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Category: AnônimoConteúdo sindicalizado

Catolicismo e astrologia

 

Parte I: O Ensinamento dos santos doutores

Santo Tomás, logo no início de sua epístola sobre o tema, afirma que não procurará escrever senão sobre aquilo que ensinaram os santos doutores (ea quae a sacris doctoribus traduntur). Com efeito, a oposição às adivinhações astrológicas e outras supertições não é uma peculiaridade do Aquinate — ao contrário, é ela quase tão antiga quanto a própria Igreja. Façamos um breve retrospecto e ouçamos a voz da Igreja.

Talvez a primeira coisa que se deva dizer acerca da consulta aos astros é que ela está formalmente condenada desde os primeiros séculos da Igreja, como se vê no Denziger:

[Dz 35] Se alguém pensa que se deve crer na astrologia, seja anátema. [Concílio de Toledo, ano 400].

E, novamente, pelo Papa João III, no século VI:

[Dz 239] Se alguém crê que as almas humanas estão ligadas a um signo fatal, como disseram os pagãos e Prisciano, seja anátema.

Estas definições, suficientes para todo católico que não tem nem quer ter espírito de revolta, foi ainda repetida por inúmeros Santos, Doutores e Teólogos. Mesmos em tempos mais recentes, não deixou o Magistério de condená-la, como se vê em trechos do Catecismo de S. Pio X.

As condenações à astrologia são antiquissimas. Se tentássemos fazer uma história destas condenações, começaríamos com as próprias Sagradas Escrituras: Dt. 4:19, 17:3, 2 Rs. 17:16, 21:3 Jr. 8:2.

Passaríamos, em seguida, ao Catecismo dos Apóstolos, chamado Didaqué:

“[...] Também não pratique encantamentos, astrologia ou purificações, nem queira ver ou ouvir sobre essas coisas, pois de todas essas coisas provém a idolatria.” [Didaqué, ed. Paulus, 1989, pp. 12-13]

Mais um passo, e encontraríamos as objeções dos Padres da Igreja. Citemos alguns autores:

— Tertuliano: “Observamos entre as artes algumas acusáveis de idolatria. Dos astrólogos, nem deveríamos falar; mas como nesses dias um deles nos desafiou, defendendo em proveito próprio a perseverança nesta profissão, direi algumas palavras. Alego não que ele honre ídolos, cujo nome escreveu nos céus, para quem atribui todo o poder de Deus... Proponho o que segue: aqueles anjos, os desertores de Deus [demônios]... eram muito provavelmente os descobridores dessa curiosa arte [a astrologia] por isso mesmo condenada também por Deus” (Idolatria 9 [211 D.C ]).

— Hipólito: “Quão impotente é o sistema [astrológico] para comparar as formas de disposições dos homens com os nomes das estrelas!” (Refutação de Todas Heresias 4:37 [228 D.C.]).

— Taciano o Sírio: “[Sob a influência de demônios] os homens formam o material de sua apostasia. Tendo a eles mostrando o plano da posição das estrelas, como jogadores de dados, introduzem o Destino, uma injustiça patente. O julgamento e o julgado são feitos pelo Destino, os assassinos e os assassinados, os afluentes e os necessitados – [todos são] o produto do mesmo Destino” (Discurso Aos Gregos 8 [D.C. 170])

 

Escutemos agora os Doutores da Igreja:

— Sto. Atanásio: “Donde ser verdade que os autores de tais livros [os astrólogos] acarretaram a si próprios uma dupla reprovação, pois aprofundaram-se em uma desprezível e mentirosa ciência”. (Carta de Páscoa 39:1 [D.C. 367])

— Sto. Basílio Magno: “Aqueles que ultrapassam os limites, fazendo das palavras da Escritura sua apologética para a arte de calcular temas de genitura [horóscopos], pretendem que nossa vida dependa da moção dos corpos celestes, e assim os Caldeus leem nos planetas o que nos ocorrerá”. (Os 6 dias da Criação 6:5 [D.C. 370])

— Sto. João Crisóstomo: “(...) E de fato uma treva profunda oprime o mundo. É ela que devemos fazer dissipar e dissolver. E tal treva não se encontra somente entre os heréticos e os gregos, mas também na multidão do nosso lado, no que diz respeito às doutrinas da vida. Pois muitos [os Católicos] descrêem inteiramente na ressurreição; muitas fortificam-se com o horóscopo; muitos aderem a práticas supersticiosas, augúrios e presságios”. (Homilias sobre Coríntios I, 4:11 [D.C. 392])”.

— Sto. Agostinho: "O bom cristão deve precaver-se de astrólogos e outros adivinhadores ímpios" (cit. na Suma Teológica de Sto. Tomás, IIa IIae., q.95, art.5).

Para não nos alongarmos demasiadamente em citações, mencione-se apenas que também condenaram a astrologia Sto. Isidoro de Sevilha, na sua obra Etimologias, Sto. Boaventura, no Hexaemeron (onde qualifica a astrologia de “abuso da razão”), Sto. Afonso Maria de Ligório, doutor em teologia moral, para quem praticar astrologia é incorrer em pecado mortal (Comentário aos Dez Mandamentos).

Parte II: A posição de Santo Tomás de Aquino

Para maior esclarecimento quanto à posição de Santo Tomás de Aquino, publicamos estas notas extraídas das “Conclusões” do capítulo X do livro "Les corps célestes dans l´univers de saint Thomas d´Aquin", de Thomas Litt, O.C.S.O (Publications Universitaires — Louvain, Belgique, 1963, p. 240-241). Entre colchetes, algumas observações de nossa autoria:

 

Finalmente cremos poder resumir como segue a posição de Santo Tomás com respeito à astrologia:

 

1. Ele afirma como absolutamente certo o princípio geral de uma influência universal dos corpos celestes sobre todos os eventos corporais da terra, incluídos os eventos fisiológicos concernentes aos animais e aos homens.

É para ele uma certeza filosófica absoluta; é, ademais, uma verdade de senso comum (II Sent., 15, 1, 2, c.) e é também uma verdade ensinada pelas "autoridades dos santos" (ibidem); ele cita notadamente Dênis e Santo Agostinho (p.ex., Ia, 115, 3, sed contra).

[A influência admitida restringe-se aos eventos corporais. Nisso, na Suma Contra os Gentios, Santo Tomás é taxativo: "é impossível que a operação intelectual esteja sujeita aos movimentos celestes" (III. 84). Da mesma forma, nega qualquer influência dos astros sobre nossa vontade, como se vê na epístola supra, "... é preciso absolutamente compreender que a vontade do homem não está sujeita à necessidade dos astros". Assim, Santo Tomás exclui do raio de influência dos astros justamente as faculdades que especificam o homem — os intelectos e a vontade.]

 

2. Ele afirma com igual certeza que a influência dos corpos celestes sobre os atos humanos é indireta e jamais necessitante. Acrescenta que a opinião contrária é herética, porque exclui a liberdade humana.

[Isso fica claro nessa passagem da C. G. (III. 85): "[os corpos celestes] podem ser, não obstante, causa ocasional indiretamente (...)". E o exemplo clarifica: "por exemplo, quando por disposição dos corpos celestes o ar se esfria intensamente, decidimos esquentar-mo-nos no fogo ou outras coisas em consonância com o tempo".]

 

3. Ele não se pergunta nem uma única vez se o axioma ou postulado astrológico fundamental é fundado ou não: a importância decisiva, sobre todo o futuro de um homem, da configuração do céu no momento de seu nascimento (tema de genitura).

Não encontramos senão uma só vez em Santo Tomás a palavra nativitas no sentido de tema de genitura: na citação do Centiloquium que referimos na p. 233. Esta citação é aliás a única predição astrológica concreta que encontramos, e é introduzida por uma formula muito dubitativa.

Sucede-lhe outra vez mencionar os patronatos estrelares dos sete dias da semana, mas é para observar que se pode, sem perigo para a fé, adotar ou rejeitar essa teoria.

 

4. Ele admite que, em princípio, os astrólogos predizem corretamente o futuro dos homens. Eis as dez referências que conhecemos. Nas três últimas em data, diz que as predições são justas ut in pluribus.

II Sent., 7, 2, 2, ad 5: Quando as predições têm em vista os atos humanos livres, são amiúde falsas.

II Sent., 15, 1, 3, ad 4: As predições são verdadeiras, mas porque os demônios ajudam o astrólogo.

II Sent., 25, 2, ad 5: As predições fazem-se conjecturaliter et non per certitudinem scientiae.

C. G. III, 84: Os astrólogos podem julgar do nível intelectual de um homem (não há indicação sobre a frequência dos julgamentos justos).

C. G. III, 85: A impressão das estrelas produz seu efeito na maior parte dos homens, a saber, naqueles que não resistem a suas paixões.

C. G. III, 154: Os demônios podem fazer muitas predições justas (mais acima Santo Tomás mais ou menos equiparou a ciência das demônios e a dos astrólogos).

De sortibus, c. 4, n. 660: Os astrólogos predizem justamente quandoque, e enganam-se amiúde nas predições particulares.

Ia., 115, 4, ad 3: Os astrólogos predizem justamente ut in pluribus, sobretudo nas predições gerais.

Ia.IIae., 9, 5, ad 3: Eles predizem justamente ut in pluribus.

IIa. IIae., 95, 5, ad 2: Eles predizem justamente frequenter.

5. Acerca da licitude da adivinhação astrológica, temos seis textos, onde o ensinamento permanece constante ao longo da carreira de Santo Tomás, sem que se possa discernir uma evolução nem para mais nem para menos severidade.

A doutrina resume-se a isto: não é supersticioso nem ilícito buscar prever pelos astros as secas, as chuvas etc. É supersticioso e ilícito buscar prever pelos astros as ações livres humanas, e, segundo a autoridade de Santo Agostinho, o demônio imiscui-se amiúde nesse gênero de consultas, que se tornam por isso mesmo um pacto com o demônio.

Revista Permanência 266

Revista Permanência 266 - 160 páginas

(Editorial) Não deixe o sal perder a sua força Dom Lourenço Fleichman
A Caridade e as bem-aventuranças Garrigou-Lagrange
A guerra da Vendéia Jean de Viguérie
Comentário ao salmo 3 Santo Tomás de Aquino
O Sermão da Última Ceia - 2a. parte Pe. José Maria Mestre - FSSPX
Dos costumes divinos Anônimo
A crise do latim Alexandre Bastos
Deus marcou um encontro conosco Gustavo Corção
Bach - Ritcher, alegria do Rio Antônio Hernandez

História da Polifonia sacra

Pe. Gustavo Camargo - FSSPX
Calendário litúrgico  
   

Revista Permanência 283 - Tempo depois de Pentecostes 2016

Revista Permanência 283 - 153 páginas

(Editorial ) A última cruzada Dom Lourenço Fleichman
A questão religiosa: a prova suprema do império brasileiro Gabriel Galeffi Barreiro
Os que pensam que venceram - parte II Hirpinus
Qual é o problema do espiritismo? Pe. Félix Sarda y Salvany
Os cinco septenários Hugo de São Vitor
Poemas Paulo Cunha Porto
   

 

 

 

 

O documento sobre a anáfora de Addai e Mari

Agosto 26, 2018 escrito por admin

O fato

Em 26 de outubro de 2001 L’Osservatore Romano publicou um documento do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos que ditava «orientações para a admissão à eucaristia no seio da igreja caldéia [católica] e da igreja assíria do Oriente [nestoriana e cismática]»(1).

O documento diz responder a uma petição motivada pelo fato de que «numero­sos fiéis caldeus e assírios se acham em uma situação de necessidade pastoral quanto à administração dos sacramentos. Mas a Igreja Católica não podia atender à solicitação — segue dizendo o documento — sem antes haver resolvido a questão principal a seu ver, a saber: o problema [sic] da validade da eucaristia celebrada com a anáfora [cânon] de Addai e Mari, uma das três anáforas usadas tradicionalmente na igreja assíria do Oriente».

“Problema” este de não pouca importância, dado que, segundo nos informa o documento em questão, «a anáfora de Addai e Mari [chamada também “dos Apóstolos”] é singular porque, desde um tempo imemorial, ela é utilizada sem o relato da instituição», presente, em contrapartida, nas outras duas anáforas nestorianas.

Um problema inexistente

Apressemo-nos a declarar que o dito “problema” absolutamente não existe, e que, em qualquer caso, se trata de um problema já resolvido.

O problema não existe, pois é patente que uma anáfora, quer dizer, um cânon, não serve para nada se carece das palavras consecratórias (“Este é o meu corpo”, “Este é o meu sangue”): não há missa sem consagração (cf. Denzinger B.; n. 1640).

Trata-se de um problema já resolvido, porque os caldeus que se reuniram a Roma já o solucionaram: para eles ou «se supre a esta gravíssima lacuna utilizando o texto de uma das outras duas anáforas», nas quais, sim, figuram as palavras consecratórias (v. Enciclopedia Cattolica, verbete caldei), ou se insere na anáfora de Addai e Mari a fórmula da consagração.

Um giro de cento e oitenta graus

A dita solução, porém, tão elementar quanto óbvia, foi impugnada de fato pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, pois o documento dado a conhecer por L’Osservatore Romano argúi deste modo: «Visto que a Igreja Católica considera [sic!; trata-se de mera opinião?] que as palavras da instituição eucarística são parte constitutiva e, portanto, indispensável da anáfora ou prece eucarística, [a Igreja Católica] estudou longa e pormenorizadamente a anáfora de Addai e Mari de um ponto de vista histórico, litúrgico e teológico, e por fim, em 17 de janeiro de 2001, a Congregação para a Doutrina da Fé chegou à conclusão de que pode considerar-se válida a dita anáfora».

Em poucas palavras: a “Igreja Católica” chegou, segundo parece, a uma conclusão diametralmente oposta à que havia chegado no passado, e isso graças a que “estudou longa e pormenorizadamente” uma anáfora “de um ponto de vista histórico, litúrgico e teológico”. Mas vejamos os “argumentos” em que se funda tal giro de cento e oitenta graus.

“Antiga”, sim, mas não forçosamente “íntegra”

Assegura o documento que nos ocupa que «a conclusão a que se chegou se baseia em três argumentos principais.

Em primeiro lugar, a anáfora de Addai e Mari é uma das mais antigas, pois remonta às origens da Igreja. Compôs-se e empregou com o propósito manifesto de celebrar a eucaristia em continuidade plena com a última ceia e segundo a mente da Igreja. Sua validade não se impugnou nunca oficialmente nem no Oriente nem no Ocidente».

Comecemos pela antigüidade:

Não há dúvida de que a anáfora de Addai e Mari é uma das mais antigas e de que remonta às origens da Igreja. Mas, pelo contrário, é demasiado duvidoso que tenha chegado íntegra até nós, tal qual era na antigüidade, nos primeiros tempos da Igreja; ou melhor: é certo que assim não ocorreu, conquanto ainda se discuta sobre quando, como e por que desapareceu da anáfora a fórmula consecratória: por erro dos copistas?; porque o oficiante a recitava de cor?; por reflexo da controvérsia sobre a epiclese, à qual os nestorianos atribuem a eficácia consecratória em vez de atribuí-la às palavras da instituição? O problema continua sem solução devido à ausência de documentos decisivos (vide Dictionnaire de Théologie catholique, verbete Nestorienne / l’ Église, col. 310).

Idêntica incerteza reina quanto à data em que desapareceu desse rito a fórmula consecratória: alguns a põem em torno do século XV; outros, em tempos mais remotos (cf. a obra Eucarestia, de A. Piolanti, ed. 1957, pp. 514-516, e A. Raes Le récit de la institution eucharistique dans l’anaphore chaldéenne et malabare des Apôtres).

A lição das “antigüidades” sem viço

Passemos agora a outro tema, mas sublinhemos antes que também outras anáforas, entre “as mais antigas” e usadas ainda hoje por comunidades cismáticas orientais, apresentam a mesma falta de viço, ora por carecer de fato da fórmula consecratória, ora por contê-la mutilada (vide Dictionnaire de Théologie Catholique, t. XII/ 2º; verbete Orientale / Messe, col. 1452 ss.).

Uma “antiguidade” que nos chegou tão sem viço não atesta, de modo algum, a validade de tais anáforas, mas tão-só os danos substanciais infligidos pelo cisma às comunidades orientais, danos que afetaram até a validade do santo sacrifício do altar. Dizem muito a este respeito aquelas palavras de Dom Cabrol: «Mas o fato mais extraordinário com relação ao relato da instituição nas anáforas orientais é que, conquanto sem modificar seu sentido, algumas liturgias amplificam e mudam as palavras de Nosso Senhor, cuja importância no sacramento eucarístico conhecemos, enquanto outras o fazem de tal modo, que se pode duvidar até da validade da fórmula; outras, ainda, simplesmente as omitem! [Precisamente, é este o caso da anáfora de Addai e Mari]. Com isso se percebe claramente, do ponto de vista dogmático, a necessidade de um magistério que se exerça sobre as liturgias, bem como o dano derivado de deixar entregues à fantasia fórmulas de tanta importância. Deste ponto de vista, já o dissemos, o Ocidente oferece [em contrapartida] uma uniformidade quase completa» (Dictionnaire d’archéologie et de liturgie, t. 1, 2ª parte, col. 1914, Paris, 1907).

