rechaçar a própria natureza humana, substituindo-a pela pura subjetividade, um feroz individualismo, liberalismo, que na ordem filosófica se apresenta como uma conseqüência do mais bruto personalismo.

 

a) a heresia personalista

[Nota da Permanência: as linhas seguintes, em que Pe. Olmedo refuta a heresia personalista, parecerão áridas aos pouco familiarizados com o linguajar e termos filosóficos. É possível, no entanto, pular para a seção final do artigo sem prejuízo da compreensão]

Para todas essas teorias, a sociedade, a autoridade e suas leis, a ordem natural são modos de submeter e eliminar a liberdade, que aparece como o primeiro dos bens humanos.

Por isso têm o prurido especial de insistir na liberdade da pessoa, reduzindo ao mínimo as conexões de ordem natural e as obrigações ou sujeições que se seguem das diversas leis: eterna, natural, humana justa. Em toda lei, o personalista vê uma afronta à dignidade de sua pessoa humana.

Reduzindo a um mínimo as conexões com a norma moral, e desconfiando desse mínimo que resta, o personalista altera o sujeito da moralidade, que já não é mais o ato humano definido pelo seu objeto, mas a própria pessoa. O acento é colocado no individual, na individualidade do sujeito contra a universalidade da natureza.

Às tendências e exigências da natureza, a ética personalista responde que a pessoa transcende a natureza. É a resposta à mão para responder às vozes da própria natureza. O personalismo destaca a pessoa como uma segunda natureza; põe o destaque na pessoa sem se perguntar pelo constitutivo íntimo da própria personalidade; a pessoa é considerada como algo singular e fechado, concebida como algo superior a ela [natureza].

Em todos esses “ideólogos”, a recusa da Natureza e de sua ordem procede de um mesmo erro fundamental. Compartilham a falsa crença de que falar de “essência”, de “natureza”, de “ordem”, implica cair em uma postura rígida, imóvel, totalmente estática, o que é absurdo, pois não há conexão alguma entre ambas as afirmações. Daí o seu “construcionismo” e escolha do que se deseja ser, daquilo que o homem sente a respeito de si mesmo.

A filosofia cristã opõe a esses erros uma concepção muito diferente, que se conforma à nossa experiência. Para além de toda mudança, há realidades permanentes: a essência ou natureza de cada coisa ou ser: “de si – diz Santo Tomás –, a intenção da natureza visa sempre e principalmente ao que é perpétuo”15. A evidência da mudança não apenas não suprime essa natureza, mas também necessariamente a pressupõe. A experiência cotidiana nos mostra que as pereiras dão sempre peras e não maçãs nem nozes, e que o olmeiro nunca produz pera. A “estabilidade” de sua natureza faz com que as vacas tenham bezerros e não girafas, e que os bezerros tenham sempre uma cabeça, uma cauda e quatro patas. E quando, em alguma ocasião, aparece algum com cinco patas ou com duas cabeças, o bom senso espontaneamente compreende que é algo defeituoso, antinatural. Reações de senso comum que só fazem comprovar que existe não apenas natureza, mas ordem natural. A evidência dessa ordem universal é o que nos permite distinguir o normal do patológico, o são do enfermo, o louco do sensato, o motor que funciona bem do que funciona mal, o bom pai do mau pai, a lei justa da lei iníqua.

O simples contato com as coisas nos mostra que o natural existe na intimidade de cada ser, e que essa natureza é a explicação das operações e atos de cada ser: o porquê de a formiga ser o que é, e construir formigueiros e fazer tudo quanto faz; por que o joão-de-barro é como é, pode construir seu ninho tal como faz, por que o homem é como é naturalmente, pode pensar, sentir, amar e trabalhar “humanamente”…

A própria ciência confirma não apenas que cada ser tem uma essência ou natureza, mas também que essa natureza não é fruto de um cego acaso, mas de uma ordem, de um princípio de finalização ou de finalidade, e de uma hierarquia, uma harmonia que se manifesta em todos os seres e em todos os fenômenos, e que a submissão a essa ordem é o que o aperfeiçoa. Quando a gata tem gatinhos, tudo vai bem, mas se dela nascessem passarinhos, diríamos que existe uma desordem, que algo monstruoso e antinatural está acontecendo.

O homem não é simplesmente bom pelo mero fato de ser pessoa, mas pela conformidade de seu agir com o fim. A dignidade moral vem à pessoa humana da conformidade de sua operação com o fim último. Somente assim torna-se bom e digno moralmente.

No desprezo da natureza, vai implícito o desprezo de toda ordem heterônoma ao próprio homem. A pessoa fica solitária e isolada em sua racionalidade. Mais ainda, há uma verdadeira amputação metafísica, por assim dizer, na própria ordem da natureza específica do homem. Desprezada a natureza humana específica, estabelece-se uma dissociação mais radical de ordem metafísica, que dissolve todo saber e todos os afazeres em uma problemática do concreto e singular. E do concreto não se tira senão problemas e generalizações de dados empíricos. Por isso, dizemos uma problemática de fatos concretos: chegamos ao historicismo, ao materialismo e à anarquia.

Ao dizer que a pessoa transcende a natureza, parte-se de premissa falsa. A pessoa transcende a natureza animal; não transcende a natureza específica e própria do homem. Não há, portanto, um desdobramento que oponha realmente pessoa e natureza. A pessoa é tal pela racionalidade, a pessoa é a substância individual racional; a racionalidade é, por sua vez, a diferença específica, ou a forma constitutiva do homem enquanto tal. A espécie humana está em cada um dos indivíduos, constituindo-os em seres racionais. Cada homem é racional, não pelo que tem de singular, mas pelo que tem de específico. O específico se concretiza no indivíduo pela matéria assinalada pela quantidade. Aquilo que o especifica é sua racionalidade, e o racional é constitutivo da personalidade. A pessoa é inteligente, livre etc., não pelo que o homem tem de individual e concreto, mas pelo que possui de racional, de sua natureza específica.

Cada pessoa humana possui a mesma natureza de Adão, e são incalculáveis as conseqüências que se tiram dessa unidade de natureza comum a todos os homens; como são também incalculáveis as conseqüências, na ordem do saber e na ordem prática, de um desconhecimento da própria natureza.

Não existe mera unidade de natureza, mas uma unidade da natureza humana de categoria racional, ou seja, pessoal. Os homens nos comunicamos entre nós não por algo baixo e desprezível, mas pela própria natureza específica. Cada homem é pessoa porque é um indivíduo que possui aquela natureza formalmente humana, que é a racional. A racionalidade, que é o específico e constitutivo, constitui o supósito como racional, isto é, como pessoa16.

A racionalidade, enquanto imaterial e espiritual, é principio do conhecimento e liberdade do supósito. Enquanto princípio cognoscitivo, dá-lhe o conhecimento de si mesmo, o sentido de sua autonomia e independência. Mas a racionalidade, enquanto constitutivo da espécie, une os indivíduos da mesma espécie em nível altíssimo. Os homens somos livres, mas estamos ligados por uma natureza comum, que nos une na mesma espécie, exige de nós um esforço comunitário, e nos pede responsabilidades comuns em ordem ao nosso fim.

