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Category: Missa Nova e Reforma LitúrgicaConteúdo sindicalizado

O documento sobre a anáfora de Addai e Mari

Agosto 26, 2018 escrito por admin

O fato

Em 26 de outubro de 2001 L’Osservatore Romano publicou um documento do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos que ditava «orientações para a admissão à eucaristia no seio da igreja caldéia [católica] e da igreja assíria do Oriente [nestoriana e cismática]»(1).

O documento diz responder a uma petição motivada pelo fato de que «numero­sos fiéis caldeus e assírios se acham em uma situação de necessidade pastoral quanto à administração dos sacramentos. Mas a Igreja Católica não podia atender à solicitação — segue dizendo o documento — sem antes haver resolvido a questão principal a seu ver, a saber: o problema [sic] da validade da eucaristia celebrada com a anáfora [cânon] de Addai e Mari, uma das três anáforas usadas tradicionalmente na igreja assíria do Oriente».

“Problema” este de não pouca importância, dado que, segundo nos informa o documento em questão, «a anáfora de Addai e Mari [chamada também “dos Apóstolos”] é singular porque, desde um tempo imemorial, ela é utilizada sem o relato da instituição», presente, em contrapartida, nas outras duas anáforas nestorianas.

Um problema inexistente

Apressemo-nos a declarar que o dito “problema” absolutamente não existe, e que, em qualquer caso, se trata de um problema já resolvido.

O problema não existe, pois é patente que uma anáfora, quer dizer, um cânon, não serve para nada se carece das palavras consecratórias (“Este é o meu corpo”, “Este é o meu sangue”): não há missa sem consagração (cf. Denzinger B.; n. 1640).

Trata-se de um problema já resolvido, porque os caldeus que se reuniram a Roma já o solucionaram: para eles ou «se supre a esta gravíssima lacuna utilizando o texto de uma das outras duas anáforas», nas quais, sim, figuram as palavras consecratórias (v. Enciclopedia Cattolica, verbete caldei), ou se insere na anáfora de Addai e Mari a fórmula da consagração.

Um giro de cento e oitenta graus

A dita solução, porém, tão elementar quanto óbvia, foi impugnada de fato pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, pois o documento dado a conhecer por L’Osservatore Romano argúi deste modo: «Visto que a Igreja Católica considera [sic!; trata-se de mera opinião?] que as palavras da instituição eucarística são parte constitutiva e, portanto, indispensável da anáfora ou prece eucarística, [a Igreja Católica] estudou longa e pormenorizadamente a anáfora de Addai e Mari de um ponto de vista histórico, litúrgico e teológico, e por fim, em 17 de janeiro de 2001, a Congregação para a Doutrina da Fé chegou à conclusão de que pode considerar-se válida a dita anáfora».

Em poucas palavras: a “Igreja Católica” chegou, segundo parece, a uma conclusão diametralmente oposta à que havia chegado no passado, e isso graças a que “estudou longa e pormenorizadamente” uma anáfora “de um ponto de vista histórico, litúrgico e teológico”. Mas vejamos os “argumentos” em que se funda tal giro de cento e oitenta graus.

“Antiga”, sim, mas não forçosamente “íntegra”

Assegura o documento que nos ocupa que «a conclusão a que se chegou se baseia em três argumentos principais.

Em primeiro lugar, a anáfora de Addai e Mari é uma das mais antigas, pois remonta às origens da Igreja. Compôs-se e empregou com o propósito manifesto de celebrar a eucaristia em continuidade plena com a última ceia e segundo a mente da Igreja. Sua validade não se impugnou nunca oficialmente nem no Oriente nem no Ocidente».

Comecemos pela antigüidade:

Não há dúvida de que a anáfora de Addai e Mari é uma das mais antigas e de que remonta às origens da Igreja. Mas, pelo contrário, é demasiado duvidoso que tenha chegado íntegra até nós, tal qual era na antigüidade, nos primeiros tempos da Igreja; ou melhor: é certo que assim não ocorreu, conquanto ainda se discuta sobre quando, como e por que desapareceu da anáfora a fórmula consecratória: por erro dos copistas?; porque o oficiante a recitava de cor?; por reflexo da controvérsia sobre a epiclese, à qual os nestorianos atribuem a eficácia consecratória em vez de atribuí-la às palavras da instituição? O problema continua sem solução devido à ausência de documentos decisivos (vide Dictionnaire de Théologie catholique, verbete Nestorienne / l’ Église, col. 310).

Idêntica incerteza reina quanto à data em que desapareceu desse rito a fórmula consecratória: alguns a põem em torno do século XV; outros, em tempos mais remotos (cf. a obra Eucarestia, de A. Piolanti, ed. 1957, pp. 514-516, e A. Raes Le récit de la institution eucharistique dans l’anaphore chaldéenne et malabare des Apôtres).