A intenção não basta

Igualmente, não pomos em dúvida que a anáfora de Addai e Mari «se compôs e empregou com o propósito manifesto de celebrar a eucaristia [...] segundo a mente da Igreja», como afirma o documento; mas perguntamos: quando a Igreja ensinou que basta a intenção para tornar válidos os sacramentos? O que a Igreja sempre ensinou, pelo contrário, é que para a validade dos sacramentos requerem-se também, além da intenção de fazer o que faz a Igreja, a matéria e a forma (ou fórmula), e que, «se falta um desses elementos, não se realiza o sacramento» (Concílio de Florença, Denz. S., n. 1312). Na anáfora de Addai e Mari falta a forma da eucaristia, constituída pelas palavras com que Cristo a instituiu; daí que não haja missa se a empregam. Mas para dar-se conta de algo tão evidente não era necessário estudar “longa e pormenorizadamente”: bastava simplesmente que os “eruditos” [investigadores] da Congregação para a Fé recordassem o Catecismo de São Pio X, que devem de ter estudado na infância.

Uma afirmação insustentável

A validade da referida anáfora, segue dizendo o documento, «não se impugnou nunca no Oriente nem no Ocidente».

Isso é compreensível para o Oriente, visto quão deterioradas estão as liturgias e as teologias das diversas seitas orientais: em nome de quê preocupar-se com a ausência da fórmula consecratória quando o comum no Oriente é que se atribua a eficácia consecratória principalmente à epiclese ou invocação do Espírito Santo?

Para o Ocidente, em contrapartida, não vale a asserção do documento: a mera inserção na anáfora de Addai e Mari, pelos caldeus reunidos a Roma, da fórmula consecratória constitui condenação oficial dessa mesma anáfora privada das palavras da consagração, tal e qual se usa hoje entre os cismáticos assírios. Por isso não se pode sustentar que a validade da dita anáfora sem a fórmula consecratória “não se impugnou nunca oficialmente” no Ocidente, nem, muito menos, que para impugná-la faltam as impugnações “oficiais”, como se para tal não bastasse a simples fé católica, que ensina serem as palavras do Senhor «a forma verdadeira e única do sacramento da eucaristia» (v. Eucarestia, cit., p. 438): «A forma da eucaristia são as palavras com que o Senhor consagrou este sacramento, pois o sacerdote consagra este sacramento falando em nome de Cristo» (Concílio de Florença, Decreto para os armêniosDenzinger 698).

Um segundo “argumento” que não prova nada

E eis o segundo “argumento” aduzido pelo documento:

«Em segundo lugar, a Igreja Católica reconhece a igreja assíria do Oriente [nestoriana e cismática] como autêntica igreja particular [sic] fundada na fé ortodoxa [sic] e na sucessão apostólica [sic]. A igreja assíria do Oriente preservou também a fé plena eucarística não só na presença de Nosso Senhor sob as espécies de pão e vinho, mas ademais no caráter sacrifical da eucaristia. Daí que na igreja assíria do Oriente, conquanto não goze esta de comunhão plena [sic] com a Igreja Católica, se achem “verdadeiros sacramentos em virtude da sucessão apostólica, sobretudo o sacerdócio e a eucaristia” (Unitatis Redintegratio, nº 15)».

Condensam-se no parágrafo anterior todas os desvios eclesiológicos da “doutrina ecumênica” a respeito da doutrina constante da Igreja: promove-se uma seita cismática ao plano de “autêntica igreja particular”, e declara-se que uma seita nestoriana é “fundada na fé ortodoxa” (a Declaração comum cristológica, a que faz referência o documento, resolveu, segundo se admite, nada menos que «o problema dogmático principal», mas não todos os problemas dogmáticos); reconhece-se a “sucessão apostólica” como alicerce de uma seita que não tem continuidade doutrinal com os Apóstolos nem jurisdição legítima, dado que esta «vem aos bispos unicamente através do Romano Pontífice» (Pio XII, Ad Apostolorum Principia); declara-se que dispõe de “verdadeiros sacramentos” uma seita em que dois sacramentos de instituição divina foram substituídos por dois “sacramentos” de instituição humana, e cuja eucaristia carece de validade por causa de um cânon privado do essencial (vide Dict. de Th. Cath., verbete Nestorienne / l’Eglise).

Para todos estes pontos remetemos à extensa refutação publicada em sì sì no no (nº 105 e 106 de março e abril de 2001, edição espanhola – cujo primeiro artigo corresponde à edição portuguesa nº 100 de agosto de 2001, pp. 5 a 10), a propósito da Declaração Dominus Iesus. Aqui nos importa agora fazer notar que, semelhantemente ao primeiro, tampouco este segundo “argumento” prova absolutamente nada a favor da validade do rito celebrado com a anáfora mutilada de Addai e Mari.

É duvidoso e ainda controverso que a “igreja assíria do Oriente” tenha “preservado a fé plena eucarística na presença de Nosso Senhor sob as espécies de pão e vinho”, razão por que para resolver uma questão que divide os investigadores dignos desse nome (v. Eucarestia, cit., de A. Piolanti, pp. 512-513, com as notas correspondentes) não basta escolher, de maneira tão simplista, a tese mais cômoda para o “ecumenismo”. Seja como for, é certo que os cismáticos assírios negam a transubstanciação, à imitação de Nestório (a cuja reabilitação se declara favorável Walter Kasper em Gesù il Cristo, o mesmo Kasper que, veja-se que casualidade, é o presidente atual do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos). E, ainda que fosse verdade que os assírios cressem que a eucaristia constitui um sacrifício verdadeiro que renova de maneira incruenta o sacrifício da cruz, não o seria menos que, na prática, tal fé “carece de objeto” durante aquela parte do ano, a mais larga por certo, em que sua liturgia prescreve o uso da anáfora mutilada de Addai e Mari. Com efeito, a mera fé, por mais “plena” que seja, na presença real e no caráter sacrifical da eucaristia não basta para produzir o sacramento da eucaristia quando no rito falte a fórmula da consagração. Na própria Igreja Católica não há missa quando um sacerdote omite a fórmula da consagração, não há eucaristia válida, nem basta para tal que haja a fé realmente “plena” que a Igreja Católica professa na presença real e no caráter sacrifical da eucaristia.

Um “argumento” no qual nem sequer crê o mesmo documento

Terceiro argumento do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos«Por fim, as palavras da instituição eucarística estão presentes de fato na anáfora de Addai e Mari, não de modo coerente e ad litteram, mas de maneira eucológica e disseminada; quer dizer: vão insertas em preces sucessivas de ação de graças, louvor e intercessão».

Seria fácil apresentar o texto completo da anáfora de Addai e Mari, tomando-o de várias fontes, mas não é necessário, a partir do momento em que no artigo Admissão à eucaristia em situação de necessidade pastoral, que acompanha o documento com «o objetivo de esclarecer o contexto, o conteúdo e a aplicação prática de tal disposição», o próprio Osservatore Romano nos oferece as “orações sucessivas” em cujo seio deveria figurar, conquanto de fato brilhe por sua ausência, a fórmula da consagração, orações nas quais, segundo a Congregação para a Fé, “estão presentes de fato”, se bem que “disseminadas”, as “palavras da instituição eucarística” de maneira que constituem um «quase-relato [sic] da instituição eucarística». Aqui vão as preces em questão:

— «Tu, Senhor meu, por tuas muitas e inefáveis misericórdias, lembra-te com complacência de todos os padres retos e justos que acharam graça perante teus olhos, na memória do corpo e sangue de teu Cristo, que te oferecemos no altar puro e santo, como nos ensinaste»;

— «Conheçam-te todos os habitantes da terra [...] e também nós, meu Senhor, teus pequenos servos, fracos e míseros, que nos achamos reunidos em tua presença, recebemos de ti por tradição o exemplo que nos deste, alegrando-nos, glorificando, exaltando, recordando e celebrando este mistério grande e terrível da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo»;

— «Venha teu Espírito Santo, meu Senhor, e repouse nesta oferenda de teus servos bendizendo-a e santificando-a, para que nos traga, Senhor meu, a remissão das dívidas, o perdão dos pecados, uma grande esperança de ressuscitar da morte e a vida nova no reino dos céus, em companhia de todos os que acharam graça a teus olhos ao celebrar este mistério grande e terrível da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo».

As ditas preces pressupõem claramente a consagração e atestam, portanto, que esta figurava outrora na anáfora de Addai e Mari, mas por mais que o leitor as leia e releia, como fizemos nós, não encontrará nelas, nem sequer “disseminadas”, as palavras da consagração: “Este é o meu corpo”; “Este é o meu sangue”. Por isso não se compreende que o artigo de L’Osservatore Romano chegue a esta conclusão: «Desta maneira, as palavras da instituição não faltam [sic!] na anáfora de Addai e Mari, mas as menciona explicitamente [sic] conquanto estejam disseminadas [?] pelas passagens mais importantes da anáfora».

Porventura devemos achar nesta anáfora o que não há, só porque assim o quer o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos? Certamente não. A fé e a obediência não exigem renunciar à reta razão. Os fatos são fatos, e a honestidade intelectual requer que o pensamento se conforme à realidade (apesar dos “neoteólogos”, os quais pretendem antes adaptar a seu próprio pensamento a realidade e a razão dos demais).

Por outro lado, o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos mostra que não crê nem pouco nem muito em suas próprias afirmações, dado que recomenda o seguinte no nº 3 do mesmo documento: «quando os fiéis caldeus [católicos] participarem em uma celebração assíria [nestoriana e cismática] da santa eucaristia, inste-se à vera [sic] o ministro assírio a introduzir as palavras da instituição na anáfora de Addai e Mari». E por que diabos se haveria que instar a isso “à vera” se não fosse porque «o rito nestoriano se serve para a eucaristia, comumente, de uma anáfora que carece do essencial»? (v. Dict. de Th. Cath., verbete Orientale / Messe, col. 1459). Assim, pois, nem sequer a Congregação para a Fé nem o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos crêem, a despeito da fé “plena” da Igreja Católica, que o rito romano sem a fórmula da consagração seja suficiente para celebrar validamente a santa missa, ainda que se trate do Pange Lingua com seu “quase-relato” da instituição eucarística.

Documento vergonhoso

Com este documento “ecumênico” se autoriza e estimula os fiéis católicos a participar ativamente em atos cultuais de hereges e cismáticos (communicatio in sacris), conquanto o proíba o direito divino natural e positivo: haereticum hominem devita [ao herege evita-o] (Tit 3, 10). Por respeito ao dito direito divino, a Igreja nunca admitiu casos de “necessidade” neste campo: veja-se o código de Direito Canônico pio-beneditino, cân. 1258 § 1, e o Decreto do Santo Oficio de 7 de agosto de 1704, o qual precisa que «um católico não deve assistir à missa de um sacerdote herege ou cismático, ainda no caso de que, urgindo o preceito dos dias festivos, tenha de ficar sem missa para assistir» (Enciclopedia Cattolica, verbeteComunicazione nelle cose sacre, col. 118).

Ademais, com este documento “ecumênico” se autoriza os fiéis, conquanto se careça de poder para dar-lhes tal permissão, a que violem o direito divino participando em uma “missa” só de nome, por carecer da fórmula consecratória, de modo que se torna irrisória a afirmação segundo a qual assim «os fiéis caldeus católicos [...] podem receber a santa comunhão [?] em uma celebração assíria da santa eucaristia» (L’Osservatore Romano cit., Admissão à eucaristia..., artigo ilustrativo cit.).

Para rematar, o referido documento dá permissão, em razão de sua reciprocidade, à “intercomunhão” com hereges e cismáticos, vedada até agora, ao menos oficialmente. Com efeito, também aos “assírios” autorizam-nos a receber a santa comunhão (mas esta real), em caso de necessidade, em uma celebração “caldéia”, quer dizer, católica.

Não cremos errar ao dizer que este documento cobrirá de perpétua vergonha a história da Congregação para a Fé, e que servirá para demonstrar que o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos promove, em verdade, a unidade dos cristãos com os hereges e cismáticos na «ruína comum» (Pio XII, Humani Generis).

 

Nota do tradutor:

(1) No que diz respeito à liturgia da igreja caldéia, «esta liturgia está em uso entre os cristãos da Mesopotâmia, Pérsia e Malabar, e vem da liturgia primitiva, em uma forma especial do oriente sírio. Seu antigo centro foi Edessa.

Esta parte da Igreja caiu no nestorianismo no século V. Muitos de seus membros continuam sendo nestorianos, enquanto outros, desde 1551, se tornaram católicos. A estes se chama caldeus na Mesopotâmia e na Pérsia, e malabarenses na costa de Malabar, na Índia. Tanto os católicos como os dissidentes deste rito seguem a antiga liturgia dos Santos Addai e Mari. Todos, menos os de Malabar, usam duas anáforas nos domingos e dias de festa, desde o Advento até o Domingo de Ramos e em outros cinco dias do ano» (J. B. Carol e outros, Mariologia, Madrid: B. A. C., 1964, p. 229). Naturalmente, os católicos caldeus usam a liturgia de Addai e Mari uma vez completada, como se viu no artigo.

 

(Revista Sim Sim Não Não, no. 110)

 

À margem da polêmica renovada sobre o missal de Paulo VI

Agosto 26, 2018 escrito por admin

A revista paulina para "agentes de pastoral" (Vita pastorale, no. 6/1997), na rubrica Cartas recebidas, publica uma carta (verdadeira?) dum leitor alarmado, que pede à revista paulina uma "resposta tranqüilizadora" a respeito das declarações do cardeal Ratzinger na sua autobiografia (Minha vida -- pp. 105-115) "sobre o trágico erro cometido por Paulo VI com a interdição do uso do Missa de Pio V e a aprovação do "novo" Missa que teria rompido com a tradição litúrgica da Igreja"

Rinaldo Falsini o.f.m. (conselheiro da Congregação para o Culto Divino) escreve, entre outras coisas: "Paulo VI teve de abolir o uso do Missal de Pio V [...], reduzido a um filete d´água quase seco, incapaz de dessedentar e de nutrir a fé e a piedade do povo cristão".

O Ordo Missae, chamado de Missa de São Pio V, um filete de água quase seco? E que dizer então do mini-Ordo de Paulo VI? E por qual mágica o rito de São Pio V se tornaria "incapaz de dessedentar e de nutrir a fé e a piedade do povo cristão", após ter dessedentado e nutrido notavelmente, durante séculos e séculos, inclusive os Santos hoje canonizados? Porque o Missal dito de São Pio V não é absolutamente de São Pio V: é o rito romano tradicional, ou seja, a Missa tal qual foi substancialmente celebrada em Roma desde os tempos apostólicos, mesmo se foi lentamente enriquecida (e não bruscamente empobrecida) de ritos e orações (v. Enciclopédia Cattolica verbete Missa col. 792 seg.).
  
O cardeal Ratzinger, por outro lado, explica bem na sua autobiografia: "eu ficava estupefato pela interdição do antigo missal, no momento que "jamais se tinha verificado uma coisa semelhante em toda a história da liturgia. Deram a impressão de que tudo isto era absolutamente normal. O missal precedente tinha sido composto por Pio V em 1570, em seguida ao Concílio de Trento; era portanto normal que, após quatrocentos anos e um novo Concílio, um novo papa publicasse um novo Missal. Mas a verdade histórica é diferente. Pio V se limitara a fazer elaborar de novo o missal romano então em uso, como no decurso da vida da história isto havia sempre sucedido no transcorrer os séculos. E muitos dos seus sucessores, do mesmo modo que ele, tinham elaborado novamente este missal, sem jamais opor um missal a um outro. Tratava-se sempre dum processo contínuo, a continuidade nunca era destruída. Um missal de Pio que teria sido criado por ele não existe. Há somente nova elaboração ordenada por ele, como fase dum longo processo de crescimento histórico.
   
"O fato novo, após o concílio de Trento, foi de outra natureza: a irrupção da reforma protestante se fez, sobretudo, sob a modalidade de "reformas" litúrgicas [...] tão bem que os limites entre o que era ainda católico e o que não, eram freqüentemente difíceis de definir. Nesta situação de confusão, tornada possível pela ausência de normas litúrgicas e pelo pluralismo litúrgico herdado da Idade Média, o Papa decidiu que o Missale Romanum, o texto litúrgico da cidade de Roma, enquanto certamente católico, devia ser introduzido em toda a parte onde não se pudesse apelar para uma liturgia que remontasse pelo menos a dois séculos antes. Lá onde isto se verificava, s epodia manter a liturgia precedente, dado que o seu caráter católico podia ser considerado como certo". (J. Ratzinger, La mia vitta - "Minha vida" - pp. 111-112, os negritos são nossos).