Em cada homem não existem apenas valores individuais; existe uma zona profunda e comum a todos, de valores específicos, que arrasta consigo o individual e concreto; exigências que arrastam o homem individual e o levam ao bem moral, que é o bem da espécie.

Se uma pessoa, rebelando-se contra a natureza, ordena ao concreto individual os valores humanos que devem se ordenar à espécie, e se não obedece aos fins próprios de sua natureza racional, que a ordenam ulteriormente a Deus, cai na culpabilidade moral e comete um pecado de soberba, que é o apetite desordenado da própria excelência.

O supósito individual quer [então] suportar sozinho a totalidade dos valores e perfeições da espécie. Nega a comunicação natural, e dependências naturais que o correspondem com outros sujeitos, dentro da mesma espécie. Nega a comunicação devida com outras pessoas no nível da racionalidade. As relações de um sujeito com outro, no personalismo, são opcionais, não exigidas pela natureza.

As liberdades modernas ― liberdade religiosa, liberdade de pensamento etc. ― são a soberba revolta da pessoa individual que não se resigna a interpretar as tendências e exigências íntimas de sua própria natureza, como o exige a espécie e sua perfeição. É um desejo de recriar a Humanidade sem Deus, sem uma natureza criada à imagem de Deus, sem uma finalidade posta por Deus, sem uma convivência criada também por Deus, e um propósito de refazer em cada homem o programa do demônio: sereis como deuses.

Quando o homem age, não o faz independente da natureza. Quem age é a pessoa: ser racional; porém age por sua própria natureza, que é precisamente isto: uma natureza racional e livre. O homem é simplesmente um indivíduo da natureza humana; ao agir, deve agir segundo as exigências de sua natureza racional. Assim fará o bem moral. De outro modo, destrói-se a si mesmo, e destrói aos seus irmãos.

A partir dessa falsa filosofia, o homem pretende realizar uma nova “criação” de si mesmo, da sociedade e do mundo, em que tudo muda, tudo flui, tendo como fonte originária seus próprios caprichos e paixões e não, por certo, a reta razão.

 

b) Modo de neutralizar esta ideologia

Não por meio da objeção de consciência, que se fundamenta precisamente na liberdade de pensamento e no subjetivismo personalista que acabamos de rechaçar…

 Na ordem intelectual, voltar à sã filosofia de sempre, isto é, a de Santo Tomás, e à teologia de sempre, também a de Santo Tomás, é igualmente primordial; recuperando para o pensamento os princípios perenes do bem pensar e do bem agir, levando em conta a ação humana em si, suas circunstâncias e seu fim.

Na conversação ou expressão, recuperar, conservar e divulgar os termos ou palavras da linguagem escrita e oral em seu significado de sempre, denunciando e rechaçando significados diferentes e contrários.

No âmbito da educação, recuperar o sentido da virilidade e da feminilidade em que devem ser formados os homens e as mulheres, sem confusão nem união de sexos.

Fomentar uma maior vida familiar, em que seus integrantes pratiquem toda classe de virtudes, ajudem-se nas necessidades comuns, desenvolvam-se nas respectivas personalidades, abracem os sãos princípios morais, espirituais e cívicos que os façam ser homens e mulheres de bem, bons cidadãos e melhores católicos, animando-se uns aos outros na busca do fim comum transcendente.

Na ordem social, formar grupos, comitês que defendam a sã educação e se oponham por todos os meios a seu alcance a essas políticas de gênero, fazendo apresentações, manifestações etc., pedindo a revogação das normas ditadas pelas autoridades contra a ordem natural…

No dia-a-dia, em todas as esferas em que o católico intervenha, deve dar testemunho de sua Fé; é convidado a atuar, na ordem econômica, política, cultural, não por princípios meramente humanos, mas inspirando a sua ação na Fé e na Caridade; não para o fim exclusivamente temporal da cidade pluralista, mas para aperfeiçoá-la quanto ao natural e ao sobrenatural. Toda a vida social deve inspirar-se em normas verdadeiras e princípios cristãos, amparada no verdadeiro reinado social de Cristo.