A lição das “antigüidades” sem viço

Passemos agora a outro tema, mas sublinhemos antes que também outras anáforas, entre “as mais antigas” e usadas ainda hoje por comunidades cismáticas orientais, apresentam a mesma falta de viço, ora por carecer de fato da fórmula consecratória, ora por contê-la mutilada (vide Dictionnaire de Théologie Catholique, t. XII/ 2º; verbete Orientale / Messe, col. 1452 ss.).

Uma “antiguidade” que nos chegou tão sem viço não atesta, de modo algum, a validade de tais anáforas, mas tão-só os danos substanciais infligidos pelo cisma às comunidades orientais, danos que afetaram até a validade do santo sacrifício do altar. Dizem muito a este respeito aquelas palavras de Dom Cabrol: «Mas o fato mais extraordinário com relação ao relato da instituição nas anáforas orientais é que, conquanto sem modificar seu sentido, algumas liturgias amplificam e mudam as palavras de Nosso Senhor, cuja importância no sacramento eucarístico conhecemos, enquanto outras o fazem de tal modo, que se pode duvidar até da validade da fórmula; outras, ainda, simplesmente as omitem! [Precisamente, é este o caso da anáfora de Addai e Mari]. Com isso se percebe claramente, do ponto de vista dogmático, a necessidade de um magistério que se exerça sobre as liturgias, bem como o dano derivado de deixar entregues à fantasia fórmulas de tanta importância. Deste ponto de vista, já o dissemos, o Ocidente oferece [em contrapartida] uma uniformidade quase completa» (Dictionnaire d’archéologie et de liturgie, t. 1, 2ª parte, col. 1914, Paris, 1907).

A intenção não basta

Igualmente, não pomos em dúvida que a anáfora de Addai e Mari «se compôs e empregou com o propósito manifesto de celebrar a eucaristia [...] segundo a mente da Igreja», como afirma o documento; mas perguntamos: quando a Igreja ensinou que basta a intenção para tornar válidos os sacramentos? O que a Igreja sempre ensinou, pelo contrário, é que para a validade dos sacramentos requerem-se também, além da intenção de fazer o que faz a Igreja, a matéria e a forma (ou fórmula), e que, «se falta um desses elementos, não se realiza o sacramento» (Concílio de Florença, Denz. S., n. 1312). Na anáfora de Addai e Mari falta a forma da eucaristia, constituída pelas palavras com que Cristo a instituiu; daí que não haja missa se a empregam. Mas para dar-se conta de algo tão evidente não era necessário estudar “longa e pormenorizadamente”: bastava simplesmente que os “eruditos” [investigadores] da Congregação para a Fé recordassem o Catecismo de São Pio X, que devem de ter estudado na infância.

Uma afirmação insustentável

A validade da referida anáfora, segue dizendo o documento, «não se impugnou nunca no Oriente nem no Ocidente».

Isso é compreensível para o Oriente, visto quão deterioradas estão as liturgias e as teologias das diversas seitas orientais: em nome de quê preocupar-se com a ausência da fórmula consecratória quando o comum no Oriente é que se atribua a eficácia consecratória principalmente à epiclese ou invocação do Espírito Santo?

Para o Ocidente, em contrapartida, não vale a asserção do documento: a mera inserção na anáfora de Addai e Mari, pelos caldeus reunidos a Roma, da fórmula consecratória constitui condenação oficial dessa mesma anáfora privada das palavras da consagração, tal e qual se usa hoje entre os cismáticos assírios. Por isso não se pode sustentar que a validade da dita anáfora sem a fórmula consecratória “não se impugnou nunca oficialmente” no Ocidente, nem, muito menos, que para impugná-la faltam as impugnações “oficiais”, como se para tal não bastasse a simples fé católica, que ensina serem as palavras do Senhor «a forma verdadeira e única do sacramento da eucaristia» (v. Eucarestia, cit., p. 438): «A forma da eucaristia são as palavras com que o Senhor consagrou este sacramento, pois o sacerdote consagra este sacramento falando em nome de Cristo» (Concílio de Florença, Decreto para os armêniosDenzinger 698).

Um segundo “argumento” que não prova nada

E eis o segundo “argumento” aduzido pelo documento:

«Em segundo lugar, a Igreja Católica reconhece a igreja assíria do Oriente [nestoriana e cismática] como autêntica igreja particular [sic] fundada na fé ortodoxa [sic] e na sucessão apostólica [sic]. A igreja assíria do Oriente preservou também a fé plena eucarística não só na presença de Nosso Senhor sob as espécies de pão e vinho, mas ademais no caráter sacrifical da eucaristia. Daí que na igreja assíria do Oriente, conquanto não goze esta de comunhão plena [sic] com a Igreja Católica, se achem “verdadeiros sacramentos em virtude da sucessão apostólica, sobretudo o sacerdócio e a eucaristia” (Unitatis Redintegratio, nº 15)».