Portanto, São Pio V não fez nada mais do que estender a todo o Ocidente a Missa romana tradicional como barreira contra o protestantismo. Mas Falsini (Vita Pastorale) escreve: "Pio V aboliu todos os Missais que não datavam de 200 anos. Paulo VI teve de [sic] abolir o uso do Missal de Pio V, tanto mais por ser totalmente inadequado às finalidades pastorais do Concílio e ainda porque o conteúdo do Eucológio [exato! somente o conteúdo] e a estrutura [somente o esqueleto] da celebração se fundam no novo". A comparação entre São Pio V e Paulo VI não subsiste.
  
Paulo VI "teve de" abolir o rito romano tradicional porque as autodenominadas finalidades "pastorais" do Concílio não se referiam, como deveriam, aos católicos, mas aos... protestantes. Sem oposição ao Breve exame crítico dos cardeais Ottaviani e Bacci, que denunciaram no Novus Ordo de Paulo VI um "impressionante afastamento da teologica católica da Santa Missa", citaremos aqui uma fonte ainda mais autorizada e insuspeita: "A oração da Igreja não deve ser um estorvo para ninguém" escrevia no Osservatore Romano de 19 de maio de 1965 Mons. Bugnini, e, como se não fosse inevitável que a "oração da Igreja" choque aqueles que não têm a fé da Igreja, ele continuava dizendo ser portanto necessário "remover todas as pedras que pudessem constituir mesmo uma sombra de risco de obstáculo ou [até] de desagrado para os nossos irmãos separados". E o Osservatore Romano de 13 de outubro de 1967 anunciava com satisfação que a operação poderia ser considerada como bem sucedida; "a reforma litúrgica deu um passo notável para a frente [sic!] e houve uma aproximação das formas da Igreja luterana". Portanto, a comparação de Falsini não é válida; São Pio V aboliu, não o rito romano tradicional, mas todos os outros ritos que não remontavam a 200 anos e ele os aboliu por estarem poluídos de protestantismo, ou ao menos suspeitos de infiltrações protestantes, estendendo a todo o Ocidente o Missal Romano, porque "certamente católico". Paulo VI, ao contrário, aboliu o rito romano tradicional, e o fez porque ste era muito católico, promulgando um novo missal protestantizado. A diferença não é pequena.
  
A seguir, que Paulo VI tenha realmente abolido o uso do Missal de Pio V, fica ainda por demonstrar, como também cabe totalmente demonstrar se ele tinha o direito de abolir o rito mais venerável da Igreja latina, e isto sem outro motivo que o de agradar aos protestantes.
  
Na constituição Missale Romanum de Paulo VI, de fato, não se lê a fórmula solene abrogatória e imperativa que se lê na Quo Primum de São Pio V (v. Sim Sim Não Não, ano I, no. 9, p. 5), mas simplesmente:

 

"Ad extremum ex iis quae hactenus de novo Missali Romano exposuimus quiddam nunc cogere et efficere placet" que mesmo um aluno aplicado do liceu, ajudado por um bom dicionário, é capaz de traduzir: "Enfim, do que expusemos até agora sobre o novo Missal nos apraz tirar algumas conclusões".
  
"Falsários" interessados (cf. uma carta do conhecido latinista prof. Heitor Paratore a Luís Salleron) apressaram-se entretanto a traduzir muito livremente: "Enfim queremos dar força de lei [sic] ao [sic] que expusemos até agora sobre o novo Missal Romano" (e assim de maneira mais ou menos equivalente em todas as outras línguas); tradução que absolutamente não corresponde ao texto latino (v. Sì Sì No No ano II, no. 4, p. 2 Uma notinha filológica à margem de algumas traduções da "Missale Romanum" de Paulo VI).
  
De resto, ficou tão pouco claro que Paulo VI, ao promulgar o Novus Ordo, tenha abolido o uso do Missal de São Pio V, que chegaram interpelações à Santa Sé do mundo inteiro sobre esse assunto, como atesta um dos principais artífices do Novus Ordo Missae, Mons. Aníbal Bugnini em La riforma liturgica (CLV - Edizioni Liturgiche, Roma, 1983).
  
É ainda mais duvidoso que Paulo VI tivesse o direito de abolir um rito essencialmente de origem apostólica, e isto sem outro motivo além do de agradar aos protestantes. Na Santa Igreja de Deus, menos ainda que alhures, o direito não se identifica com o arbítrio. Donde a questão posta por um perito em liturgia (não "lefebvrista") Mons. Klaus Gamber, diretor, na época (1979) do Instituto das Ciências Litúrgicas de Ratisbona e membro honorário da Academia Pontificia Litúrgica de Roma: "O Papa tem o direito de mudar um rito que remonta à Tradição Apostólica?" (A reforma da Liturgia Romana - antecedentes e problemática). A história -- escreve ele -- nos diz que jamais qualquer papa o fez: "as mudanças efetuadas no Missal Romano, no decurso de quase 1400 anos não afetaram o rito da Missa: tratou-se, pelo contrário, apenas de um enriquecimento com o acréscimo de Festas, Próprios de Missas e de simples orações" (ibid). E hoje o cardeal Ratzinger lhe faz eco: "jamais se verificou uma coisa semelhante em toda a história da liturgia" (La mia vita cit).
  
Para encontrar algo de semelhante à "reforma litúrgica" de Paulo VI, deve-se sair do domínio católico e, então, encontrar um precedente, certamente não honroso para o papa Montini, na "reforma litúrgica" de Lutero, que "destruiu a Missa romana, conservando algumas formas exteriores", inclusive o canto gregoriano (K. Gamber, loc. cit). Mesmo se "o conteúdo" e o esqueleto -- perdão! -- "a estrutura" do rito romano tradicional estivessem "fundidos" no novo, isto não seria bastante: "Não basta que algumas partes do antigo Missal se tenham transferido para o novo -- já escrevera Mons. Gamber -- [...] para que se possa falar de continuidade do Rito romano" (op. cit). E hoje o cardeal Ratzinger lhe faz eco: com a "reforma litúrgica" de Paulo VI "acontece alguma coisa a mais" do que uma simples "revisão" do Missal precedente: "desfizeram em pedaços o antigo edifício, e se construiu um outro, mesmo se foi com o material de que se fizera o antigo edifício e utilizando a planta precedente" (La mia vita, p. 112). Estamos assim felizes com poder estar nisto de acordo com o cardeal Prefeito da Congregação da Fé.
  
É certo que Suarez, com outros insignes teólogos, entre os quais Caetano, dá como exemplo de papa cismático um papa que chega "ao ponto de mudar todos os Ritos da Igreja consolidados pela tradição apostólica": "si vellet omnes ecclesiasticas caeremonias apostolica traditione evertere" (De Charitate disput. 12, 1). Portanto Suarez, com os outros insignes teólogos, não reconhece ao papa esta autoridade que Paulo VI, na sua obstinação "ecumênica", se atribuiu assim tão facilmente. E, como quer que seja, é certo que a autoridade do papa, como acima de qualquer outra autoridade na Igreja, existe para edificar e não para demolir.
  
 

Gorgonius

O direito autorizado pelo estado de necessidade

3.12 - O direito autorizado pelo estado de necessidade

• Estado de necessidade na igreja antes do Concílio

Em conclusão, é oportuno deter-se no princípio do direito proveniente do estado de necessidade, princípio cujo sentido poderia, à primeira vista, não ser totalmente claro. O estado de necessidade nos isenta da imputabilidade. Mas, como então faz ele nascer para nós um verdadeiro direito?

Voltemos ao estudo do Prof. May, Legitima defesa - Resistência - Necessidade, lembrado no § 2. 2 deste estudo ("Courrier de Rome', no. 214 de julho agosto de 1999). O Prof. faz notar que o Código de Direito Canônico "não diz o que ele entende" pelo termo "estado de necessidade”; porque ele “deixa à jurisprudência e aos juristas o cuidado de precisar a sua significação”. Do "contexto" das normas, isto é, do seu teor e conteúdo resulta de qualquer maneira que "a necessidade é um estado no qual os bens necessários à vida correm perigo de tal modo que, para dele sair, a violação das leis é inevitável"1.

A "violação das leis" não é gratuita no estado de necessidade, como no caso de um malfeitor, o qual sempre pode escolher não roubar, enganar, mentir, desobedecer, etc.: ela é, ao contrário, "inevitável'; por ser imposta pela necessidade.

A obediência, a observância das leis é certamente um bem: uma coisa boa, um bem em si mesma. Os católicos, em particular, sabem que devem "servare mandata"(guardar os mandamentos - Mt. 19,17), não somente no que concerne ao dogma da fé e à moral, mas também para as normas dos direito positivo da Igreja e da autoridade civil. Entretanto há bens superiores à própria observância: são "os bens necessários à vida”; cujo valor é primordial e essencial. Se há "perigo" de serem lesados esses bens e de ser impedido o usufruto vital deles, então é permitido mesmo violar a norma estabelecida – por exemplo, por meio de uma desobediência para impedir que aquilo aconteça. Uma situação na qual se põem em perigo “os bens necessários à vida” é claramente uma situação excepcional, de necessidade ou de urgência. A importância jurídica de uma situação deste gênero é admitida por todos os sistemas jurídicos evoluídos, sem falar de sua importância do ponto de vista moral 2. Que forma ela pode assumir em relação à Igreja? “Uma situação destas exige na Igreja quando a persistência, a ordem ou a atividade da Igreja são ameaçadas ou lesadas de maneira considerável. Esta ameaça pode concernir sobretudo à doutrina, à liturgia e à disciplina eclesiástica” 3.

A “persistência, ordem ou atividade da Igreja” representam em si mesmas bens fundamentais, porque “necessários à vida” sobrenatural dos fiéis, porque sem a Igreja não há salvação. O bem das almas, portanto, exige, como primeira instância, que a Igreja se mantenha segundo a sua natureza e a intenção do seu Fundador. O sinal principal, sob todos os aspectos, desta manutenção da Igreja, será a sua fidelidade ao depósito da fé. A Igreja é, portanto, o bem que os fiéis não podem perder, por nenhuma razão. Mas, este bem está ameaçado nas suas três formas de existência (“persistência, ordem e atividade”) quando a “doutrina, a liturgia e a disciplina eclesiástica” são atacadas ou entravadas, junta ou separadamente.

Por causa do Vaticano II, as três formas de existência da Igreja – cada uma em si mesma é instrumental relativamente ao bem que é a Igreja, a qual, por sua vez, é também instrumental ao bem representado pela salvação de cada fiel – estas três formas, portanto, entraram em uma crise muito aguda, porque é a doutrina que foi atacada, por causa das novidades conciliares heterodoxas; é a liturgia que foi revolucionada em um sentido ecumênico e protestante; é a disciplina que foi relaxada e perturbada com a introdução de formas democratizantes na hierarquia (a nova colegialidade, os poderes concedidos às conferências episcopais) e nas relações entre hierarquia e fiéis.

O que é extremamente grave é que esta situação não foi causada por influências exteriores; ao contrário, ela se produziu do interior da Igreja, e persiste até hoje graças a membros da hierarquia oficial da Igreja. O perigo que correm os bens da fé e da salvação se produz, portanto, quer pelo que a hierarquia faz e quer que se faça, quer pelo que ela não faz ou não quer que se faça. No primeiro caso temos um uso substancialmente ilícito da autoridade porque se ordena aos fiéis observarem cosias contrárias à fé e à salvação das almas, a começar pelo ecumenismo e pela liberdade de consciência de tipo laicista, com todo o seu cortejo de erros e de infâmias. No segundo caso (desistência de autoridade) temos uma omissão culpável (e portanto moralmente ilícita) da autoridade que não vela pelo depósito da Fé, mas deixa que degenerescências e erros criem raízes na doutrina, liturgia e disciplina. As intervenções corretivas do magistério visam, em geral, limitar os excessos mais visíveis e isto de modo substancialmente suave; elas nunca dão a impressão de que se procura uma mudança efetiva de direção. A única exceção foi representada pela reafirmação da interdição do sacerdócio para as mulheres: uma tomada de posição finalmente clara e firme na defesa do depósito da Fé. Mas, como se diz, uma andorinha não faz verão. A desistência da autoridade perdura, porque ela não quer combater a revolução introduzida pelo Vaticano II, mas unicamente limitar os seus excessos, do mesmo modo que queriam fazer os girondinos em relação aos jacobinos, embora não fossem aqueles menos revolucionários que estes.

Do estado de necessidade nasce o direito de necessidade

Portanto, o estado de necessidade persiste para os sacerdotes e fiéis que ainda têm a peito manter a fé e prover à salvação da sua alma. Eles devem sofrer com as ordens ilícitas e a degenerescência da Igreja, encontrando-se na situação de dever sobrepor a fé à obediência, ou antes, a obediência ao magistério de sempre à exigida pelo magistério atual, corrompido na fé, mesmo se formalmente legítimo 4.

Uma situação desse gênero poderia parecer desesperadora, do ponto de vista de uma ação concreta, capaz de salvaguardar os bens que correm perigo. Mas não é assim quanto ao estado de necessidade, pois este existe objetivamente, encerra em si o seu próprio direito, o direito de agir para proteger um bem vital ameaçado, mesmo se, com este objetivo, se devam violar algumas normas do direito positivo em vigor. A ação realizada em estado de necessidade, portanto, a ação de quem tem o direito de agir deste modo; direito constituído pela própria necessidade. E a quem age exercendo um direito, não se pode, evidentemente, imputar uma sanção.

Daí as palavras do Prof. May: "O estado de necessidade justifica o direito de necessidade”. Produzido pelo estado de necessidade e fundado nele, existe na Igreja "um direito de necessidade”. O Prof. May o define da seguinte maneira: "O direito de necessidade, na Igreja, é a suma das regras jurídicas que estão em vigor quando a continuidade e a atividade da Igreja estão ameaçadas"5. Há, portanto, “regras” em vigor, não por terem sido promulgadas expressamente pela autoridade positiva, mas porque impostas pela natureza das coisas. E a “coisa” aqui é a situação que se criou, a qual ameaça a “continuidade ou a atividade da Igreja”.

O que se deve entender por “continuidade" da Igreja? Por verossimilhança, deve-se entender a continuidade da doutrina e do ensino que não se pode interromper: continuidade não material, mas espiritual ou de conteúdo, continuidade qualitativa. A continuidade material, pelo contrário, e a da atividade da Igreja, que pode ser materialmente interrompida total ou parcialmente, pela perseguição que aflige a Igreja oficial, como aconteceu, por exemplo, na Inglaterra protestante, na França jacobina, nos países comunistas. A continuidade espiritual é a da fidelidade ao dogma, garantida pela Tradição constante do magistério da Igreja.

Quando, na própria doutrina e, portanto, no ensino, se insinuam erros, então a "continuidade da Igreja" está em perigo e ela pode claramente correr o risco de se interromper, mesmo se o erro não constitua o conteúdo específico de todos os atos do magistério oficial. É por isso que é muito importante que tenha havido sempre uma contestação do Vaticano II, em nome da fidelidade ao dogma. Não é importante que esta contestação tenha sido e seja numericamente fraca: o que conta é que, pela sua presença, ela tenha mantido a continuidade da doutrina católica, porque aparece como uma verdade incontestável que os sinais da doutrina autenticamente católica se encontram integralmente nos Seminários da Fraternidade de D. Lefebvre, e só parcialmente na Igreja oficial, de tal modo que eles aí são ineficazes. É por isso que a autoridade vaticana procurou,sempre e de todas as ,maneiras, eliminar Écône; pois sabe que lá brilha e se conserva – pela graça de Deus – esta chama (a Fé de sempre) capaz de destruir todas as heresias; chama que um dia – esperamos não estar muito longe – voltará a arder em cada coração católico. E para a Igreja conciliar, isso será o início do fim.

Aplicação do direito de necessidade ao caso concreto

Ora, é evidente que a ameaça em relação à continuidade da doutrina representada por um ensino oficial cheio de erros, permite a aplicação das "regras" do direito de necessidade. Em outros termos, esta ameaça justifica perfeitamente o católico que, desobedecendo aos mandamentos da autoridade infectada pelo erro, freqüenta os seminários, as organizações, os catecismos mantidos por uma instituição, a Fraternidade Sacerdotal S. Pio X, a qual tem por objetivo próprio prover à gravíssima necessidade produzida na Igreja.

A sucessão lógica dos fatos que justificam a existência e o exercício do direito de necessidade pode então ser representada como segue:

1) o rito de Paulo VI e do Novo "ordo", forjado, em todas as suas partes por uma comissão de peritos com a colaboração efetiva de protestantes heréticos, é ambíguo e teologicamente duvidoso, uma vez que sua confecção foi realizada por instâncias inclusive de hereges e, talvez, até mesmo de não cristãos;

2) em conseqüência disso, este rito representa um grave perigo para a fé de cada um dos católicos;

3) o católico está obrigado (como se o Papa ordenasse a cada um deles) a freqüentar este rito (mesmo não tendo o rito trldentíno sido jamais formalmente ab-rogado), assim como a aceitar todos os decretos do Vaticano II, e adaptar-se ao seu espírito que está na origem da Missa do “Novus Ordo”;

4) mas, as ordens que obrigam a fazer algo que põe em perigo a fé, devem ser consideradas como moralmente ilícitas e juridicamente inválidas (mesmo se formalmente válidas por emanarem de autoridade formalmente legítima).