  1. 1. [N. do E.] Marat, Robespierre e Babeuf foram revolucionários com destacado papel na Revolução Francesa. Giuseppe Mazzini (1805-1872) foi um revolucionário italiano do século XIX; Lajos Kossuth (1802-1894) foi o líder da insurreição húngara de cunho liberal-nacionalista de 1884 - vide, neste número, artigo sobre a Hungria.
  2. 2. [N. do E.] Citação da obra da feminista radical Judith Butler, “Gender Trouble: Feminism and the subversion of identity”.
  3. 3. Em maio de 2012, a Argentina sancionou a lei 26.743, sobre o direito à identidade de gênero das pessoas, cujo primeiro artigo reconhece o direito à identidade de gênero a qualquer pessoa, direito a seu reconhecimento, ao livre desenvolvimento de sua pessoa conforme sua identidade de gênero, direito de ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, de ser identificada desse jeito nos documentos que acreditam sua identidade a respeito do(s) nome(s) de batismo, imagem e sexo com os que ali fica registrada. Em seguida, define o que entende como tal e seu exercício: “Definição. Entende-se por identidade de gênero a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, o que pode corresponder ou não com o sexo designado no momento do nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo. Isso pode envolver a modificação da aparência ou da função corporal por meios farmacológicos, cirúrgicos ou de outra índole, sempre que seja livremente escolhido. Também inclui outras expressões de gênero, como a vestimenta, o modo de falar e gestual. Exercício. Toda pessoa poderá solicitar a retificação registral do sexo, e a mudança do nome de batismo e imagem, quando não coincidam com sua identidade de gênero autopercebida.”
  4. 4. Por exemplo, existem uns desenhozinhos animados que se usam na Espanha para apresentar esta ideologia a crianças menores de cinco anos, acompanhados de músicas preparadas ex professo: “Quando me levanto faço minha cama… ajudar em casa não é nenhum drama… todos os dias quando ordeno, colaboro nas tarefas sempre que posso… As meninas e os meninos somos iguais… queremos que respeitem nossos gostos pessoais… chegar a ser o que imaginemos… pois neste mundo juntos viveremos, juntos viveremos… juntos viveremos…Oba! Todos os brinquedos são alucinantes…carrinhos e bonecas são interessantes… você decide com o que quer brincar...” (www.youtube.com/watch?v=doy4u219Y5Q). Outro exemplo são os acampamentos organizados nos Estados Unidos por Lindsay Morris, para crianças com inconformidade de gênero entre as idades de 5 a 12 anos, chamados “Você é você”, “um refúgio seguro, onde as crianças recebem apoio para experimentar um lugar livre de preconceito”, porque “para muitos deles, suas percepções de gênero não estão alinhadas a seus corpos”. “Eles mais tarde podem se identificar como gay, transexual ou algo intermédio”, “esta é apenas uma maneira de ser que sempre existiu, mas só agora estamos desenvolvendo a capacidade de dizer que está certo não colocar a todos em uma impecável caixa pequena” e “ vai requerer de todos nós que rompamos com o hábito de designar as pessoas com um rótulo de gênero e começar a pensar o gênero como uma variedade mais ampla”.
  5. 5. A obstinação de Bella Abzug em incluir o termo “gênero” em Pequim chamou a atenção de muitos delegados. No entanto, o assombro e desconcerto foi maior quando um dos participantes difundiu alguns textos empregados pelas “feministas do gênero”, professoras de renomadas Faculdades e Universidades dos Estados Unidos. De acordo com estes textos, as “feministas do gênero” defendem e difundem as seguintes definições: “Hegemonia ou hegemônico: ideiasidéias ou conceitos aceitos universalmente como naturais, mas que na verdade são construções sociais. Desconstrução: A tarefa de denunciar as ideiasidéias e linguagem hegemônicos (isto é, aceitos universalmente como naturais), com o objetivo de persuadir as pessoas que suas percepções da realidade são construções sociais. Patriarcado, Patriarcal: Institucionalização do controle masculino sobre a mulher, os filhos e a sociedade, que perpetua a posição subordinada da mulher. Perversidade polimorfa, sexualmente polimorfo: Os homens e as mulheres não sentem atração por pessoas do sexo oposto por natureza, mas por condicionamento da sociedade. Assim, o desejo sexual pode dirigir-se a qualquer um. Heterossexualidade obrigatória: Força-se as pessoas a pensar que o mundo está dividido em dois sexos que se atraem mutuamente sexualmente. Preferência ou orientação sexual: existem diversas formas de sexualidade – incluindo homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis – que equivalem à heterossexualidade. Homofobia: Temor a relações com pessoas do mesmo sexo, pessoas preconceituosas contra os homossexuais” (o termo se baseia na noção de que o preconceito contra os homossexuais tem suas raízes na exaltação das tendências heterossexuais).
  6. 6. Há oito anos, um judeu maçom, membro do Clube Bilderberger e da Comissão Trilateral, afiliado à alta maçonaria hebraica B’nai B’rith (Filhos da Aliança), Jacques Attali, ex-assessor de Mitterrand, visitava a Argentina, e em uma entrevista dada a um jornal portenho, fazendo propaganda da Nova Ordem e do Governo Mundial, disse estas palavras: “penso que uma globalização governada é uma coisa boa… Estamos vivendo um período em que está desaparecendo o que muita gente via como a verdadeira natureza humana…”. E, ao fazer o panegírico da democracia como ferramenta da mudança em direção ao Governo mundial, acrescentou: “creio que uma das mudanças importantes que ocorrerão no terreno da moral é o questionamento da monogamia e da fidelidade como uma necessidade absoluta…, porque a grande tendência do mundo atual é a liberdade. E se refletirmos bem, a liberdade não é apenas ‘ou’, a liberdade é também ‘e’…, em uma época em que a expectativa de vida está aumentando, não creio que se encontrem fidelidades excessivas durante muito tempo… É melhor. O fato de que as pessoas tendem a viver em redes múltiplas… essa multiplicidade vai se estender também à vida sentimental… A realidade de vidas e parceiros múltiplos vai ser cada vez mais visível, e a hipocrisia da sociedade ficará a nu. A continuada ascensão da liberdade individual transformará os costumes sexuais…, os avanços tecnológicos debilitarão ainda mais os vínculos entre sexualidade, amor e reprodução, que são conceitos muito diferentes. A generalização dos métodos anticoncepcionais eliminou já um obstáculo importante para a possibilidade de ter vários parceiros… Hoje a maioria das sociedades já aceita as relações amorosas sucessivas; em breve reconheceremos o amor simultâneo como algo legal e aceitável. Homens e mulheres poderão formar parcerias com diferentes pessoas que, por sua vez, terão outros parceiros também. Por fim, reconheceremos que é humano amar a várias pessoas ao mesmo tempo.”
  7. 7. Gn 19, 24-25.
  8. 8. Lv 18, 24-29; 20, 13.
  9. 9. Rom 1, 24-32.
  10. 10. 1Cor 6, 9-10.
  11. 11. Ap 21, 8.
  12. 12. S. T., IIa IIae, q. 154, a. 12 ad 1.
  13. 13. S. T. IIa IIae, q. 154, a. 12 ad 2: Ad secundum dicendum quod etiam vitia contra naturam sunt contra Deum, ut dictum est. Et tanto sunt graviora quam sacrilegii corruptela, quanto ordo naturae humanae inditus est prior et stabilior quam quilibet alius ordo superadditus.
  14. 14. S. T. IIa IIae, q. 154, a. 12 co 
  15. 15. S. T. Ia, q. 98, a. 1.
  16. 16. [N. do E.] As definições de supósito e de pessoa foram dadas por Boécio. Sua definição de supósito é a de substância individual de natureza completa; sua definição de pessoa é de substância individual de natureza racional.

Editorial no Centenário do nascimento de Santa Teresinha

Julgamos oportuno dedicar um número inteiro de PERMANÊNCIA à memória de Thérèse Martin (2 de janeiro de 1873) que entrou no Carmelo de Lisieux com quinze anos de idade, e pronunciou os santos votos em 8 de setembro de 1890. No mesmo mês recebeu o hábito com o nome de Soeur Thérèse de l’Enfant-Jesus et de la Saint Face. Viveu somente sete anos a vida obscura e silenciosa de uma pequenina religiosa ignorada do mundo, rejeitada pelo mundo, mortificada, morta antes de morrer porque nunca escolheu nada entre os nadas do mundo, tendo escolhido TUDO da Santa Vontade de DEUS. Deixou por obediência um caderno de apontamentos onde registrou os pequeninos passos, ínfimos, quase imperceptíveis, de uma vida exterior insignificante. Esse caderno, depois de sua morte, foi publicado pelas freiras de Lisieux com o título “História de uma Alma”. E aqui começa uma outra história, a desse livro, que pode sem nenhum exagero ser considerada um dos espantosos milagres do século que terminava engalanado, estrepitoso, iluminado para festejar as grandezas de uma civilização desviada de Deus. Misteriosamente, incompreensivelmente, milagrosamente o insignificante livro de uma história insignificante, que facilmente poderia ser afastada como convencional ou como presunçosa, começa a difundir-se, aos milhares, aos milhões, e chega em pouco tempo até os confins do Extremo Oriente. Mas o milagre ainda maior foi o de ter sido compreendido, diríamos quase adivinhado, por carvoeiros, cozinheiros, por padres, por Papas e até por intelectuais. Muitos desses leitores descobriram o segredo profundo de Teresinha, o segredo da santidade, a grandeza da pequenês, a glória da humildade, e todos os demais paradoxos da Cruz, sinal de contradição, de tropeço e de escândalo. O sucesso explosivo, humanamente inexplicável da pequenina carmelita de Lisieux foi uma resposta de Deus ao estardalhaço dos homens.