5) portanto, o fiel se encontra em estado de necessidade grave, pois, os bens primordiais e da salvação da alma são fortemente ameaçados pela ordem de freqüentar um rito que é, em si, perigoso para a fé;

6) o fiel tem o dever moral de defender a fé, a sua e dos outros, segundo a sua capacidade; dever que nos é exigido por Nosso Senhor em pessoa, no Sacramento da confirmação;

7) ao lado deste dever, a reta razão, corroborada pelo uso da Igreja, reconhece um verdadeiro direito de agir para defender a fé (um direito natural reconhecido no C. I.C) criado pela própria necessidade na qual o fiel chegou a encontrar-se;

8) a necessidade de proteger os bens primordiais da fé e da salvação posta em perigo pelas ordens dos próprios pastores, autoriza portanto o fiel a desobedecer à ordem da autoridade oficial de assistir à Missa do "Novus ordo" ou da ou à Missa tridentina com indulto;

9) portanto, a desobediência é legítima porque criada pela necessidade, por que é o exercício do direito decorrente da necessidade;

10) enquanto legítima, a desobediência não é imputável e portanto não punível; 11) enquanto legítima, a desobediência não é, de maneira alguma, cismática.

Um compromisso contraditório

Por que é preciso desobedecer também a ordem de freqüentar a Missa tridentina concedida com indulto, exercendo também o direito que nos atribui a necessidade? Porque, com o indulto se concede a permissão de celebrar e freqüentar a Santa Missa de sempre com a condição de se reconhecer “a legitimidade e a correção doutrinais do missal romano promulgado em 1970 pelo Papa Paulo VI”, missal com o qual se realizou, de modo oficial, o espírito de abertura “ecumênica” do Vaticano II ( ver o § 1 deste estudo).

Trata-se de um compromisso incoerente e contraditório, tanto para os sacerdotes como para os fiéis (mesmo se muitos deles não se dão conta disso). Recusar a ir a essa Missa não significa, portanto, menosprezar a autoridade do Papa, ut summus pontifex, mas desobedecer legitimamente a uma de suas ordens (“se quereis seguir a Missa tridentina, deveis assistir só àquela que eu autorizei como indulto”), porque ele nos impõe a participação de uma função na qual o perigo da fé está presente no reconhecimento exigido, mesmos e for apenas de modo implícito, da “legitimidade e correção doutrinais” do missal de Paulo VI.

“Competência extraordinária” do clero em estado de necessidade

Naturalmente, no que concerne aos sacerdotes, “a suma das regras jurídicas” que constituem o direito de necessidade contém a autorização de realizar uma série inteira (ou suma) de atos capazes, segundo a sua natureza, de defender ou manter os bens gravemente lesados pela interrupção parcial da continuidade da fé e doutrina pela hierarquia atual. O ensino do catecismo, o ensino nos seminários, a ordenação de sacerdotes, a sagração de bispos, expressamente admitida – como se viu – pelo uso da Igreja para as situações de necessidade ou de grave perigo: todos esses atos são manifestações desta “competência jurídica” que, ao lado de “responsabilidade” moral, o estado de necessidade atribui aos sacerdotes. Por meio destes atos se preenche o vácuo criado pela autoridade oficial: “Se um órgão não cumpre as suas funções necessárias ou indispensáveis, os outros órgãos têm o direito e o dever de utilizar o poder que possuem na Igreja, a fim de que a vida da Igreja seja garantida e seu objetivo seja atingido. Se as autoridades eclesiásticas se opõem a isto, a responsabilidade dos outros membros da Igreja cresce, mas a sua competência jurídica cresce igualmente”.

Trata-se de uma competência extraordinária, graças à qual um bispo é autorizado a proceder a ordenações contra a vontade do Papa, e o fiel, a freqüentar a Santa Missa tridentina contra a vontade do Papa, isto é, sem indulto. O caráter extraordinário significa aqui que se pode agir, não somente na ausência de uma vontade declarada da parte da autoridade legítima, mas também em presença de uma vontade de sua parte, que proíbe o ato autorizado pelo estado de necessidade, que se aplica aqui por tratar-se de um ato necessário e indispensável à salvação das almas, como por exemplo, a celebração de uma Missa seguramente católica e a assistência à mesma. Uma tal competência constitui, portanto, o domínio característico e particular do direito de necessidade, requerido pelas circunstâncias.

Se todo direito relacionado com o sujeito resulta de uma autorização para exercer certos poderes, mediante atos determinados; esta autorização não provém aqui de uma norma de direito positivo, mas imediatamente da realidade (: o direito decorre do fato) e mediatamente de uma instância superior à do direito eclesiástico positivo; instância representada pela vontade de Nosso Senhor e que devemos qualificar de normativa. Este direito tem, então, o seu fundamento último na própria constituição divina da Igreja. Além da constituição eclesiástica, não há somente a situação de fato; existe também e sobretudo a constituição divina da Igreja, e é esta última que, definitivamente, autorizou o mandato de Écône e permite a desobediência legítima para com os pastores, total ou parcialmente corrompidos na sua fé.

O direito de necessidade deve, em seguida, respeitar o “princípio de proporcionalidade”. Não se pode reivindicá-lo “senão quando se esgotaram todas as possibilidades de restabelecer uma situação normal apoiando-se sobre o direito positivo”, e se devem utilizar somente medidas “necessárias para restaurar as funções da Igreja”. Os seus limites não são, evidentemente, predeterminados pelas normas, mas estas devem resultar categoricamente da natureza da coisa, ou seja, da necessidade da situação, sem a exceder. O respeito da parte de D. Lefebvre, do “princípio de proporcionalidade”, o seu escrúpulo em ater-se sempre às exigências e competências do direito de necessidade, foi amplamente demonstrado, entre outros, no artigo “Nem cismáticos, nem excomungados”, ao qual reenviamos os leitores. Quando se diz que necessitas non subditur legi (a necessidade não está sujeita à lei), não se quer dizer, contudo, que ela justifique qualquer ação, mas apenas que não se pode ter em conta o direito positivo em vigor, o qual ela é obrigada a violar. E isto a necessidade pode fazer pelo fato de ser autorizada por um direito próprio dela, desta necessidade específica e, portanto, proporcionalmente às exigências manifestadas por ela mesma.

A recusa do pretenso sedevacantismo por parte de D. Lefebvre encontra a sua mais ampla justificação jurídica numa interpretação correta do estado de necessidade: a competência daí decorrente, enquanto é proporcionada à necessidade efetiva, não é tal que permita o seu usuário declarar vago o trono pontifício. De fato, a competência instituída pelo estado de necessidade – por ter relação com a proteção à tutela de bens específicos e determinados – se limita a conferir ao sujeito o direito de dar a conhecer os erros professados e praticados pela hierarquia, os quais põem em perigo estes bens. E, o que é mais importante, confere-lhe também o direito de desobedecer legitimamente às ordens explícitas e implícitas igualmente perigosas para estes bens.

(Causidicus publicado orig. em Sim Sim Não Não)

 

  1. 1. Si Si No No 1988 (XIV) 14 cit. La Tradition "excommuniée” cit., pp. 49-50.
  2. 2. Rudolf v. Jherinq. Lo scopo nel diritto = o fim no direito (1877) (trad. italiana de G. Losano, Turim, 1972, p. 185, com uma importante introdução.
  3. 3. G. May op. cit. in Si Si No No, La Tradition "excommuniée” cit. pp. 15-21. Um quadro impressionante, documentado com a maior precisão, do estado de necessidade que domina a Igreja atual por causa do entibiamento da fé de muitos bispos e, em conseqüência, de suas cumplicidades ativas e passiva com os utramodernistas que a (a Igreja) querem destruir, é apresentado pelo prof. May em Die krise der kirche est eine krise der Bischöfe = A crise da Igreja é uma crise do Episcopado (afirmação do Card. Seper), 119 páginas, Una Voce Korrespondenz, 1987]. Trata-se da versão completa de uma conferência pronunciada em Dusseldorf. A situação não tinha certamente melhorado em 1988, quando D. Lefebvre deveu proceder às sagrações contra a vontade do Papa. Ela não é certamente melhor hoje, em 1999, quando a Igreja é sempre mais devastada pelo ecumenismo galopante que a aflige em todos os níveis.
  4. 4. Nem cismáticos nem excomungados, cit. em La Tradition "excommuniquée”, cit, PP. 15-23 (Publicações Courrier de Rome).
  5. 5. G. May, op. cit., em Si Si No No, cit.

As precisões da tese Murray

3. 11 - As precisões da tese Murray

Tanto rancor para com Dom Marcel Lefebvre, há dez anos dos fatos, e todo um conjunto de acusações sem nenhum fundamento a respeito da Fraternidade: "Ela continuou, entrementes, o seu caminho, comportando-se como uma pequena Igreja paralela, com os seus bispos - houve outra sagração depois da de 1988 - seus sacerdotes, seu tribunal eclesiástico para anular os casamentos"1.

A Fraternidade não é, canonicamente, uma "Igreja paralela", não se considera como tal, não se comporta como tal (...). A sagração de um bispo a 28/07/1991 em Campos, no Brasil, S, Ex.a D. Licínio Rangel, se tornara necessária devido à vasta comunidade brasileira, fiel à Tradição, que ficou sem pastor após a morte de S. Ex.a, D. Antônio de Castro Mayer. Tal sagração foi efetuada segundo a mesma lógica que as de Ecône, utilizando o direito do estado de necessidade, e conferindo, portanto, somente o poder de ordem 2. Estas acusações não

 nos devem espantar. Seria ilusório pensar outra coisa no clima atual de decadência da Igreja e das sociedades outrora católicas. Entretanto ocorreu uma exceção com a tese Murray, aprovada pela Pontifícia Universidade Gregoriana que demonstrou com rigor a injustiça das interpretações deformadas e aberrantes mencionadas acima, procuraremos analisar o ponto essencial delas, tal como foi publicado no resumo de The Latin Mass.

"A sagração de um bispo ― aí lemos ― sem mandato, não pode ser compreendida como um ato intrinsecamente mau, nem mesmo como um ato que implique um prejuízo para as almas, a menos que aí haja circunstâncias particulares que façam aparecer, de modo mais explícito, a natureza do ato. Em nosso caso, ter violado diretamente a vontade expressa do Santo Padre, que não queria a realização das sagrações de Ecône, o que confere a este ato um caráter objetivo particular, abstenção feita aqui dos motivos alegados pelo arcebispo Lefebvre. Esses motivos condicionariam também a natureza do ato em questão, como veremos. O caráter objetivo deste ato é o de uma desobediência de natureza cismática, conforme o julgamento da Autoridade suprema da Igreja. Um ato verdadeiramente cismático tem sempre o caráter de um ato nocivo às almas. Portanto, o arcebispo Lefebvre não se pode limitar a afirmar, "prima facie", que o n° 4 do cânon 1323 [que isenta de pena em caso de necessidade] o libera de toda sanção. É preciso, inicialmente, responder a esta pergunta: Ele pode legitimamente afirmar que existia efetivamente um estado de necessidade?"

Portanto: não estamos diante de um "ato intrinsecamente mau", nem mesmo "prejudicial às almas", a menos que se demonstre que este ato, enquanto praticado contra a vontade expressa do Papa, apresenta um "caráter objetivo particular", a saber, uma "natureza cismática". Mas o Pe. Murray lembra que, para uma avaliação jurídica correta do ato, a "natureza do ato em questão" não resulta somente do julgamento que dele faz a Santa Sé, mas também da avaliação que lhe faz o autor. E este invocou sempre a existência de um grave estado de necessidade para justificar aquele ato. O ponto de vista expresso pelo Pe. Murray parece inteiramente correto à luz do direito, porque, como veremos, para o Código em vigor, a importância jurídica do ato em questão depende da avaliação que dele faz o sujeito, muito mais do que a avaliação da autoridade afetada por sua desobediência. Isto significa ser incorreto partir do julgamento da Santa Sé como regra interpretativa predominante no que concerne à significação jurídica exata do ato, como foi determinado pelo Código do Direito Canônico. Segundo este, ao contrário, deve se considerar como predominante o ponto de vista do sujeito que declara agir em estado de necessidade.

Mas quando se tem um estado de necessidade? Quando, relembra o Pe. Murray, há um "conflito entre um direito subjetivo e uma norma de direito canônico". Mas, este "conflito" não deve ser visto somente no caso de necessidade "ordinária" ou "comum", isto é, quando há perigo de "perder um bem não indispensável a existência". É também estado de necessidade aquele no qual se está constrangido "a agir contra o que está ordenado, para evitar o perigo de um mal que se seguiria da obediência a esta ordem"3.

Portanto: estado de necessidade não somente quando, obedecendo à norma, se corre o risco de perder um bem, mas também de cair em um mal. Em todo o caso, diz-se que o estado de necessidade implica sempre a desobediência a uma norma e, portanto, à vontade do legislador, que pode ser a que já está encarnada na norma do Código ou manifestada sob a forma de um preceito individual com respeito àquele que se sente obrigado a transgredi-lo.

Com estas precisões, convém examinar o critério adotado para estabelecer a existência efetiva do estado de necessidade. Na base do protocolo do acordo de 5 de maio de 1988, continua o Pe. Murray, parecia que a Fraternidade devia obter um bispo sem problemas particulares. "Entretanto ... se pode discutir sempre o apelo ao estado de necessidade, isto depende da necessidade especifica invocada e se ela pode ser descrita como tal para o bem da igreja ou de uma pessoa particular ou de um grupo de sacerdotes e de fiéis leigos que seguem espiritualmente o arcebispo Lefebvre"4. A "tese" Murray não considera a concessão de um bispo feita à Fraternidade como um argumento suficiente para demonstrar a inexistência do estado de necessidade invocada por D. Lefebvre.

O que se deve fazer, ao contrário, do ponto de vista jurídico, é analisar atentamente a relação existente entre a necessidade invocada por D. Lefebvre e o cânon 1323, § 7, que diz, como se viu, não estar submetido a nenhuma pena quem violou a lei ou o mandamento, considerando como presentes, sem culpa de sua parte, algumas das circunstâncias previstas nos pontos 4o e 5o do mesmo cânon, ou ainda nos casos de força maior (entre os quais a necessidade) e a legítima defesa (cf. 3. 5 desse estudo). Como sabemos, o § 7 desse cânon, considera, na prática, a possibilidade de um erro da parte de quem invoca a necessidade, mas se trata de um erro sem falta, de um erro não culpável!

Também nesse caso, o sujeito não deve ser considerado como culpado e há isenção da pena. Mas, por que o Pe. Murray julga necessário examinar a posição de D. Lefebvre à luz do cânon 1323, § 7? Porque a existência do estado de necessidade é contestada pela Santa Sé, a qual fala decididamente de necessidade criada artificialmente e de ato cismático. É preciso, então, ver se este estado foi invocado após um julgamento refletido do Arcebispo francês (cânon 1323, 7o.), ou segundo um julgamento negligente (cânon 1324, 8o), i. é, baseando-se numa análise totalmente conforme às normas expressas e aos princípios do direito.

O encadeamento lógico seguido pelo Pe. Murray parece-nos, portanto, o seguinte: 1) D. Lefebvre apelou para o cânon 1323, 4o, que concede a isenção [da pena] a quem agiu obrigado por um grande medo, mesmo se este é somente relativo, ou então por necessidade, etc, dado que o ato não seja intrinsecamente mau (como mentir, perjurar, etc.) ou prejudicial para as almas (vergat in animarum damnum); 2) a Autoridade Suprema, pelo contrário, conferiu a esse ato um "caráter objetivo particular", o de "uma desobediência de natureza cismática"; 3) um ato cismático é sempre "prejudicial às almas"; 4) se o ato é "prejudicial para as almas", então não se aplica o n° 4 do cânon 1323 [invocado por D. Lefebvre] porque, nesse caso, não se está totalmente isento da pena, mesmo se tiver direito às circunstâncias atenuantes 5.

A apreciação do comportamento do Arcebispo deve, portanto, ser dupla, uma vez que se trata de ver se, em substância, o seu comportamento entra no caso de natureza do cânon 1323, n° 7, segundo o qual ― nós nos repetimos ― se admite como causa isentante de pena um erro inculpável ("sine culpa putavit") na avaliação das circunstâncias, ou no caso do n° 8 do cânon 1324 que, por erro culpável ("pererrorem, exsua tamen culpa") na avaliação das circunstâncias do estado de necessidade invocado, conceda as simples circunstâncias atenuantes (suficientes, contudo, para excluir, corno sabemos, a excomunhão latae sententiae).

Visto isso, é preciso lembrar, logo de inicio, o conceito de "culpável", ou seja, de que modo ela (a culpabilidade) deve ser entendida. Como sabemos, não se trata de falta moral, nem mesmo de dolo, mas de atitude imprudente oriunda de uma falta de diligência. Segundo a doutrina citada em nota pelo Pe. Murray, é suficiente que esta falta não seja "grave"6.