Nas matinas de Natal a Igreja rezava (ainda reza?) o Salmo II com que a Esposa de Cristo muito visivelmente respondia às insolências do mundo: “Quare fremuerunt gentes: et populi medittati sunt insânia?” E adiante: “Aqueles que habita nos céus se rirá deles”, se rirá dos poderosos que se coligaram contra o Senhor.

O nascimento de Jesus na terra foi, como nos ensina assim a liturgia sagrada, um grande riso de Deus; o nascimento de Teresinha no céu foi um eco daquele, e outra vez às almas de fé foi oferecido, como consolo dos escárnios dos homens que meditam coisas vãs, um largo clarão do riso do céu. Vejam! Mas passados treze anos de sua morte obscura e pequenina, a insignificante carmelita Teresinha, sempre inha, sempre pequenina, tem o diminuído nome espalhado no mundo inteiro, e um Papa imenso lê com pasmo a história de uma freira escondida em Lisieux, e manda logo iniciar-se o processo de sua beatificação. Consta que exclamou: “é a maior santa dos tempos modernos!”; mas só teve vida para assinar, dois meses antes de sua própria morte, o decreto de beatificação. A alegria da canonização Pio X só a teve no céu; mas não esperou muito porque seu antecessor Benedicto XV mandou suspender a isenção canônica que manda esperar cinqüenta anos post mortem para o inicio do processo de canonização. Também este Papa não viu Teresinha nos altares, mas seu sucessor parecia impaciente, e em 23 de abril de 1925 foi solenemente declarada Santa, e oferecida à veneração de milhões de impacientes fiéis, Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face. E Pio XI logo declarou que seria ela a “estrela de seu pontificado”. E desde 1927 a pequenina e imóvel religiosa de Lisieux, que depois da entrada no convento só saiu para entrar no céu, a menos viajada religiosa do mundo, a menos espalhada, a menos empreendedora foi escolhida como padroeira de todas as Missões.

Os paradoxos da santidade se multiplicam em torno da bendita humildade dessa menina imensa. Em 1944, no ano trágico em que a França se deixou vencer por si mesma, mais humilhantemente do que em 1940, Santa Teresinha é colocada ao lado de Joana d’Arc como padroeira da França que tão bem serviu quando, logo depois de sua canonização fez tudo no céu para convencer Pio XI na terra que fora vítima de uma conjuração dos inimigos da Igreja no ato que o levou a separar dolorosamente os melhores católicos franceses. Hoje é conhecidíssima a atuação de Lisieux na reconciliação do Papa Pio XI com Charles Maurras, e as bênçãos com que o cumulou, anos antes da reconciliação oficial da Igreja com a Action Française em 1939, num dos primeiros atos de Pio XII.

E a nossa convicção é que o trabalho de Teresinha no céu é o de amparar a Igreja da Terra neste século de demências. E a menina que nunca, nos mínimos atos se esqueceu da vontade do Senhor Jesus, poderá agora interceder poderosamente pela Igreja, pelo Papa, pelo clero, pelo povo de Deus, com a amorosa certeza de que agora é a vez de Jesus fazer a vontade de Teresinha. Nesta intenção, e contra todas as malignidades que desfiguram a Igreja tão bela e tão amada pelas almas sensíveis à santidade, que vem de Deus, “tu solus sanctus” mas tão maravilhosamente se manifesta nos pequeninos, peçamos a intercessão de Santa Teresinha. Santa Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face, ora por nós.

Uma resposta a Emmanuel Mounier

Georges Bernanos

 

A revista Espirit, cuja ambição é, visivelmente, a de resolver todos os problemas segundo o método inaugurado outrora nos laboratórios do sr. Edison, quero dizer, utilizando centenas de jovens pensadores de óculos, trabalhando em equipes, acaba de publicar as respostas à sua enquete sobre “a ruptura” entre o mundo cristão atual e o mundo moderno.

“Acha o senhor, perguntava o Sr. Mounier, que esse divórcio seja definitivo e que deva acabar no desaparecimento da era cristã, ou somente acidental, e correspondendo apenas à crise de uma Cristandade histórica particular de onde o Cristianismo deve sair com uma nova face?” 1

Mas, caro Mounier, só existe uma face no Cristianismo, não está de acordo comigo sobre esse ponto? Só há uma face do Cristianismo que é a do Cristo, e encontramos esta face, você e eu, cada vez que lemos o Evangelho.

Sem dúvida compreendo seu pensamento, vejo agora onde quer chegar. Sabe muito bem que depois de ter executado seu número de circo, cada um de seus alunos viria declarar em público, sob uma forma ou outra, que a lei do mundo moderno é a eficácia, que a Igreja não é eficaz, enquanto seus amigos comunistas aplaudiriam gravemente, do alto de suas incompetências, com um sorriso de entendidos... Mas qual é a lei da eficácia para a Igreja? Meu caro Mounier, eis o ponto sobre o qual devemos primeiramente nos entender.

No julgamento de seus amigos comunistas está claro que essa eficácia deve ser medida pelos resultados estatísticos como os de uma sociedade beneficente. Mas o próprio de uma certa eficácia sobrenatural não será precisamente a de decepcionar aqueles que a julgam segundo a regra comum? Aquilo que pedem à Igreja, estes horrorosos intelectuaizinhos atormentados pela sarna da dialética marxista, e que entre duas cambalhotas se coçam ferozmente nos bastidores, é precisamente o mesmo que os doutores e os escribas pretendiam exigir do Cristo. No final das contas os judeus — também eles — esperavam um messias “eficaz” e não viram mais do que um homem pobre, tal como o descreve Daniel Rops em um livro que leio e releio com o coração flagelado de angústia2. Um pobre homem, que nem era capaz de carregar sozinho sua cruz debaixo da gritaria do populacho. A Igreja não nos desconcerta menos, é certo, mas Deus quis alguma vez que Ela nos seduzisse? Há um escândalo da Igreja, mas Deus quer acabar com esse escândalo, ou dará somente até o fim, a cada homem de boa-vontade, o que é preciso para passar além? Você acredita que hoje o rosto da Igreja repele mais do que atrai, mas e se repelisse precisamente porque nós nos desviamos dele, porque não ousamos olha-lo de frente, porque nossa fé e nosso amor não se refletem mais nele? As massas se afastam da Igreja, vejo bem. Mas terá a Igreja necessidade das massas ou as massas necessidade da Igreja? Imbecis! Deixaram formar uma civilização inimiga do homem e contam com o Filho do Homem para os ajudar a prosseguirem com essa experiência até o fim? Quando não pensavam mais em pecado original ei-lo que se impõe sob a forma de bomba atômica ou desses cristais do Dr. Went, dos quais 20 gr. são suficientes para provocar a morte de todos os seres humanos vivos nos Estados Unidos e no Canadá... Idiotas que são! Quiseram um mundo eficaz, eis que o têm. Arrebentem-se contentes!

Quando falo assim, o sr. Mauriac pára um instante de lamber seu urso democrata-cristão para me tratar de pessimista. Ele ou eu, Deus sabe quem é o pessimista! Porque não é meu desespero que recusa o mundo, eu o recuso com toda a minha Esperança. Sim, espero com todas as minhas forças que o mundo moderno não dará razão ao homem. O mundo moderno quer dizer, o Estado moderno, o Robô gigante, planetário ao qual a ciência oferece todos os dias armas à sua medida. Está claro que diante desta Providência mecânica da qual esperam a justiça social — e porque não o amor também, imbecis! — o Mendigo Divino suspenso a seus cravos faz uma triste figura... E agora estamos todos em volta da Igreja, como outrora os judeus em volta do Supliciado: “Vamos. Se é Deus, prove-o, salva-te! Salva-nos”. Mas a Igreja, assim como o Cristo, não se dignará responder ao desafio do mau ladrão.

 

Revista Permanência n° 172-173, Março-Abril de 1983. (Tradução de Anna Luiza Fleichman, de “Français, si vouz saviez”)

 

** O título é de nossa autoria [N. da P.]

  1. 1. “Mundo Cristão, mundo Moderno” (Espirit, ag-se 1946). As perguntas feitas por Mounier eram textualmente: “Que pensa do fosso que se estabeleceu entre o mundo cristão e o mundo moderno? Como se formou? O que se torna? Como encara as soluções que foram tentadas para enche-lo? Que se deve tentar?” As principais respostas recebidas e publicadas foram as dos srs. Denis de Rougemont, François Mauriac, Etienne Gilson, Brice Parrin, Henry Multzer O’Naghten, Nicolas Berdialff, D. Bruno de Solage, Rv. Ped. Buckberger, Pierre Teillard de Chardin, Henry de Lubac, Montuclard, Henry Leclerc, G. Michonneau, Pierre, Depierre, dos pastores Roland de Pury e Brissaud.
  2. 2. Jesus em seu tempo. Ed. Fayard, 1945.

A reforma intelectual e moral

Jean Madiran

 

A política moderna é essencialmente uma estratégia sem fé nem lei para a tomada do poder e para sua exploração; é portanto um despotismo sistemático e não acidental. Não está mais a serviço do bem comum temporal. É por isto que a palavra “política” e o fato político estão desacreditados, como estava desonrada a profissão das armas quando nasceu a cavalaria.

A reforma intelectual não visa a tomado do poder nem mesmo do poder cultural. Ela quer outra coisa: quer a restauração do aprendizado.

O homem é votado à aprendizagem e ao aperfeiçoamento, isto é, ao esforço de adquirir aquilo que é superior a ele mesmo: superior na ordem do saber, na ordem do saber fazer e na ordem da sabedoria. Quando, por princípio, se imagina que não há nada superior ao eu individual, à própria consciência e à própria vontade livre, o aprendizado não tem mais sentido, não há mais aperfeiçoamento. Estamos atualmente neste ponto. Todos os graus de ensino estão fundados na crença de que tudo se pode saber sem nada se ter aprendido. A isto se chama respeitar e cultivar a criatividade de cada um. Maurras caracterizou bem as duas atitudes mentais:

“Um moço que quer amadurecer pode dizer a si mesmo:

Com quem parecerei? Comigo mesmo? Com o que tenho de mais ‘eu-mesmo’? Acentuarei a minha personalidade, reforçando todos os traços de meu natural?

Como pode dizer também:

Tornar-me-ei parecido com alguma coisa de melhor e mais alta do que eu?”

Prender-se ao que há de mais “eu-mesmo” ou a “qualquer coisa de melhor e de mais alta do que eu”? Estas duas atitudes mentais poderíamos chamá-las, uma, moderna, outra, clássica, ou melhor natural. A reforma intelectual consiste em subir da primeira para a segunda. A modernidade consiste em descer da segunda para a primeira: neste caso já se suprime, de saída, a idéia de aprendizado porque não trata de tornar-se melhor mas de tornar-se cada vez mais “eu-mesmo”, sem se compreender que o verdadeiro modo, a única possibilidade de se tornar cada vez mais “eu-mesmo” é justamente se tornando melhor. No fundo existe aí, portanto, um qüiproquó diabólico, um infernal mal-entendido, como houve desde o princípio com o eritis sicut dii (“sereis como deuses”). Perseverar  e crescer no ser que se é, eis a mais legítima aspiração; a aspiração natural do ser. O caminho aparentemente curto, o caminho enganador recusa reconhecer superioridades, submeter-se a elas, instruir-se, adaptar-se, conformar-se por elas, como se estas restrições de boa ordem infligissem uma diminuição à pessoa. Mas o desabrochar da personalidade não é a finalidade suprema: ela não será encontrada por acréscimo em lugar algum senão no final do caminho da humildade.

A história da humanidade mostra um progresso geral quase constante, quase contínuo: o progresso do poder do homem sobre a matéria. Este progresso não é, em si mesmo, uma ilusão. Mas ilude. Faz esquecer o outro aspecto da história da humanidade, também constante, que é a inconstância de seu valor intelectual e moral; inconstância de um século para outro, de uma época para outra, e até de uma idade para outra de uma mesma vida, como mostra a história do Santo rei David e ainda mais a do rei Salomão. Mas nenhuma história mostra mais nada quando se deturpa tanto o que ela conta quanto os critérios de julgamento. Hoje, na França, o recurso às lições da história é inoperante. A história que vem sendo ensinada aos franceses há um século foi pensada, fabricada, escrita com uma intenção passionalmente hostil à sua pátria e à sua religião. Henri Charlier foi educado sem fé nem batismo, num espírito perfeitamente maçônico. Passando pela primeira vez diante de Notre-Dame de Paris, conclui imediatamente que lhe tinham mentido, que os homens, a sociedade, a época que tinham construído a Igreja de Notre-Dame não estavam mergulhados no obscurantismo com lhe haviam dito. Ele pode formular para si mesmo, com certeza, tal conclusão porque tinha uma verdadeira percepção clássica; viu que da época da construção de Notre-Dame para a nossa não tinha havido progresso mas recuo. Progresso houve, sem dúvida, como sempre, mas do poder do homem sobre a matéria; recuo intelectual e moral. Mais ou menos no mesmo momento, a percepção política ou especulativa de Péguy, de Maurras, levavam-nos a observações análogas. Percepções raras, percepções excepcionais. Pois o olhar moderno foi preparado, habituado, condicionado para procurar no passado não mais o exemplo de realizações do bem comum temporal, mas precedentes revolucionários revelando as primeiras revoltas da pessoa individual em marcha para a conquista de sua autonomia moral. Disto se compõe um outro universo mental: o universo cultural e político que a televisão de cada dia ilustra, instala, impõe. A autonomia moral da pessoa é uma mentira. O homem moderno pensa que vai achar a liberdade nesta autonomia; acha a escravidão. Sua libertação depende de uma reforma intelectual e moral, a reforma de Péguy, de Maurras, de Henri Charlier.