Dito isto, "deve-se atribuir ― pergunta o Pe. Murray ― ao Arcebispo Lefebvre uma atitude gravemente culpável (uma negligência grave) para ter pensado que aí havia um estado de necessidade tal que o autorizasse sagrar bispos? Se a não premeditação é 'omissão da diligência devida' [cânon 1321 § 2 - da diligência devida em relação às circunstâncias, ndr], seria difícil sustentar que o Arcebispo tenha agido sem um certo grau de diligência para chegar à decisão de efetuar as sagrações, decisão baseada no que ele afirmava ser, a seu critério, necessário para o bem da igreja. A Santa Sé declarou que a decisão do arcebispo foi incorreta. Mas isto signifique talvez — pergunta-se — que se lhe deva imputar um comportamento gravemente culpável (culpável porque ele teria formulado o seu julgamento de modo negligente) por ter continuado a manter sua própria apreciação dos fatos? Parece que não"7.

E por que "pareceria que não"? Porque, segundo o que já foi salientado pelo Pe. Murray, o direito em vigor impõe aqui considerar também (e sobretudo) do ponto de vista do sujeito agente: "O que conta não é tanto a maneira segundo a qual a Santa Sé via a situação, mas antes a avaliação subjetiva da pessoa que violou a norma. Se ele deu provas da diligência devida, a ponto de chegar a pensar efetivamente que houve um estado de necessidade que implique o bem da igreja, [D. Lefebvre] pareceria isento de sanções pelas sagrações episcopais, com base no n° 7 do cânon 1323"8.

De fato, pergunta o Pe. Murray, "quem é capaz de julgar se o Arcebispo Lefebvre exerceu ou não a diligência devida para considerar a situação e formar a sua convicção? Já que um julgamento desse gênero concerne ao foro interno, isto é, aos seus pensamentos, então devemos deixá-lo diante de sua consciência, tal qual ela se manifestou nas suas declarações". Portanto, em conclusão, "a apresentação de provas críveis de ter ele dado provas da diligência devida... excluiria do mesmo modo a presunção de culpabilidade"9.

A "tese Murray" afirma, portanto, que, no caso das sagrações de Écône se pode aplicar o cânon 1323, 7°, que exclui toda a sanção a quem creu somente dever agir em estado de necessidade, desde que não tenha havido uma falta grave de diligência de sua parte. Mas, as declarações de D. Lefebvre certamente, não deixam entrever uma falha deste gênero. E não apenas as suas declarações ― acrescentamos ― mas também o seu comportamento, dado que ele consultou várias vezes, diversas pessoas sobre o problema em questão. A "prova crível" da diligência devida, mencionada pela tese Murray parece ter sido dada de todas as maneiras por D. Lefebvre. De resto, o Pe. Murray não diz que não houve esta prova.

No ponto em que nos encontramos, com uma consideração de caráter geral, poder-se-ia perguntar: se o sujeito deu provas da diligência, onde está o erro na apreciação ? Esta diligência não o exclui ? Realmente, o cânon 1323, 7°, não menciona explicitamente o erro, que, contudo, está contido, como possibilidade na fórmula: "sine culpa putavit". "Putavit": creu, julgou. É um julgamento totalmente subjetivo, que pode ou não corresponder aos fatos. Nós cremos que o legislador tenha querido distinguir entre um estado de necessidade objetivamente determinado e um estado de necessidade subjetivamente entendido, defendendo de todas as maneiras a pura convicção de sua existência (cf parte 3. 6, deste estudo).

Um estado de necessidade absolutamente certo é aquele que hoje se reconhece ter havido na época da crise ariana, quando a heresia tinha corrompido a fé de uma parte importante da hierarquia. Este é um fato historicamente certo. Tal como era certo o estado de necessidade da Igreja no tempo de sua perseguição pública, por exemplo, na Inglaterra protestante ou na França revolucionária. Fato igualmente muito certo é o caso da jurisdição supletiva para a salvação de um moribundo. Um estado de necessidade marcado pela crise da fé, e pois da Igreja, será entretanto negado por aqueles cuja fé não é mais boa, por estarem seduzidos pela heresia.

E assim, hoje, todos admitem a crise da fé e a da Igreja, mas quase ninguém ousa tirar dela as conseqüências necessárias diante do prolongamento e agravamento desta crise: ou seja, que as almas se acham em estado de necessidade. Isto significa que aquele que, como D. Lefebvre e D. Mayer, proclamaram o estado de necessidade das almas, fazem parte de uma minoria insignificante e cujo julgamento aparece como sendo unicamente deles, mesmo se está objetivamente fundado na situação efetiva de fato.

Mas esse julgamento, mesmo se considerado errôneo pela maioria (inclusive pela autoridade formalmente legítima) é protegido de todos os modos pelo Código em vigor, contanto que se trate de um julgamento ponderado, sem que seja, enquanto tal, necessariamente exato, porque a aplicação demonstra a boa fé do sujeito, e não a verdade de sua convicção. Naturalmente, o julgamento ponderado pode ser verdadeiro, mesmo se puder apresentar a aparência de erro, ou for o julgamento de uma só pessoa ou de uma minoria contra uma grande maioria. O julgamento ponderado recebe do atual Código a proteção mais completa; o julgamento negligente, ou seja, invalidado por um erro devido à falta do sujeito, recebe uma proteção menor, graças à concessão das circunstâncias atenuantes (que todavia impedem a excomunhão "latae sententiae").

 Esta última vantagem é a visada no cânon 1324, § 1, 8°, citado já muitas vezes, na qual a "tese Murray" se apóia naturalmente. Após ter concluído que não se podia infligir nenhuma sanção a D. Lefebvre e aos quatros bispos por ele sagrados, por causa do cânon 1323, 7o, nosso autor prossegue: "Este cânon [o 1324, § 1, 8o] oferece ao Arcebispo Lefebvre e aos bispos por ele sagrados, talvez o mais válido argumento para sustentar não terem eles sido excomungados... Igualmente, no n° 7 do cânon 1323, há referências às pessoas que violam a norma. O valor legal conferido pelo Código de Direito Canônico a avaliação subjetiva da existência do estado de necessidade torna impossível ― conforme toda probabilidade — a declaração de uma pena "latae sententiae", no caso em que o sujeito transgressor da norma ou do mandamento — tenha isso acontecido ou não por sua falta, mas sem dolo de sua parte — estivesse convencido de que o estado de necessidade exigia ou simplesmente permitia esta violação"'[117], nisto, portanto, consiste a conclusão de caráter geral, perfeitamente fundada no direito positivo em vigor na Igreja. É preciso, naturalmente, que o sujeito tenha agido assim sem malícia ou qualquer espécie de dolo. O julgamento negligente de que se trata no cânon 1324, § 1, 8° é justamente devido e, na prática, sempre, à negligência e não a um dolo.

A Santa Sé, porém, acusou o Arcebispo de má fé e portanto, de uma atitude dolosa. Vejamos, por partes, o que responde o Pe. Murray sobre esse ponto; Se a norma A permite violar a norma B em certas circunstâncias, afirmando a impunidade, a violação da norma B, nestas circunstâncias, deve ser considerada efetivamente como uma violação? Pareceria que não, desde que um ato não pode ser autorizado, e portanto não punível, e ao mesmo tempo proibido. E se não há proibição não pode haver violação. Então a norma B cai e a norma A prevalece, e o ato regulado pela norma B não está sujeita à proibição. Portanto, a sua execução não implica nenhuma violação de liberada e exclui o dolo"10.

O primeiro argumento do Pe. Murray a favor da impossibilidade de acusar D. Lefebvre de dolo, se baseia no fato de que as circunstâncias isentantes (e atenuantes) fazem desaparecer o próprio conceito de violação deliberada da lei com a conseqüente impossibilidade de imputar um dolo, qualquer que seja, ao sujeito agente. De resto ― acrescentamos ― lembre-se de que o violador da lei por causa do estado de necessidade, está convencido de fazê-lo para salvaguardar um bem superior: o objetivo de sua ação não é de violar a lei (o que ele faz contra a sua vontade), mas de proteger este bem, e tal objetivo mostra a ausência do que comumente se entende por dolo.

Um verdadeiro erro de direito

O segundo argumento do Pe. Murray é o seguinte: "Ademais, se o julgamento sobre a possibilidade de aplicar a norma A não é reservado pela lei ao superior eclesiástico, mas, ao contrário, deixado à apreciação individual da pessoa que viola a norma B, então o apelo desta última à norma A [que a isenta de pena - ndr] é legítima, e não pode ser simplesmente negada pelo superior. O Código deu à pessoa em questão a capacidade, se não o direito explícito, de julgar as circunstâncias e, em conseqüência disso, ele atenua em favor do sujeito a sanção prevista para a violação da norma B ou o dispensa completamente desta. E isto, logo depois da qualificação jurídica conferida pela lei ao seu apelo pessoal devido a uma circunstância de força maior, como, por exemplo, a necessidade. Se esta hipótese é exata, então o Arcebispo Lefebvre não pode ser acusado de ter agido com uma intenção fraudulenta.

"Pode-se afirmar, de modo inteiramente plausível, que o seu objetivo não era transgredir a lei, mas antes de agir ― mantendo-se no quadro do direito ― de um modo que, no seu parecer, teria assegurado o bem da Igreja, graças a uma transgressão inevitável do Código, cânon 1382 [que já citamos e que prevê a excomunhão "latae sententiae" para a sagração sem mandato - ndr], dadas as circunstâncias extraordinárias que ele afirmava existir na vida da Igreja. Esta intenção, de realizar o bem da Igreja, desobedecendo ao Sumo Pontífice nesta circunstância particular, mas sem recusar a autoridade do Papa e a submissão devida a este [enquanto Papa - ndr] excluiria, de sua parte, toda a intenção específica de perpetrar um ato cismático.

 "Se o arcebispo Lefebvre creu, mesmo por imprudência, dever agir em conseqüência do estado de necessidade da igreja, ele não está — de qualquer modo que seja — sujeito a uma excomunhão 'latae sententiae' do cânon 1324 , § 3 [já citado, que exclui as penas "latae sententiae" se ocorrem as circunstâncias isentantes e atenuantes - ndr]. E o Código de Direito Canônico não presume o dolo, mas a imputabilidade (cânon 1321, § 3). Mas, essa presunção cai "se surge outra" (nisi aliud apareat). Uma ocorrência deste gênero, que implica no mínimo uma falta possível de imputabilidade, pode razoavelmente ser sustentada nesta questão"11.

Este ponto da "tese Murray" me parece muito importante. Ele põe em relevo como o Código de Direito Canônico (no cânon 1321), ao infligir uma sanção, presume "a imputabilidade grave por dolo ou falta". A violação externa da lei ou do mandamento deve ser referida a um sujeito responsável. Uma vez praticada a violação da lei "presume-se a imputabilidade, se não se manifesta outra coisa"12. E no caso que nos interessa, essa "outra coisa" apareceu, fazendo desaparecer a imputabilidade, com uma probabilidade razoável, segundo o Pe. Murray. Mas, por que essa observação é tão importante? Porque nos lembra que, para o CDC, o que deve ser presumido, no caso de uma violação da lei, é a imputabilidade, não o dolo: e este deve ser demonstrado. Ao contrário, na condenação infligida a D. Lefebvre, a autoridade suprema procedeu de modo exatamente oposto: ela presumiu o dolo, sem antes se assegurar da existência efetiva da imputabilidade. Mas esta última estava excluída ou eliminada com base nos cânones 1323, 7° e 1324, § 1, 8° e, portanto, não se podia presumir o dolo!

Portanto, a Santa Sé caiu num verdadeiro erro de direito, a ponto de permitir considerar inválida a declaração de excomunhão contra D. Lefebvre. De fato, o Pe. Murray prossegue assim: "A autoridade competente deveria ter mantido a necessidade de estabelecer primeiramente a imputabilidade do Arcebispo Lefebvre, e, em seguida, a sua intenção dolosa ao efetuar as sagrações episcopais: é o que deveria ter feito, antes de declarar a pena latae sententiae'. E desde o momento em que estes dois fatos [a imputabilidade e o dolo - ndr] não foram estabelecidos com a clareza requerida pelo direito, há então motivo bem fundado e razoável para contestar a validade da declaração de excomunhão latae sententiae' contra o Arcebispo Lefebvre e os outros bispos implicados... A sentença administrativa da Santa Sé parece não ter levado em conta, como deveria, a lei penal revisada pelo novo C.D.C.; especialmente no que concerne às circunstâncias isentantes e atenuantes em relação às penas 'latae sententiae'. Presumiu-se o dolo da parte de D. Lefebvre e dos bispos sagrados por ele. Suas convicções pessoais sobre o estado de necessidade proclamado por eles foram simplesmente rejeitadas por um comunicado anônimo, quando o CDC afirma que praticar um ato com esta convicção, mesmo quando ela é errônea, impede de incorrer em uma 'pena latae sententiae'"13.

Portanto, conforme o Pe. Murray, houve aqui também uma violação possível do cânon 220 do CDC, que protege o "bom nome", a "boa reputação" de uma pessoa por ter sido rotulada como "cismática", quando, pelo contrário, há motivo fundado de considerar que essa pessoa não incorreu na sanção. Tal atribuição arbitrária "importaria portanto uma violação do direito fundamentai desta pessoa à reputação, direito protegido pelo Código"14.

Uma "concessão" inexistente e sem influência

Tal é, portanto, nos seus pontos essenciais, a "tese Murray": tese absolutamente correta sob o ponto de vista do direito e que tem o mérito de pôr pingos em numerosos "is", patenteando a ilegalidade do procedimento seguido. A retratação parcial que o autor dela fez a seguir, nos parece francamente incompreensível".. Deve-se notar que essa tese vale pelo que ela é, como foi aprovada pela Universidade Gregoriana [do Papa], e não pelas atenuações que o autor lhe fez posteriormente sob pressão dos progressistas. (No entanto, essas atenuações não afetam o valor de sua lógica interna e coerência com o Código de Direito Canônico - ndr).

Importa sublinhar, contudo, um último ponto, em relação à nomeação de um bispo, aparentemente concedido pela Santa Sé à Fraternidade, concessão que, na "tese Murray", é redimensionada a seu justo valor, porque, na realidade, sem influência quanto à existência e à perpetuação do estado de necessidade: importa-nos sublinhar (o que muito poucos observadores acentuaram ) que se tratava realmente de uma condição sujeita a penosas condições. O que escreveu, de fato, o cardeal Ratzinger na sua carta de 30/5/1988, na qual ele a anunciou? Que o Papa se declarava "disposto" a nomear um bispo para a Fraternidade, mas com condições bem precisas: 1) Ele pedia uma ampliação do grupo dos candidatos propostos, a fim de não ser condicionado na sua liberdade de escolha 15. Nisso havia uma exigência totalmente nova que se fazia valer; e que, levando, de fato, a um prolongamento de tempo, dava a impressão de tirar com uma mão o que se concedia com a outra (a carta de 15 de agosto); 2) Ele exigia uma carta pedindo perdão e manifestando submissão 16, exigência que já havia sido feita previamente, mas que agora se aumentava com um novo conteúdo: D. Lefebvre deveria agora tomar publicamente o compromisso de não fazer a anunciada sagração dos três bispos e de se entregar a todas as decisões do Santo Padre a este respeito, Esta última exigência parecia indicar uma falta de confiança para com o Arcebispo.

Os que afirmam ter a Santa Sé concedido sic e simpliciter a data de 15 de agosto para a ordenação do bispo tradicionalista estão equivocados. O Papa absolutamente nada havia concedido; ele se dizia disposto a conceder, mas apenas com certas condições ― uma autêntica corda no pescoço de D. Lefebvre ― condições que continham mesmo conseqüências humilhantes para ele sem documentação nova e sem carta, não haveria sagração no dia 15 de agosto. Condições desse gênero deixavam claramente entender o que Roma entendia por "reconciliação": uma recuperação pode ser progressiva, mas que, ao mesmo tempo, se assemelhava, de modo impressionante, a uma r e n d i ç ã o sem condições. Uma "concessão" desse gênero não era feita para convencer D. Lefebvre do fim do estado de necessidade na Igreja e para a Fraternidade. De modo inteiramente coerente, e com uma avaliação, a nosso ver, exata das circunstâncias, sob todos os aspectos, ele afirmou, na famosa carta de 02/06/1988 ao Papa, que o "momento de uma colaboração franca e eficaz" com Roma, "ainda não tinha chegado". Ele devia, portanto, prosseguir o seu caminho: a perpetuação do estado de necessidade das almas lhe impunha isto 17.

  1. 1. A comissão canônica da Fraternidade que emite, a pedido, pareceres sobre a validade ou não dos casamentos, responde à mesma lógica de jurisdição de suplência em casos de necessidade para o bem das almas. Ela se exerce, portanto, ad actum, ou seja, para cada caso individualmente. Não há, de modo algum, a manifestação da vontade de um órgão permanente. Ver sobre este ponto Respuesta a algunas preguntas em Roma Aeterna/ Revista de la Tradition católica, 119-120, agosto de 1991, pp. 11-14.
  2. 2. Enquête, pp. 48-49.
  3. 3. The Latin Mass, cit. p. 59. O título literal da tese de doutorado do Pe. Murray é: O estado canônico dos fiéis associados ao combate do Arcebispo Lefebvre e à Fraternidade Sacerdotal S. Pio X; estão excomungados enquanto cismáticos?" A resposta é negativa. Os fiéis freqüentadores das missas celebradas pelos sacerdotes da Fraternidade não praticam nenhum ato cismático, não praticam nenhum cisma (é também porque, como se verá, para o Pe. Murray, não se pode falar de cisma formal, enquanto que se deve considerar como inválida a excomunhão "latae sententiae"). A tese Murray consagra uma análise detalhada para repelir a hipótese de cisma para os fiéis e sacerdotes (cf. The Latin Mass, cit. pp. 55-58. Este resumo da tese, com amplos extratos do texto, é de Steven. Terenzio, op. cit. 55-61, em três colunas. É precedido de uma longa entrevista do Pe. Murray. Limitamos aqui a tomar em consideração o que nos parece ser o núcleo essencial da tese.
  4. 4. Op. cit., ibid
  5. 5. Ibid.
  6. 6. Comentário ao novo Código de Direito Canônico.
  7. 7. The Latin Mass, cit., p. 61, nota no. 10.
  8. 8. Ibid.
  9. 9. Ibid.
  10. 10. Ibid.
  11. 11. Ibid.
  12. 12. Ibid.
  13. 13. Op. cit. p. 41-42.
  14. 14. Ibid.
  15. 15. Cor Unum, 1988, n° 30.
  16. 16. Ibid.
  17. 17. Op. cit, pp. 41-42.

O cisma imaginário

3. 10 - O cisma imaginário

o cisma declarado contra D. Lefebvre não se enquadra, portanto, em nenhuma categoria conhecida e admitida de cisma (Cf. Sim Sim Não Não, último número - maio/2000) Não é o cisma em sentido formal, nem pode ser em sentido virtual. O juízo de condenação da Santa Sé está fundado sobre uma pseudo categoria de cisma tanto no plano teológico como no jurídico. Encontramo-nos diante de uma autêntica monstruosidade.

Mas, não existe arbítrio que não procure dar-se um simulacro de bom direito, mediante qualquer um arrazoado que pareça ter um fundamento. No nosso caso, qual pode ter sido o raciocínio? Pode haver dois raciocínios no caso. Comecemos pelo primeiro.

1) Visto que, com base no novo conceito de colegialidade aprovado pelo Vaticano, deve-se considerar que os bispos, no ato da sagração, recebem também, simultaneamente, o poder de jurisdição (C. 375 § 2 de C.l.C. vigente), daí deriva que uma sagração sem mandato seria cismática. De fato, sagrando os bispos sem mandato, o sujeito agente lhes conferiria, ipso facto, sem mandato, também o poder de jurisdição 1. Mas, se se dá também o poder de jurisdição, então há cisma. A malograda colação, por parte de D. Lefebvre, do poder de jurisdição, não teria êxito para evitar objetivamente o cisma. por causa do sugerido no c. 735, § 2, cit.

Este argumento é totalmente inaceitável. Qual é, de fato, a lógica do c. 375, § 2? Este contém duas proposições, uma principal e uma relativa dependente da primeira. A principal enuncia: "Os bispos com a própria sagração episcopal recebem, com o dever de santificar, também os deveres de ensinar e governar"2.

A disputa plurissecular, se no ato da sagração o bispo também recebe, ipso facto, o poder de Jurisdição, parece ter sido resolvido pelo presente ClC em sentido favorável às teses que sustentam a sua recepção automática. Nisto o Código aplicou expressamente as diretivas do Vaticano II, como aparecem na Lumen Gentium, § 21 e no decreto Christus Dominus, § 23 3. O texto do § 21 da Lumen Gentium é literalmente referido pelo Código. Todavia o cânon prossegue com a seguinte proposição relativa, também expressa nos textos do Concilio: "os quais (deveres - ndr) todavia, por sua natureza, não se podem exercer senão na comunhão hierárquica com a Cabeça e os membros do Colégio"4. Portanto, o texto distingue entre os poderes recebidos com a sagração e o seu exercício. É uma distinção tradicional entre a titularidade de um direito (o poder) e o seu exercício. E como se deve atuar este? Isso se deixa a livre determinação do bispo consagrado, se não houver necessidade de algum ato que o autorize? Não, o exercício dos encargos episcopais deve ocorrer "em comunhão hierárquica com a cabeça e com os membros do Colégio”, isto é, em comunhão com o Papa e os membros do Colégio episcopal. Na prática, como foi recordado na nota praevia à Lumen Gentium, esses poderes se podem exercer somente "iuxta normas a suprema auctoritate adprobatas" ("segundo as normas aprovadas pela suprema autoridade"). Isto significa que a comunhão é "hierárquica" e requer, para sua atuação, o respeito das competências garantido pela missio canonica mencionada expressamente pelo § 24 da Lumen Gentium 5.

Aqui não entramos no mérito do conceito semiconciliarista (e portanto errôneo) da colegialidade que o Vaticano II tentou introduzir! 6 No fim do nosso ensaio interessa-nos pôr em relevo o seguinte ponto: se o poder de jurisdição do bispo tem, não obstante, sempre necessidade da "missio canônica” para ser capacitado - missio que efetivamente não foi abolida pelo novo Código - isso significa ser a ''missio'' sempre indispensável para a instituição duma hierarquia. E já que o cisma em sentido formal é, como se viu, a separação com o fim de instituir a hierarquia de uma Igreja paralela, para haver cisma ocorre sempre uma "missio canonica" ilegítima. Com o regime estabelecido pelo Vaticano II foi mudada a qualificação da "missio canônica” de ato que confere um poder (de jurisdição) se tornou ato que confere o exercício de um poder, o qual estaria já intrinsecamente presente no bispo em virtude da sagração. Mas afinal não há nenhuma mudança, porque a "missio" permanece sempre o ato cismático por excelência, porque só ela confere o exercício daquele poder de jurisdição, graças ao qual uma hierarquia paralela se forma. Por isso, faltando tal ato, como no caso das sagrações efetuadas por D. Lefebvre, mesmo sob o ponto de vista do regime vigente,não existe cisma. 7

Abordemos agora o segundo raciocínio possível.

2) As condenações declaradas contra D. Lefebvre salientam como ele, além de ter agido sem mandato, tinha procedido também contra a vontade expressa do Papa, que a 29 de junho de 1988 lhe havia pedido "paternal e firmemente" que adiasse as ordenações. Uma ordenação sem mandato não é necessariamente contra a vontade do Papa. Se existe o estado de necessidade, por cuja causa não é possível obter o mandato, pode-se proceder à sagração confiando no fato de que o Papa aprovará depois da solenidade. Assim aconteceu com os bispos ordenados clandestinamente sob os regimes comunistas.

No caso das sagrações de Ecône verificou-se o fato, aliás raro, de um convite (na realidade uma advertência) do Papa para que não o realizasse, comunicado no dia anterior à data já estabelecida para a cerimônia. Por isso, nos confrontos com D. Lefebvre pesa a dupla acusação de haver agido não só sem a autorização mas também contra a vontade expressa do Papa. O fato de ter agido também contra a vontade expressa do Papa influi na determinação da figura delituosa atribuída ao bispo francês? Não parece adequado. No que respeita à desobediência não parece que, nem mesmo para o CIC, isto constitua um agravante. E realmente, nas comparações da "desobediência" daquele, foi invocado nada menos que o cânon 1382 (citado muitas vezes, que pune a sagração sem mandato). Aqui se pergunta, porém, se o fato de ter agido contra a vontade do Papa poderia ter causado na própria ação um salto de qualidade tal que lhe conferisse a natureza de ato cismático. Este poderia ter sido o "raciocínio". Se se tivesse criado de tal modo uma nova imagem de cisma (mediante a declaração de uma censura ipso iure) que ficaria assim composta ou melhor, constituída de, 1) sagração sem mandato + 2) contra a vontade do Papa. Precisamente uma tal monstruosidade jurídica e teológica foi insinuada no ânimo dos simples fiéis: "desobedeceu a vontade expressa do Papa. portanto é um cismático”':

O fato de que, além da ausência de mandato, tenha havido também uma vontade negativa expressa pela autoridade competente, não muda a qualidade do ato delituoso, que continua sempre um ato de desobediência não cismático por sua própria natureza. Não é sem razão que o Código - isto jamais ficará esquecido - o retoma num cânon bem distinto do que estabelece a pena para o cisma, nem a união entre as duas figuras é possível, fundada noutros cânones, segundo o princípio da interpretação sistemática 8. O que faz a sagração se tornar cismática não é, como deveria desde já ficar claro, a ausência dum mandato, mas a sua conexão com uma missio canonica ilegítima. Nem faz que a ação se torne cismática uma declaração da autoridade competente que, ao lado da ausência de mandato, revele ainda que a vontade de quem o deve conceder é contraria. A presença desta declaração de vontade pode constituir no máximo um agravante para o sujeito desobediente, mas só no foro interno, do ponto de vista moral, uma vez que o CIC não a considera entre as possíveis agravantes (Em todo o caso, poderia considerar-se um agravante quando se tratasse de impor penitências).

No caso de D. Lefebvre, portanto, não cremos que se possa admitir a existência dum agravante deste gênero, uma vez que ele agia em estado de necessidade. O estado de necessidade justifica qualquer agravante deste tipo porque a falta de vontade da autoridade legitima (a qual o Prof Amerio chama desistência sistemática) para executar determinados atos necessários à manutenção da sã doutrina e a salvação das almas, é, em certo sentido, a causa maior da necessidade na qual, um prelado fiel ao dogma chega a encontrar-se (fiel ao dogma e com responsabilidades precisas relativas às almas dos seminaristas, sacerdotes e fiéis). Que a citada falta de vontade na autoridade seja implícita ou não expressa ou se manifeste sob a forma de proibições, é irrelevante no fim da imputação a ser atribuída a D. Lefebvre. Trata-se sempre de simples desobediência, mas efetuada por causa de força maior e por isso não imputável.

Em todo o caso, o fato de que essa se manifeste sob a forma de proibição dum ato em si legitimo e necessário para a salvação das almas não pode ter dado lugar, de modo nenhum, a um novo tipo de cisma, e em sentido formal.

Da circunstância excepcional em que D. Lefebvre deveu agir, mesmo contra a vontade expressa do Papa, querem deduzir a todo o custo, conseqüências indébitas. De fato, quis-se afirmar que o seu ato, adequado àquela circunstância excepcional, não se limitou a violar somente a "lei eclesiástica", mas representou uma "ruptura com a tradição". Isto seria razão porque se deveria considerar "intrinsecamente mau" e por isso, totalmente injustificável. D, Lefebvre ter-se-ia tornado culpado de "ato intrinsecamente mau por uma sagração episcopal contra a vontade do Papa"9. Se essas afirmações correspondessem à verdade, estaríamos em presença de um novo tipo de delito, derivado de uma interpretação completamente nova da categoria dos "atos intrinsecamente maus". Mas, trata-se de uma interpretação insustentável. De fato, a teologia moral nos ensina que o ato intrinsecamente perverso é o que é proibido por ser mau, e não mau por ser proibido. Trata-se de um ato mau em si mesmo segundo a lei natural negativa que proíbe praticá-lo mesmo em perigo de vida "quod in se et intrinsecus malum est", isto é, porque em si mesmo é intrinsecamente mau. Por exemplo, blasfemar, perjurar, mentir, matar um inocente 10. Uma desobediência a uma ordem do superior, por grave que seja, não se pode certamente comparar a um ato de gênero mau em si mesmo, por sua natureza, independentemente da lei que o pune. A sagração de um bispo, feita para a salvação das almas, segundo as intenções da Igreja, não é certamente um ato intrinsecamente mau. Se, na circunstância específica, esta (sagração) é preliminarmente proibida, isto significa que, em conseqüência dessa proibição, pertence mais à categoria dos atos que são maus porque proibidos, não à espécie dos atos em si maus (mesmo se a norma não os pune) e por isso "intrinsecamente maus".

A tese aqui criticada apresenta, pois, um outro aspecto realmente aberrante: o colocar a proibição expressa de efetuar a sagração no mesmo plano do direito natural! De fato, se se diz que desobedecer a um mônito pontifício expressamente dirigido a pessoa que desobedece é ato "Intrinsecamente mau", se dá a este mônito o mesmo valor da lei natural negativa do qual acima se falou, visto que somente as suas proibições se aplicam ao ato em si mau. A advertência do Papa é apenas um dos modos nos quais se exprime o poder supremo de jurisdição possuído por ele na Igreja universal: poder que, embora fundado na constituição divina da Igreja, está certamente subordinado à lei natural, criada por Deus, ocupando na hierarquia das origens uma posição nitidamente inferior.

É, pois, irrelevante a consideração que se desejaria fosse muito importante, se se considerasse a questão a partir do fato de que "nenhum teólogo ou concílio" jamais defendeu a legitimidade de uma sagração episcopal contra a vontade expressa do Papa 11. A constatação e óbvia: qual teólogo ou concilio teria, podido afirmá-Ia no plano dos princípios? Considerando as coisas em abstrato, nem mesmo se poria a questão. Mas o caso nunca foi posto porque jamais houve uma situação como a atual. Ninguém teria podido prever uma crise como a que devasta furiosamente a Igreja a partir do Vaticano II, talvez mais grave que a crise ariana.

As tomadas de posição dos teólogos e concílios visam freqüentemente resolver os problemas do tempo, à luz do dogma, naturalmente. Mas este fato não significa que ele nunca possa ser posto a priori. A experiência que estamos vivendo demonstrou, ao contrário, que o problema pode ser colocado, por ter demonstrado que os expoentes máximos da Igreja atual preferem novidades que contradizem a tradição, em vez de defenderem a tradição contra a novidade e os inovadores. Numa situação semelhante de novidade absoluta e negativa é inteiramente fora de sentido escandalizar-se (porque jamais sucedeu nem se podia pensar que tal sucedesse) pela novidade de uma sagração que se deveu fazer contra a vontade expressa do Papa, quando é esta mesma que se insurge sistematicamente para defender a novidade do rito de Paulo VI, do novo conceito de Igreja, do novo (laicista) conceito de liberdade do homem, em suma, as múltiplas novidades da Igreja "conciliar" contra a Tradição

Mas os críticos de D. Lefebvre foram obrigados a defender teses contorcidas e até absurdas, porque querem que os fatos digam o que estes não demonstram de modo nenhum, a saber, que a suposta perversidade intrínseca das sagrações episcopais de Ecône seria tal que as tornasse "um ato cismático por sua própria natureza”: justamente a tese insustentável da Santa Sé.

  1. 1. A tese é relembrada em The Roma and Econe Handbook. Holy Cross Seminary, 1997
  2. 2. Comm. cit. p.226.
  3. 3. O ponto é mencionado no Commento cit., pp. 226-227. Sobre este ponto ver também a nota praevia cítada ao pé da página da Lumen Gentium. no no 2. Sobre a disputa plurissecular: Dictionaire de Droit Canonique. V. verbete Evêques, col. 569 ss., col. 571-574. Para uma defesa da posição adotada pelo Vaticano II e pelo novo CIC: Bertrams SJ, O poder pastoral do Papa e do Colégio dos Bispos. Premissas e conclusões teológicas e jurídicas. Herder, 1967, pág. 8 ss.; 19 ss ; 25 ss.
  4. 4. Commento cit., p 226
  5. 5. Nota praevia da Lumen Gentium, 2a. Em I Documenti Del Concilio Ecumenico Vaticano II, texto latino-Italiano, Pádua , 1966, p. 278.
  6. 6. Para esta reenviamos a F. Spadafora. La tradition contra il Concilio. L 'apertura a sinistra Del Vaticano 2o., Roma, 1989. p. 177 ss (reimpressão).
  7. 7. Cf. Bertrams, op. Cit "Em tudo o que concerne ao ofício dos bispos de ensinar e governar, o Concílio faz uma nítida e unívoca distinção entre a sua colação feita na sagração Episcopal e o seu exercício, que se pode dar somente na comunhão hierárquica” (pág. 27, n. 14); ou seja, mediante a “missio canônica”. De fato, “o poder criado na sagração episcopal (segundo a sua substância) recebe na missão canônica a sua constituição jurídica porque precisado em relação ao sujeito passivo” (Ibid., pág. 26).
  8. 8. O fato foi mencionado com vigor pelo Pe. Simoulin em Valeurs actuelles, cit. (ver nota 72 do presente trabalho).
  9. 9. Enquête, cit., pp. 44-49.
  10. 10. Noldin, De Principiis, Theoloqia Moralis. 1911, PP. 202-203. Roberti Palazzini, Dizionario di teologia morale, Roma, 1954, verbete causa excusante (da observância da lei) p. 207: G. B. Guzzetti. Morale generale, Marietti. 1955, 1. pág. 152.
  11. 11. Enquête, cit. p 41.