 

“Itinéraires” n° 216 — Set—Out 1977 (Trad. De ANNA LUIZA FLEICHMAN)

Permanência, n° 112/113, Mar-Abr 1978.

A Muito Leal e Heróica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro

Luiz Carlos Ramiro

 

 

Esse é o título da obra de Gilberto Ferrez e Raymundo de Castro Maia, em comemoração ao IVo Centenário da Fundação da Cidade, em 1965. Leal e Heróica porque foi decisiva para a defesa do império português contra o estabelecimento da França Antártica entre 1555 e 1570. É de São Sebastião porque se trata do padroeiro da cidade, o mártir cravado de flechas.

A cidade rodeada pelo mar guarda uma relação telúrica com a formação do Brasil. Desde 31 de agosto de 1763, quando d. José I (1714-1777) determinou a transferência da capital do Vice-Reino do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro, o Rio se tornou "cabeça do Estado do Brasil", como se dizia na época. E, tal como no século XVI, funcionou como lugar de fortaleza, pois era estratégico para Portugal ficar mais próximo das regiões meridionais, fosse para proteger as riquezas vindas das Minas, fosse para não dar margem às ameaças dos espanhóis.

Em 1808 se torna a única sede de um império europeu nas Américas. Em 1815 o Brasil vira Reino, junto com Portugal e Algarves, e o Rio se reafirma como a Corte dos Braganças. Por conseguinte, é o lugar de estabelecimento do Império do Brasil com a Independência em 1822.

Por quase 200 anos o Rio de Janeiro foi institucionalmente capital do Brasil, e, mesmo quando perdeu o título formal, nunca deixou de ser na prática o centro de referência. Mal ou bem, para mostrar as imoralidades – o Carnaval -, ou para mostrar a religiosidade brasileira – pelo Cristo Redentor, o Rio é a imagem que aparece com maior frequência entre brasileiros e estrangeiros. Não é o lugar mais rico, tampouco o mais organizado, e nem mesmo o mais homogêneo, e justamente por isso é que representa bem a nação.

 

Capital espiritual do Brasil

Nação de grande porte, naturalmente influente e potente, o Brasil tem sua forma política, ainda hoje, imperial. Não é possível pensar o país sem compreender esse fenômeno. Pouco importa se o regime é republicano ou monárquico, importa é que o substrato é imperial. Reúne e permite a heterogeneidade de povos e tem uma referência, um caput. Esse ponto não é um discurso técnico, etéreo, mas marcado pela história, até mesmo pela trajetória espiritual de um povo. Administrativamente, se pode governar de qualquer lugar, mas politicamente, não se pode exercer o poder à distância.

Por mais que se tenha insistido nos últimos 60 anos, Brasília jamais conseguiu se estabelecer como uma capital nacional, de referência dos brasileiros para si e para fora. Não significa que não possa cumprir funções gerenciais, mas jamais será a identificação nacional, algo do resumo do Brasil.

Ainda que seja compreensível o modo como o Rio de Janeiro é percebido pelos brasileiros em geral, como o lugar da sacanagem, dos traficantes, da lasciva e dos políticos ladrões, é verdade que essa é a identificação comum a qualquer capital no mundo. O Rio assume um ônus de capital, ainda que já não tenha o bônus. Mas isso ao mesmo tempo nos leva a pensar sobre o porquê de tamanho desprezo ou mesmo desejo pela decadência. A mesma explicação para o desleixo que temos conosco, como nos consumimos em iniquidades, é o que o brasileiro tem com o Rio de Janeiro, não preserva e ama o que tem de precioso.

 

  O Rio, por sua vez, tem todas as marcas da nação, inclusive suas cicatrizes. Se a cabeça vai mal, o corpo vai mal, logo o modo como o Rio decai nos resume, expressa essa atroz falta de amor de si e ao próximo, desleixo, apatia, entrega. Tudo diferente da altivez do Cristo, que deu coragem a São Sebastião, e motivo de proteção de Nossa Senhora.

E se politicamente o Brasil surge mesmo com d. João VI, ao criar uma série de instituições para o estado brasileiro, é bom lembrar o que a Família Real fez logo que desembarcou em 1808. O regente foi até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário rezar, em agradecimento.

O dia do Fico foi decidido dentro do Convento de Santo Antônio, no centro do Rio. Foi ali que praticamente se fez a Independência, como pensamento e sistema, foi onde d. Pedro I e seus amigos iam conspirar, sob o auspício de Frei Sampaio, o mesmo que oficiou a Missa de Sagração e Coroação do imperador em 12 de outubro de 1822.

O maior símbolo do Brasil é o Cristo Redentor, construído pela solidariedade de um povo católico. Campanhas, doações e envolvimento popular foram essenciais para erguer a estátua inaugurada no dia de Nossa Senhora Aparecida, em 1931. Foi feito olhando para Sua Mãe, representada no outro lado da baía de Guanabara, no Monumento Nossa Senhora Auxiliadora, situada no Morro do Alarico, em Santa Rosa, Niterói, cuja estátua havia sido erigida em 08 de dezembro de 1900.

No Centenário da Independência, em 1922, quando o Rio foi palco da Exposição Universal, e era uma das cidades mais iluminadas do mundo, outro evento central dessa simbiose entre capitalidade e a religião verdadeira: é fundado o Centro Dom Vital. E dele é que surgiu a ação viva de manutenção do espírito católico, que foi a Permanência, em 1968, em cerimônia dentro do Palácio Gustavo Capanema, reunindo centenas de autoridades.

Enquanto brasileiros e católicos, o Rio de Janeiro e Roma exercem ações análogas. Como não há como resgatar o Brasil sem resgatar o Rio, não há como resgatar a Igreja católica sem a conversão de Roma.

 

Frutos de uma aberração

Em 21 de abril de 1960 a capital foi transferida para Brasília. Foi uma das maiores loucuras da história mundial, a construção de uma cidade futurista para ser capital num deserto. É como se hoje a Rússia decidisse substituir Moscou e São Petersburgo por uma invenção na Sibéria, ou o Canadá montasse sua capital no gelo, ou então a Austrália fizesse o mesmo naquele deserto imenso. Pois nos anos 1950, o então presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek fez. Mas não faltaram críticas e demonstrações do quão absurdo era aquilo. Gustavo Corção, fundador da Permanência, escrevia seguidamente nos jornais explicando o erro.

Mas aconteceu, e erra quem pense que se tratou apenas de um crime contra o Rio, pois foi uma atrocidade contra o Brasil. Brasília resultou em aumento da dívida pública, gerou surto inflacionário nas décadas seguintes, e deu origem a diversos vícios do serviço público e da atividade política. A Novacap ainda artificializou a relação política, criando nos brasileiros uma consciência de que é normal o distanciamento entre o exercício do poder e as pessoas, como se a autoridade devesse ser exercida à distância, quando essa é uma das origens centrais da corrupção.

Entre 1960 e 1974 a cidade do Rio de Janeiro funcionou como cidade-estado, a Guanabara. Ao redor estava o antigo estado fluminense, cuja capital era Niterói. Desde 1834 a vida carioca e a dos fluminenses era diferente, não se confundiam. Mas em 1975 se fez a confusão: sob decisão do então presidente Ernesto Geisel os estados foram fundidos. Se a situação da Guanabara já era difícil, e o antigo estado do Rio de Janeiro pobre, desde então a situação ficaria muito pior. Ao contrário do previsto, as duas regiões se enfraqueceram, e em mais de quatro décadas foi o estado brasileiro que mais decaiu em riqueza, industrialização, participação política nacional, índices de desenvolvimento humano, liberdade e segurança pública.

 

A crise de autoridade

Não há mais como acreditar no exercício normal da autoridade no Rio de Janeiro. O problema é estrutural. O atual estado precisa acabar e o Brasil cuidar do que é seu, da cidade do Rio de Janeiro, inclusive para permitir uma vida própria ao antigo estado fluminense. O Rio é da nação brasileira, pois é onde há mais servidores públicos federais do que Brasília; a União é proprietária da maior parte dos prédios e terrenos públicos, superando estado e município; parte significativa das repartições federais estão na cidade, assim como é onde estão os pontos essenciais à história nacional. O Museu Nacional que pegou fogo há dois anos (02 de setembro de 2018) não era da cidade, mas do país.

Como o poder é deteriorado a elite não se integra, e quando podem lavam as mãos, e as instituições são fatiadas. Delegacias e batalhões têm dono, ao mesmo tempo o subúrbio e as favelas são dominadas por organizações criminosas, traficantes e milicianos. Hoje o Rio tem mais traficantes e milicianos, bem armados, do que policiais na rua. O poder local é incapaz de responder a altura, tanto que o Supremo Tribunal Federal sem muita dificuldade intervém diretamente no modelo de ação das polícias, ao impedir operações em favelas. A descrença sobre os políticos é imensa, todos os governadores eleitos já foram destituídos do cargo, e quase todos eles presos – o atual pode ser o próximo.

Diante de tudo isso algumas coisas aconteceram, até mesmo pela sucessão de medidas emergenciais demandadas pelo estado. Desde os anos 1990 sucessivas operações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO), em que as Forças Armadas atuavam para auxiliar na Segurança Pública. Em 2018 o governo federal decreta uma Intervenção Federal na Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro, tendo em vista o somatório de crise fiscal e política local. O problema da Intervenção foi ela ter acabado, pois precisa ser permanente. E nesse sentido entra a proposta que já circula de federalização do Rio de Janeiro através da criação de um Distrito Federal. Um deputado federal protocolou uma PEC (Proposta de Emenda Parlamentar) para a criação desse 2º DF, que dividiria atribuições com Brasília e iria desfazer a fusão de 1975.        

As grandes lições que recebemos

Júlio Fleichman

 

A maior parte dos que compõem o grupo de “Permanência”, pelo menos os que residem no Rio de Janeiro, sabem-se membros de uma escola reunidos em torno de um mestre espiritual.

Ao longo de cerca de 30 anos, menos tempo para alguns, os ensinamentos que recebemos resultaram, sobretudo, da Santa Doutrina da Igreja e da exposição dos pontos principais da serva desta doutrina, a filosofia aristotélico-tomista. Mas, sobretudo, ao longo de todos esses anos, o ensino e o exemplo do mestre que Deus nos deu, mais do que de abstrato professor, não deixaram nunca de fazer incursões retificadoras ou enriquecedoras da mentalidade comum em face dos problemas do momento, que se desenvolviam e desabrochavam em cursos de formação de uma espiritualidade, digamos seu nome próprio, em cursos de teologia ascética e mística. Sim, porque não há de haver necessariamente pretensões maiores do professor ou dos alunos em aprender esta ciência quando tomamos conhecimento da primeira lição fundamental que ali se ensinava: o amor sobrenatural sem medidas e sem limites, acima de tudo o mais impõe como preceito e não como sonho a obrigação — que é elementar e comum a todos os católicos — de buscar a perfeição, de procurar a santidade. Evidentemente não a santidade eminente, a santidade dos altares, mas aquela que, proporcionalmente à nossa pequenez, como ensinam Santa Terezinha, é ardentemente desejada pelo Pai que nos quer perfeitos como Ele é perfeito. Mesmo porque, prossegue a longa lição, longamente ensinada, longamente aprendida anos a fora, a vida espiritual não conhece parada ou descanso. “Quem não progride, regride”.

O progresso, o adiantamento, o crescimento da alma de cada homem se processa em sentido diametralmente oposto ao crescimento, ao progresso no plano natural. Progredir, para os seres vivos do gênero animal — inclusive para o homem —, significa caminhar para uma autonomia crescente e uma crescente iniciativa própria quanto aos atos de pura natureza. Progredir no plano do crescimento espiritual importa em caminhar por desertos e trevas para deixar de lado as iniciativas próprias e a própria vontade e alcançar uma crescente dependência, uma entrega cada vez maior Àquele que nos quer tomar em Suas mãos e fazer-nos caminhar para Ele, como Ele quer e por onde Ele manda. Pela estrada que é chamada com o belo nome de Estrada Real da Santa Cruz, na “Imitação de Cristo”. Tomai sobre vós a vossa cruz e segui-me, diz o Senhor.

Tudo aquilo que aprendemos nas aulas de Dogmática ou que praticamos em termos de virtude e penitência; os atos de religião e culto feitos em termos de oração vocal; a Missa e os Sacramentos, especialmente a Sagrada Eucaristia; a vida monástica e os exercícios espirituais, tudo isso se dirige, encontra seu sentido próprio na preparação e encaminhamento de cada alma para a busca da porta a que bater, para a presença diante do Senhor em que, com mansidão e humildade conforme Ele nos quer, coloquemo-nos, em verdade e singeleza, em Suas mãos. Mas, a verdade manda que se diga que já é Ele que nos trouxe até esta porta e já foi por obra de Sua graça que ouvimos e guardamos o que nos era pedido. O que importa aqui dizer e o que importa que não esqueçamos é que tudo o que possamos querer em matéria de aprendizado de doutrina, de atos de mortificação ou de busca de virtude só tem sentido se nos favorecer na alma a aspiração de um relacionamento pessoal, interior e direto com Nosso Senhor, Ele mesmo, por obra de Sua graça.