Cisma em sentido formal, virtual, desobediência legítima

3. 9 - Cisma em sentido formal, virtual, desobediência legítima

Da análise do mandato lido em Ecône, por ocasião das sagrações episcopais, não resulta, portanto, nenhuma vontade cismática: a vontade de instituir uma hierarquia paralela não transparece de modo algum das ações de Dom Marcel Lefebvre. E é sabido que, no tempo posterior às ordenações, ele jamais conferiu alguma "missão canônica" (e é igualmente sabido que os quatro bispos escolhidos nunca se comportaram, nestes dez anos, como se fossem titulares de Dioceses).

A acusação de cisma, em sentido formal, contida nos documentos, se baseia, necessariamente no texto do mandato de Ecône e no ato representado por ele. Isto significa que o ato da sagração efetuado (por necessidade) contra a vontade expressa do papa, um ato de desobediência, foi considerado enquanto tal cismático, contra os princípios aceitos, pelos quais , como se viu, é preciso sempre distinguir entre a desobediência, enquanto tal, e o cisma. Isto é o que ressalta claramente do decreto do Cardeal Gantin, que fala de ato cismático por sua própria natureza e do motu proprio Ecclesia Dei, já citados. Para este último, a consagração sem mandato é ato em si de desobediência ("in semetipso talis actus fuit inobedientia adversus R. Pontificem”); todavia, esta desobediência, relativa a uma matéria gravíssima que concerne à unidade da igreja mediante a sucessão apostólica, comporta (inffert) um verdadeiro repúdio (vera repudiatio) do Primado Romano e por este motivo deve-se considerar cismático: "Quam ob rem talis inobedientia actum schismaticum efficit”: "por tal motivo (porque nega a unidade da Igreja) esta desobediência se interpreta como sendo um ato cismático".

O sentido do texto parece inteiramente claro: esta desobediência, por causa da sua gravidade, implica uma recusa do Primado de Pedro, põe em dúvida a unidade da Igreja, deve considerar- se cismática. É, em suma, a qualidade atribuída à desobediência que faz considerá-la cismática. Encontramo-nos aqui diante dum ato cismático em sentido objetivo, que se torna ria tal somente pela suposta qualidade do ato (que por si não é cismático), também na ausência de declarações de vontade e de atos ulteriores, necessários à existência do cisma em sentido formal.

Parece quase supérfluo ressaltar que esse conceito de cisma é completamente desconhecido, tanto pelo direito canônico como pela teologia. A Sé Apostólica, portanto, teria invocado, relativamente ao direito vigente, uma noção de cisma em sentido formal, aplicando-a contra

 Dom Marcel Lefebvre, a qual não é admitida pela doutrina nem pelo Código. Esta nova noção de cisma é inaceitável por não distinguir entre desobediência e cisma — e portanto entre desobediência legitima e ilegítima — interpretando, como faz, um ato de desobediência como cismático por si mesmo.

Mas, pode existir um cisma em sentido puramente objetivo? Equivale a dizer que pode haver um cisma na ausência de uma vontade declarada em tal sentido e sem a instituição de uma hierarquia paralela mediante uma "missão canônica" ilegítima? Nenhum canonista ou teólogo admitiria a existência de um cisma assim concebido. É verdade que o Código de Direito Canônico não define o ato cismático especifico, mas unicamente o conceito de cisma, refazendo-se substancialmente a doutrina de Santo Tomás; mas isto não significa que a Sé Apostólica possa literalmente inventar uma categoria nova de ato cismático; além disso, contraria tudo quanto a doutrina católica afirmou.

Naturalmente, o Papa, legislador supremo e primeiro doutor da Igreja, tem o poder de inovar, relativamente ao Código. Porém deve dizê-lo, deve estabelecer um novo tipo de delito (o cisma objetivo ou a desobediência só objetivamente cismática ou o que se queira dizer) com as normas oportunas; não pode contrabandeá-la como se se tratasse de mera aplicação do direito vigente. O fato de o Código não definir o ato cismático não significa que a suprema autoridade possa estabelecer, de um dia para outro e sem formular novas normas (e portanto sem se assumir responsabilidades legislativas), que um determinado ato se deva considerar cismático "por sua natureza"; significa, ao invés, que o Código, para a determinação do ato cismático, reenvia à doutrina consolidada - e à praxe da Igreja durante os séculos. E a suprema autoridade não pode ignorar esse reenvio sem cair no arbítrio,

Qual é então a noção consolidada de cisma em sentido formal? O C.I.C. no citado cânon 751 define o cisma como "a subtração à sujeição ao Sumo Pontífice ou à comunhão com os membros da Igreja sujeitos ao mesmo" 1.

O cisma consiste, portanto, em subtrair-se à sujeição ao Papa ou à comunhão com os membros da Igreja sujeitos a ela. Esta subtração dá origem a uma separação do corpo da Igreja e representa uma ruptura na unidade da Igreja. É de notar que, no plano conceitual, pode haver cisma também na subtração apenas aos membros da Igreja sujeitos ao Papa, sem, ao mesmo tempo, haver subtração à submissão ao Papa, ou vice-versa. O pecado de cisma é contra a caridade porque "directe et per se opponitur unitati!", dado que não acidentalmente, mas por sua própria natureza "intendit se ab unitate separare quam caritas facit": "visa separar-se da unidade que a caridade produz”: Os cismáticos são os que, violando o mandamento da caridade, se separam da Igreja "propria sponte et intentione”, por própria vontade e intencionalmente, E a unidade da Igreja deve entender-se de dois modos entre os irmãos na fé: "na conexão recíproca dos membros da igreja" e "na sua ordenação a uma cabeça"(Col. 2, 18-19), A cabeça "é o próprio Cristo, cujo vigário na Igreja é o Sumo Pontífice”; Por isso, "se chamam cismáticos os que se recusam a submeter-se ao Sumo Pontífice e estar em comunhão como os membros da Igreja sujeitos a ele"2. Assim nos fala Santo Tomás, Ele nos dá, portanto, o conceito de cisma assim como o encontramos ainda hoje no Código.

O cisma é um tipo peculiar de pecado (peccatum speciale), que exige requisitos próprios. Não pode ser reduzido à desobediência enquanto tal, como quereriam alguns, enquanto esta última está na base de todo pecado: "em todo pecado o homem desobedece aos preceitos da Igreja, já que o pecado, diz Ambrósio, é desobediência dos mandamentos celestes”. Portanto, “todo pecado é cisma"3. A refutação de Santo Tomás se baseia no seguinte raciocínio imbatível: na desobediência que dá origem ao cisma deve haver "rebellio quaedem", manifestar-se uma rebelião, resultante do fato de "desprezar com pertinácia os ensinamentos da Igreja e subtrair-se ao seu julgamento. E essa atitude nem todo pecado encerra. Por isso, nem todo pecado é cisma"4.

O cisma é, pois, um pecado "especial" ou particular ou especifico, como se queira, que não pode ser equiparado a outro pecado, com base no principio de que em todo pecado há uma desobediência. Para Santo Tomás, o cisma deve ser caracterizado pela "rebelião". Exprimindo- se como uma "rebelião", trata-se de desobediência ilegítima (se a desobediência é legítima, então não pode haver mais rebelião). O pensamento teológico medieval e o posterior é concorde neste ponto: "Os teólogos, pelo menos os dos séculos XIV, XV e XVI, se aplicam em ressaltar que o cisma é uma separação ilegítima da unidade da Igreja; afirmam, de fato, que poderia dar-se uma separação legítima, como no caso de quem se recusa a obedecer ao Papa se este manda uma coisa má ou indevido" (Torquemada) 5. Neste caso, como na excomunhão injusta, "seria uma separação da unidade puramente exterior e putativa"6.

Portanto, a doutrina elaborou o conceito de cisma como recusa ilegítima de submissão e comunhão. Esta recusa se depreende num ou nalguns atos em que se manifeste inequivocamente uma desobediência ilegítima (rebelião) para com a autoridade; que se manifeste claramente a intenção do sujeito agente de negar conscientemente a submissão e a comunhão, sobre os quais se funda a unidade da Igreja. Doutro modo o cisma é virtual, presente na intenção, mas não ainda concretizado na ação, numa separação efetiva. E já pode constituir um pecado, mesmo se não esteja dentro do âmbito das normas do C.D.C.

Por cisma virtual não se entende, de qualquer modo, a atitude ou intenção do cismático em potência, mas também um comportamento que revele objetivamente uma não participação na comunhão com os membros da Igreja, mesmo na ausência de um cisma efetivo em sentido formal. Tal comportamento, mostrando uma separação de fato, revelaria uma situação de cisma virtual. Segundo o Pe. Murray, na citada entrevista a The latin mass, esta seria a situação dos sacerdotes da Fraternidade e dos católicos que freqüentam a Santa Missa tridentina nas igrejas e capelas. Eles não podem ser definidos como cismáticos em sentido formal. (O Pe. Murray nega, como se disse, que D. Lefebvre possa ser considerado cismático em sentido formal), mas deveriam ser julgados como separados da Igreja oficial e por conseguinte cismáticos em sentido virtual, canonicamentre não condenáveis mas teologicamente repreensíveis.

Como veremos, esta avaliação é, segundo nosso parecer, inteiramente errada. Recorde-se que o conceito de cisma virtual se usa também noutro sentido, em conexão com a heresia. Esta é um pecado contra a fé, enquanto que o cisma o é contra a caridade 7. Assim se poderá professar um erro doutrinário grave que, por si, implica uma separação virtual da Igreja. É esta a acusação que, em substância, D. Lefebvre fez à hierarquia que o excomungava como cismático: afligida pelas heresias neomodernistas, a hierarquia atual deve considerar-se virtualmente excomungada por São Pio X 8. Aplicando esse conceito, devemos dizer que, enquanto afetada por grave erro sobre a exata noção da Igreja (referimo-nos novamente ao § 8 da Lumen Gentium) erro que rompe, por si mesmo, a unidade com a doutrina ensinada durante quase vinte séculos pela Igreja sobre ela mesma, a hierarquia atual se põe fora da Igreja de sempre, se coloca numa posição de cisma virtual.

Por ora, deixamos de parte o cisma em sentido virtual, e tratemos do ponto decisivo para o conceito do cisma em sentido formal: a noção do ato cismático. Retomando Santo Tomás, Congar a delineia do seguinte modo: "O ato cismático é portanto aquele ato perverso que tem direta, própria e essencialmente, um objeto especifico, uma coisa contrária à comunhão eclesiástica, ou seja, a unidade que, entre os fiéis, é efeito da caridade. Um ato, com efeito, se caracteriza pelo objeto a que tende por si, pelo próprio fato daquilo que ele é. Um ato mostrará então a qualidade de ser cismático quando, por sua própria natureza, tiver em mira a separação da unidade espiritual, fruto da caridade"9.

O ato cismático, portanto, é e não pode deixar de ser aquele que tem como escopo "direta, própria e essencialmente" (não se fala, portanto, de uma aproximação indireta) a ruptura da unidade eclesial. E para que se possa dizer que um ato tem este escopo, há um sinal certo, dado não pela desobediência enquanto tal, mas pela "vontade de constituir por própria conta uma Igreja particular”; segundo a límpida expressão de Santo Tomás: "dicuntur enim schismatici qui concordiam non servant in Ecclesiae observeatiis, valentes per se Ecclesem constituere singularem"10. Não basta "não conservar a concórdia”; não basta somente a desobediência, mas acrescenta-se a vontade manifesta de constituir -se como Igreja separada. O ato cismático por excelência não será então aquele que fica restrito à mera desobediência (como uma consagração sem mandato): será, pelo contrário, o que constitui a hierarquia duma Igreja paralela com a missão canônica. Este ato visa seguramente a "separação da unidade espiritual, fruto da caridade" É sinal certíssimo. Com este ato se tem o cisma em sentido formal. Com isto se subtrai formalmente à submissão ao Papa, negando-lhe a autoridade como Sumo Pontífice. ou seja, como cabeça da Igreja universal, "ut summus pontifex"11. Isto fez o desventurado Henrique VIII da Inglaterra, que se colocou por própria iniciativa, à frente de uma igreja nacional autodenominada "católica", com uma hierarquia própria nomeada por ele, depois de ter reduzido a autoridade do Papa à de simples bispo de Roma (sessão do Parlamento inglês de 3 de novembro de 1534)

Portanto, sem o ato cismático, sem a "missio canonica”, não pode haver cisma em sentido formal. E quando se pode dar um cisma em sentido virtual? Não certamente quando ocorre uma separação exterior imposta pela necessidade: sucede que ai haja uma vontade efetiva de cisma, ainda não atualizada E isto não ficou certo no caso de D. Lefebvre, dos seus sacerdotes e fiéis que freqüentam a "Santa Missa de sempre" nos lugares de culto da Fraternidade. Contra a opinião do Pe. Murray, afirmamos ser inteiramente inexato falar, no que a eles se refere, de cisma em sentido virtual. Faltam, da parte deles, os sinais de qualquer vontade de cisma: a separação não exprime uma vontade deste tipo, mas é imposta pelo estado de necessidade. Não é intencional, mas suportada. É o preço que se deve pagar para poder celebrar uma Missa não ambígua (como é a de Paulo VI), mas seguramente católica, que conserva o rito romano e remonta aos primeiros séculos do Cristianismo; e para poder administrar os Sacramentos. como por exemplo, a Crisma, com um rito seguramente católico. É o preço a pagar para sermos fiéis à Igreja de sempre.

É uma separação de fato da Igreja oficial, provocada por esta última. Que impede a quem o queira, poder celebrar e freqüentar a Santa Missa Tridentina, sem dever anteriormente reconhecer, contra a consciência, a "correção doutrinal" do rito protestantizado de Paulo VI, e porque o ambiente da sociedade eclesial está gravemente contaminado de modernismo, em todas as sua variadas formas — teológicas, morais e políticas — e se dá ocasião de pôr em perigo grave a fé do católico que fosse constrangido a ter trato habitual com eles (ver § 1 desta dissertação). Um católico que considere a salvação da sua alma como a coisa mais importante para ele e, por conseguinte, não possa ter o que fazer com os sacerdotes da atual hierarquia, nem com os leigos que gravitam ao redor dela - sendo a sua fé corrompida ou, no melhor dos casos, incerta - este católico constrangido, num inaudito estado de necessidade que o faz viver em tal regime de separação, merece ser chamado um cismático virtual?

Se é um cismático virtual, então eram cismáticos virtuais também aqueles que, de fato, se mantiveram separados dos arianos, enquanto estes dominavam na Igreja oficial do tempo. Também Santo Atanásio deveria ser considerado um cismático virtual. E tal separação é revelada pela famosa frase que é também um grito de batalha: "Eles (os arianos) têm as igrejas, nós temos a fé".

Nenhum cisma virtual, portanto, existe para os sacerdotes da Fraternidade São Pio X e para os fiéis que freqüentam as suas funções religiosas e ouvem o seu ensino nos sermões, exercícios espirituais e catecismos, A sua posição é simplesmente aquela de quem, por causa do estado de necessidade, está obrigado a uma temporária desobediência legitima.

É desobediência legitima, efetivamente, desobedecer à ordem implícita e explícita de considerar doutrinariamente correto o Vaticano II, comportando-se de acordo com ele, e desobedecer à ordem de freqüentar a Missa de Paulo VI, protestantizada e por isso não mal vista pelos hereges e nem mesmo pelos não cristãos. A desobediência legitima foi sempre admitida pelos teólogos, quando a autoridade ordenar fazer coisas contrárias à fé ou o que, de qualquer modo, põe em perigo a salvação da alma. Recordamos acima o ponto de vista de Torquemada e que a "separação" motivada das orientações temporárias da hierarquia "contrárias ao magistério de sempre”, não equivale, de fato, à "separação da Igreja" (mas apenas à separação do erro professado infelizmente pela hierarquia, temporariamente) foi amplamente repetido e ilustrado pela dissertação citada "Nem cismáticos, nem excomungados”, a qual remetemos o leitor 12.

Esta desobediência é, pois, concebida por aqueles que são coagidos a praticá-la como temporária, porque imposta pelo estado de necessidade, a qual durará até quando durar a crise da Igreja. E um dia (é de fé: "portae inferi non praevalebunt" - As portas do inferno não prevalecerão) a crise terminará, a hierarquia retornará à sã doutrina, e não verá mais o presente estado de necessidade com o seu dever de desobedecer às ordens ilegítimas da autoridade formalmente legítima...