É verdade que este empreendimento é não só difícil, mas perigoso e requer, em princípio, a assistência, o socorro de um diretor espiritual que nos acompanhe em nosso itinerário pessoal e não apenas nos ajude como mestre. É verdade que, em tempos normais, a Igreja sempre recomendou que não nos lançássemos a tal empreitada sem direção de um confessor ou, pelo menos, de um homem sábio e virtuoso que nos pudesse assistir em termos pessoais. Mas hoje, sabemos todos, é quase impossível encontrar este tipo de assistência e, por isso, é imprescindível que em nossas orações e nas aspirações que nossa alma dirige ao Senhor, lembremos esta dificuldade e peçamos a Ele que nos socorra, que providencie, como Ele mesmo sabe que precisamos e como Ele mesmo quer. Porque, o fato é que o preceito continua de pé e a sede do Senhor pelas almas que se lhe entregam pessoalmente, na intimidade do coração de cada um, não diminui nem fica suspensa. Por outro lado, o Senhor espera que não nos conformemos com “qualquer um” pseudo-sacerdote ou pseudo-bispo que nos virá falar de “campanhas de fraternidade” ou de outros tipos de corrupção espiritual com que consiga afastar-nos de Deus. Quem nos fala hoje, entre os bispos, uma linguagem que nos lembre, pelo menos nos lembre, a procura de santidade e o preceito correspondente? Quem ainda nos dirá que procure na “Imitação de Cristo” ou em São João da Cruz ou em Santa Terezinha d’Ávila exemplos de ascensão mística que a todos nos é pedida? Mudou nossa religião? Se mudou, se é outra, então nós não a queremos. A nossa religião, a católica, mantém a mesma linguagem, a mesma exigência e o mesmo ardente desejo da parte de Deus.

Não precisamos ter medo de esquecermo-nos das obrigações que os tempos difíceis nos trazem, da necessidade do combate dos deveres de estado, das aflições e dos sofrimentos nossos e alheios. Ninguém perde por esperar. Aquilo que aqui chamamos “nossa cruz” inclui tudo isso. A nós, que recebemos aquelas grandes lições lembradas acima e que procurarmos segui-las, nunca nos faltaram combates, trabalhos, deveres de estado, sofrimentos e aflições. Temos filhos, temos irmãos, temos a visão do que se passa no mundo. Mas, sobretudo, não nos falte, acima de tudo, não nos abandone, a lembrança da necessidade de procura de vida interior; a reiterada e constante aspiração de vivermos na presença de Deus em oração permanente como nos diz S. Paulo que devemos querer; a referência a Deus e de todos os nossos atos, nossos desejos, nossa consideração das coisas do mundo. Se, do alto dessa visão que em Deus tudo centraliza e a Ele tudo refere podemos ver melhor (e sabemos que vemos melhor); se a Ele tudo referindo buscamos, sobretudo, a Sua glória e não a nossa e, com isso, sabemos que todas as coisas, do universo dos homens e de nossa vida particular, ganham dimensões próprias e com elas um enriquecimento proporcionado que o pecador desconhece, não deixemos nunca de aspirar a um crescimento incessante na santidade a que fomos chamados para, esquecidos de nós mesmos e de tudo mais, vivermos permanentemente, crescentemente, a vida da caridade que já é um começo do céu. Pois, com temor e tremor, lembrando-nos de que quem não progride, regride, podemos suspeitar que foi por ignorarem ou terem esquecido tudo isso; foi, talvez, por se terem habituado a uma maneira prevalentemente exteriorizada de praticarem a religião; foi, quem sabe, por um vazio quanto àquilo que o próprio Senhor chamou “o único necessário” que tantos bispos e tantos padres e tantos fiéis, tão fácil e tragicamente se deixaram envolver e desencaminhar pela corrupção que invadiu os átrios da Igreja e, nela, nos meios católicos, nas mais altas cúpulas como em quase todas as paróquias ou colégios católicos ou Ordens Religiosas ou associações ou instituições que já foram ditas “da Igreja”, em toda parte, fez tantos estragos, desviou tanta gente e perdeu tantas almas, talvez.

 

Permanência, n° 90/91, maio/junho de 1976.

Os filhos do ódio

Todo esquerdista é um deformado. E quanto mais culto, quanto mais vinculado aos seus precursores, humanistas no século XVI, “filósofos” ou “esclarecidos” do século XVIII e logo depois, os jacobinos e em seguida os maçons, todos os socialistas de todos os matizes firmam-se obstinadamente em certos postulados arbitrários e na certeza fanática de suas convicções. Quando lhes ocorre chocarem-se com os fatos, pior para os fatos. Se o povo simples, ainda não atingido por suas arengas, repele-os, muitas vezes por simples enfado (são chatíssimos), logo constróem em suas cabeças uma contorção pela qual ficam sendo “reacionários” ou “vendidos” os que não se deixam sensibilizar pelos seus esquemas, todos de conflito: ricos contra pobres, progressistas contra reacionários, inovadores contra “apegados aos seus privilégios de classe”, etc., etc.

Esta deformação mental, porém, tem raízes mais profundas e mais sombrias. Os socialistas são, realmente, almas ressentidas, poços de rancor generalizados, filhos do ódio. Seu ódio, normalmente, volta-se para os que servem-lhes de pretexto ou contra aqueles que lhes barram o caminho.

Que eles são filhos do ódio, sentiu o poeta e exprimiu-o muitíssimo bem. Fernando Pessoa, no seu poema “Ontem à tarde...” (Alberto Caeiro) vai fundo na percepção do que o socialista é:

 

Ontem à tarde, um homem das cidades

Falava à porta da estalagem.

Falava comigo também.

Falava da justiça e da luta para haver justiça

E dos operários que sofrem,

E do trabalho constante e dos que têm fome

E dos ricos, que só têm costas para isso.

E olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos

E sorriu com agrado, julgando que eu sentia

O ódio que ele sentia

E a compaixão que ele dizia que sentia”.

........................ (Poema XXXII).

 

Nos países em que ainda não têm o poder total, esse ódio concentra-se numa surda sabotagem contra os que constituem “a repressão”. É por isso que aparece, sobretudo, entre os intelectuais e em especial na imprensa, um clima, um ambiente, uma mentalidade generalizada que sente a mais completa indiferença pelas vítimas dos criminosos, uma mal disfarçada simpatia pelos criminosos e um ódio implacável contra a polícia que prepara e esconde o ódio total contra o Exército, contra os militares em geral. Mas não se pense que o ódio contra os militares é apenas ódio contra os que lhes barram o caminho. É mais do que isso. É, antes disso, ódio contra aqueles que significam sobretudo uma ordem, um organismo institucional, um regime de subordinação de uns e de exercício de autoridade de outros. É ódio à autoridade mais do que qual quer outra coisa. Ora, o ódio à autoridade esconde o ódio a Deus, ódio que nasce da soberba, ódio que exprime o orgulho, ódio de quem quer ser seu próprio senhor. E deles disse Nosso Senhor: “Odiaram-me sem motivo” (Jo. XV, 25).

 

(Revista Permanência Julho-Agosto 1986, N° 212-213.)

 

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