  1. 1. Com. cit., p. 473.
  2. 2. Summa Theol., IIa. IIae., q. 39, a 1.
  3. 3. lbid.
  4. 4. Ibid., cfr Dictionnaire de théologie catholique, verbete Schisme col. 1304.
  5. 5. Dictionnaire cit., verbete Schisme, col. 1302. V. também "Nem cismáticos nem excomungados", p. 20-21.
  6. 6. Dict. th. Cat. Verbete Schisme, Ibid.
  7. 7. Summa Theol. IIa. IIae., q. 39, a 1 cit.
  8. 8. “Não somos nós, mas os modernistas que saem da Igreja. Quanto a dizer 'sair da Igreja VISÍVEL' é enganar-se identificando Igreja oficial e Igreja visível ... Nós reconhecemos de certo ao Papa a sua autoridade, mas quando se serve dela para fazer o contrário daquilo para que ela foi dada, é evidente que não se pode mais segui-la ... Sair, então, da Igreja oficial? Em certa medida, sim, evidentemente. Todo o livro de M. Madiran, A Heresia do século XX, é a história da heresia dos bispos. Portanto, é preciso sair do meio destes bispos, se não se quer perder a sua alma" (Fratern. Sac. S. P. X - Bulletin Officiel du District de France no. 29, de 29/9/88, p. 7) E além disso: "fomos condenados por pessoas que foram condenadas, e que o deveriam ser publicamente... Declaração de cisma? cisma com quem? com o Papa sucessor de Pedro? Não, cisma com o Papa modernista, sim, cisma com as idéias que o Papa difunde por toda a parte, as idéias da Revolução, as idéias modernistas, sim. Estamos em cisma com isto. Não as aceitamos, seguramente” (Fideliter, número especial 29- 30 Junho de 1988, cit. p, 18).
  9. 9. Diction. de th. cath. - verbete Schisme, cit. col. 1299-1300.
  10. 10. Citado no verbete Schisme, ibid. col. 1301.
  11. 11. Op. cit. col, 1304.
  12. 12. Nem cismáticos nem excomungados, cit., p. 99 ss; p. 16 ss: p. 22 ss.

O Mandato de Écône

3.8 - O Mandato de Écône

Consideremos então este documento com a maior atenção. A sagração de Écône ocorreu sem o mandatum (autorização) do Papa, previsto pelo ClC. E, apesar disso, se leu um mandato durante a cerimônia. Com que direito? Com o direito decorrente do estado de necessidade, corretamente entendido:

"Tendes um mandato apostólico? — Temos.

Que seja lido. — Nós o temos pela Igreja Romana que, na sua fidelidade as santas tradições recebidas dos Apóstolos, nos manda transmitir fielmente estas santas tradições, ou seja, o depósito da fé, a todos os homens em razão do seu dever de salvar a sua alma".

Se as autoridades oficiais da Igreja recusam a sua autorização a uma sagração episcopal requerida pelo estado de necessidade no qual se encontram as almas às quais o clero afetado pelos erros neomodernistas não transmite mais o depósito da fé, é totalmente legitimo estimar que a "Igreja Romana" tal como se constituiu e manteve durante dezenove séculos até o Vaticano II, exclusive, "ordene" aos que permaneceram fiéis ao dogma "transmitirem fielmente o depósito da fé". Quem, portanto, autorizou D. Lefebvre a sagrar os Bispos? A Igreja Católica de sempre, com o seu Chefe de sempre, que é Cristo e não o Papa. Seu Vigário temporário. Se este, gerente terrestre, se recusa a autorizar um ato requerido pela necessidade pública e geral, totalmente conforme às intenções da Igreja de sempre, como foi o da sagração de quatro bispos fiéis ao dogma, plenamente submetidos à instituição pontifícia, é permitido considerar que a Igreja supre a jurisdição.

Um mandato assim concebido parece totalmente legitimo, não somente do ponto de vista teológico, mas também canônico, justificado pelo estado de necessidade causado para as almas pela falta do ensinamento do "depósito da Fe”, substituído pelos "aggiornamenti" bem conhecidos e os "sincretismos" decorrentes do Vaticano II.

Após ter declarado a Autoridade que confere o mandato, o texto de Écône continua da seguinte maneira: "Dado que desde o Concílio Vaticano II até hoje, as autoridades da Igreja Romana estejam animadas por um espírito de modernismo, agindo contra a Santa Tradição — "não suportam mais a sã doutrine, fecham os seus ouvidos a Verdade, para abri-Ios às fabulas"

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como diz São Paulo a Timóteo na sua segunda epístola (4, 3-5) — julgamos que todas as penas e censuras infligidas por estas autoridades não têm nenhum valor"1.

O que se afirma aqui não é a recusa de submissão ao Papa nem rejeição de comunhão com os membros da Igreja. Nem mesmo a negação da autoridade da hierarquia atual, enquanto hierarquia católica legítima. Mas simplesmente, nega-se a validade das "penas e censuras" infligidas ou declaradas por uma autoridade que então estava afetada pelo espírito modernista e, portanto, professava erros e ambigüidades graves, capazes de induzir as almas ao erro.

Com efeito, a autoridade de quem é investido do poder de governo na Santa Igreja, não deve ser entendido num sentido puramente formal, como autoridade que aja validamente em tudo o que faça ou diga pelo simples fato de sua investidura formalmente legítima. Não é este o conceito católico de autoridade pelo qual, ao contrário, é válido o seguinte principio: corruptio legis non est lex [= a corrupção da lei não é a lei]. Portanto, não basta que a autoridade seja legitima, é também necessário que as suas ordens o sejam e não contradigam a própria razão de ser da autoridade: a manutenção e a defesa do dogma da fé.

Se a autoridade se mostra claramente invadida por um "espírito modernista", que é um espírito de heresia infiltrado na Igreja, p. ex. através do § 8 da Constituição Conciliar Lumen Gentium que dá uma definição de Igreja contraditória com o que Ela mesma ensinou a seu respeito durante dezenove séculos, pondo assim a Igreja em contradição consigo mesma; se a autoridade legitima demonstra, de fato, em seus diversos atos e declarações, ter perdido o sensus fidei, pode-se perguntar que valor se deve atribuir aos seus decretos e se eles devem ser reconhecidos como legítimos, impondo obediência por representarem a vontade da Igreja Católica,

A resposta a esta questão difícil nos parece, contudo, fácil: deverão ser consideradas como "sem peso" e, portanto, inválidas todas estas medidas tomadas num espírito modernista, em contradição manifesta com as intenções da Igreja. Por isto se entendem as intenções consagradas pelo dogma e pela tradição quase bimilenar. Quando o Papa reinante repete, conforme a Tradição, a interdição da ordenação das mulheres (Osservatore Romano, 30-31 de maio de 1994), nós devemos dizer que esta medida é inteiramente válida, porque corresponde à doutrina e às intenções da Santa Igreja de sempre: validade no sentido substancial e não simplesmente formal.

Quando, pelo contrário, o mesmo Papa declara que incorreu na excomunhão ipso iure um bispo, muito fiel ao primado romano, cujo desejo, por causa da idade que o acabrunhava, foi sagrar Bispos para assegurar a sobrevivência duma Fraternidade Sacerdotal, irrepreensível quanto ao dogma e à disciplina eclesiástica, consagrada à formação de sacerdotes com o objetivo de socorrer as almas em estado de grave necessidade geral, falamos então de medida inválida no plano substancial, para distinguir do sentido formal examinado até agora, constituído pela conformidade ao que foi expressamente estabelecido pelos cânones do ClC que excluíam de qualquer maneira a possibilidade duma excomunhão ipso iure. Inválida e, portanto, sem valor, por ter sido tomada segundo um espírito modernista, dado que o Papa quer excluir da Igreja Católica os defensores da Tradição por acusações totalmente infundadas, não só teologicamente, mas também do ponto de vista estrito do direito, E quer excluí-los como culpados de não aceitar o conceito de Tradição "viva" (isto é, entendido à maneira modernista), professado por João Paulo II e por outros membros da hierarquia atual.

Negar a validade das "penas e censuras" infligidas com "espírito modernista" pela autoridade vaticana não significa, portanto, negar a legitimidade desta autoridade enquanto tal e, portanto, com esta negação não se comete nenhum cisma. Isto significa somente declarar inaceitável e inválido todo o ato da autoridade manifestamente contrário à conservação do dogma da fé (o que, infelizmente acontece hoje). E entre estes atos certamente se devem incluir as “penas e censuras" impostas a D, Lefebvre a partir da supressão do seminário de Écône, ilegal sob o aspecto formal, a ponto de dever ser considerada nula, visto que tais "penas e censuras" foram causadas somente por aversão à Tradição e à sã doutrina. Sem falar da "suspensão a divinis”, inválida por não se querer ter em conta o estado de necessidade no qual D. Lefebvre se encontrou, em conseqüência da supressão ilegítima de Ecône

A história, então se teria repetido e, no mandato de Écône, não se podia deixar de repetir a verdade, sob a forma dum principio geral (as penas e censuras impostas ou declaradas pela autoridade são inválidas quando aplicadas segundo a intenção dos hereges, isto é, dos neomodernistas, paladinos dum falso conceito da Tradição), principio que implica, no caso concreto, a invalidade a priori das "penas e censuras" já infligidas ou por infligir ou declarar, segundo esta mesma intenção para com D. Lefebvre e os bispos consagrados por ele.

Este desígnio contaminado de modernismo aparece muito explicitamente no "Motu Proprio", Ecclesia Dei Adflicta, de 2 de julho, no qual se acusa D. Lefebvre de ter levado a cabo um ato considerado cismático, por não ter compreendido suficientemente "o caráter vivo da Tradição", "quandoquidem non satis respicit indolem vivam eiusdem traditionis"2. Como sabemos, na linguagem do neo-modernismo, a tradição "viva" é a tradição tal qual a entende a "Nova Teologia", ou o neo-modernismo, e não a tradição construída e entendida pelo Magistério da Igreja há dezenove séculos. A "tradição viva" parte dum conceito de verdade dinâmico, evolutivo (tirado do pensamento moderno e não do da Igreja), aplicado também ao dogma, cujo conteúdo não é imutável, mas deve ser esclarecido conforme as épocas. Assim em Lúmen Gentium, no parágrafo 8 já citado, o conceito da Igreja se adaptou às exigências do ecumenismo, negando o que a Igreja sempre afirmou sobre ela própria durante dezenove séculos, a saber, que a Igreja Católica, tendo à sua frente o vigário de Cristo, é a Igreja de Cristo e só ela, ao passo que as outras denominações cristãs que, por causa dos cismas ou heresias, dela se desligaram pouco a pouco, não o são. Querem fazer-nos crer que uma tal reviravolta está em harmonia com a tradição, fazendo passar como verdadeira tradição católica uma nova idéia de tradição "viva", ou seja, que leva em conta as adaptações do dogma às pretensas verdades dos hereges e cismáticos. O mandato de Ecône se conclui pela menção explícita e oficial da sagração:

"Porque, quanto a mim, estou para ser oferecido em libação e o tempo de minha morte está próximo" (2 Tim, 4,6). Sinto as almas me suplicarem que lhes seja dado o Pão da Vida, que é Cristo. Por este motivo, levado à compaixão por esta multidão, tenho o dever muito grave de transmitir minha graça episcopal a estes caríssimos sacerdotes segundo as santas tradições da Igreja Católica. Segundo este mandato da Santa Igreja Romana sempre fiel, nós escolhemos os quatros sacerdotes aqui presentes como bispos da Santa Igreja para serem auxiliares da Fraternidade Sacerdotal São Pio X" [seguem os nomes dos escolhidos] 3.

Trata-se de um texto muito claro. Por causa do estado de necessidade no qual objetivamente se encontrou, D. Lefebvre deve "transmitir a graça episcopal" sem mais delongas a outros sacerdotes, satisfazendo assim às esperanças legitimas dos seminaristas e dos fiéis para a salvação das suas almas. Aos bispos instituídos por ele foi dada somente a ordem como os poderes, a fim de que possam ser "auxiliares" da Fraternidade.

D. Lefebvre se mostrou assim coerente com a posição que tomou e a manteve há muito tempo. Na carta dirigida aos futuros bispos, preparada já em 28.09.87, na qual ele os convidava a assumir essa grave responsabilidade, tinha sido dito — de maneira explícita — que ele lhes conferia somente o poder de ordem: "o fim principal desta transmissão [de minha graça episcopal, ndr] é conferir a graça da ordem sacerdotal para a continuação do verdadeiro Sacrifício da Santa Missa e administração do Sacramento da Confirmação às crianças e fiéis que vo-la pedirem"4

Portanto, nenhuma hierarquia paralela e nenhum poder de jurisdição territorial, mas, uma jurisdição unicamente ''suppleta ad actum”; a pedido das almas em estado de necessidade.

Ainda mais importante, para demonstrar a coerência e a boa fé de D. Lefebvre, é o fato de ter ele escrito ao Papa na sua carta de 20 de fevereiro de 1988, durante as negociações para um acordo jamais realizado:

"2. A sagração de Bispos para me suceder no meu apostolado parece indispensável.

Este ponto no. 2 é o mais importante [do esboço do acordo – ndr] tendo em conta a minha idade e fadiga. Há já dois anos que eu não pude ir fazer as ordenações do Seminário dos Estados Unidos. Os seminaristas aspiram ardentemente à ordenação, mas minha saúde não mais me permite atravessar os oceanos.

Por isso, eu confio a Vossa Santidade resolver esta questão antes de 30 de junho deste ano.

Em relação a Roma e à sua associação [a Fraternidade s. Pio X - ndr] estes bispos se encontrariam na mesma situação daquela em que se achavam os bispos missionários respectivamente em relação à Propagação da Fé e de sua associação [congregação - ndr]. Em lugar duma jurisdição territorial, eles teriam uma jurisdição sobre as pessoas"

Este texto ilustra claramente o estado de necessidade (mesmo só a titulo pessoal), ao qual o Bispo tradicional chegara: tal "estado" resulta de fatos precisos, os impedimentos representados desde então pela idade e saúde para o cumprimento dos seus deveres de apostolado. Mas o que mais nos interessa no caso é a definição dada por ele da jurisdição dos futuros bispos. Trata-se dum conceito claro que não mostra nenhuma vontade de cisma, nem mesmo dissimulada. Ele se inspira no modelo, admitido pelo costume da Igreja, do "bispo missionário": um prelado sem jurisdição, com jurisdição somente sobre pessoas sem terem sido predeterminadas a pertencer ao território duma diocese, mas apenas aquelas que, de vez em quando seriam qualificadas, a juízo do Bispo, como pessoas necessitadas dum ato dependente de seu poder de ordem.

Ao propor este modelo de Bispo ao Santo Padre, D. Lefebvre se mostrava totalmente respeitoso das competências e exigências, desde que ele não pedia para os seus bispos uma competência acima das exigências às quais deviam corresponder. No mandato de Écône, D. Lefebvre ficou fiel a este compromisso? Ficou fiel 100%, pois conferiu aos bispos por ele sagrados apenas o poder de ordem. É certo que eles não podem ser considerados como idênticos a bispos "missionários". E isto por dois motivos: porque estes últimos recebem sua jurisdição do Papa e também esta jurisdição não se exerce em estado de necessidade. Mas, em substância, pode-se dizer que os bispos "auxiliares" da Fraternidade são efetivamente "missionários", porque receberam (somente) um poder de ordem a exercer com uma jurisdição dada in actu, para cada caso, sobre as pessoas 5.

  1. 1. Fideliter cit; e Boletim cit: "aestimamus omnes poenas, censuras ab his auctoritatibus porlatas nihil momenti esse.
  2. 2. L’Osservatore Romano de 3-7 -1988. 78)
  3. 3. Fideliter cit.: Boletim cit.
  4. 4. Fideliter ed. especial de 29-30 de junho de 1988 cit. O texto desta carta continua como segue: "Eu vos conjuro a vos manterdes unidos à Sé de Pedro, à Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as igrejas na fé católica integral, expressa nas símbolos da fé, no Catecismo do Concílio de Trento, conforme ao que vos foi ensinado no vosso seminário. Permanecei fiéis na transmissão desta fé para que venha o Reino de Nosso Senhor" (os negritos são nossos).
  5. 5. Os bispos sagrados como "auxiliares da Fraternidade" não entram na categoria de bispos "auxiliares" sem direito de sucessão, segundo o código 403 § 1 do CIC em vigor. Estes últimos gozam do poder de jurisdição no território de sua diocese, colocados "a latere" do bispo diocesano, quando este "não pode pessoalmente cumprir todos os deveres episcopais como o exigiria o bem das almas" (Commento cit.. p. 241) Deve-se em seguida lembrar que a jurisdição in actu suprida não é idêntica à expedita in actu, mencionada no no. 2 da nota praevia, anexada à Lumen Gentium. Visto que esta ultima resulta sempre duma missão canônica. O que justifica a jurisdição suprida in actu é especialmente o estado de necessidade, em particular no caso de erros graves e de heresias, publicamente difundidas, mesmo e sobretudo por causa da omissão da Igreja oficial. Numa tal situação, a necessidade grave de muitos (porque eles correm um grave perigo - e isto é suficiente - de serem seduzidos pelo erro) se assemelha, pela doutrina unânime, à necessidade extrema dum indivíduo (como pode haver em caso de perigo de morte).
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