Condensam-se no parágrafo anterior todas os desvios eclesiológicos da “doutrina ecumênica” a respeito da doutrina constante da Igreja: promove-se uma seita cismática ao plano de “autêntica igreja particular”, e declara-se que uma seita nestoriana é “fundada na fé ortodoxa” (a Declaração comum cristológica, a que faz referência o documento, resolveu, segundo se admite, nada menos que «o problema dogmático principal», mas não todos os problemas dogmáticos); reconhece-se a “sucessão apostólica” como alicerce de uma seita que não tem continuidade doutrinal com os Apóstolos nem jurisdição legítima, dado que esta «vem aos bispos unicamente através do Romano Pontífice» (Pio XII, Ad Apostolorum Principia); declara-se que dispõe de “verdadeiros sacramentos” uma seita em que dois sacramentos de instituição divina foram substituídos por dois “sacramentos” de instituição humana, e cuja eucaristia carece de validade por causa de um cânon privado do essencial (vide Dict. de Th. Cath., verbete Nestorienne / l’Eglise).

Para todos estes pontos remetemos à extensa refutação publicada em sì sì no no (nº 105 e 106 de março e abril de 2001, edição espanhola – cujo primeiro artigo corresponde à edição portuguesa nº 100 de agosto de 2001, pp. 5 a 10), a propósito da Declaração Dominus Iesus. Aqui nos importa agora fazer notar que, semelhantemente ao primeiro, tampouco este segundo “argumento” prova absolutamente nada a favor da validade do rito celebrado com a anáfora mutilada de Addai e Mari.

É duvidoso e ainda controverso que a “igreja assíria do Oriente” tenha “preservado a fé plena eucarística na presença de Nosso Senhor sob as espécies de pão e vinho”, razão por que para resolver uma questão que divide os investigadores dignos desse nome (v. Eucarestia, cit., de A. Piolanti, pp. 512-513, com as notas correspondentes) não basta escolher, de maneira tão simplista, a tese mais cômoda para o “ecumenismo”. Seja como for, é certo que os cismáticos assírios negam a transubstanciação, à imitação de Nestório (a cuja reabilitação se declara favorável Walter Kasper em Gesù il Cristo, o mesmo Kasper que, veja-se que casualidade, é o presidente atual do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos). E, ainda que fosse verdade que os assírios cressem que a eucaristia constitui um sacrifício verdadeiro que renova de maneira incruenta o sacrifício da cruz, não o seria menos que, na prática, tal fé “carece de objeto” durante aquela parte do ano, a mais larga por certo, em que sua liturgia prescreve o uso da anáfora mutilada de Addai e Mari. Com efeito, a mera fé, por mais “plena” que seja, na presença real e no caráter sacrifical da eucaristia não basta para produzir o sacramento da eucaristia quando no rito falte a fórmula da consagração. Na própria Igreja Católica não há missa quando um sacerdote omite a fórmula da consagração, não há eucaristia válida, nem basta para tal que haja a fé realmente “plena” que a Igreja Católica professa na presença real e no caráter sacrifical da eucaristia.

Um “argumento” no qual nem sequer crê o mesmo documento

Terceiro argumento do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos«Por fim, as palavras da instituição eucarística estão presentes de fato na anáfora de Addai e Mari, não de modo coerente e ad litteram, mas de maneira eucológica e disseminada; quer dizer: vão insertas em preces sucessivas de ação de graças, louvor e intercessão».

Seria fácil apresentar o texto completo da anáfora de Addai e Mari, tomando-o de várias fontes, mas não é necessário, a partir do momento em que no artigo Admissão à eucaristia em situação de necessidade pastoral, que acompanha o documento com «o objetivo de esclarecer o contexto, o conteúdo e a aplicação prática de tal disposição», o próprio Osservatore Romano nos oferece as “orações sucessivas” em cujo seio deveria figurar, conquanto de fato brilhe por sua ausência, a fórmula da consagração, orações nas quais, segundo a Congregação para a Fé, “estão presentes de fato”, se bem que “disseminadas”, as “palavras da instituição eucarística” de maneira que constituem um «quase-relato [sic] da instituição eucarística». Aqui vão as preces em questão:

— «Tu, Senhor meu, por tuas muitas e inefáveis misericórdias, lembra-te com complacência de todos os padres retos e justos que acharam graça perante teus olhos, na memória do corpo e sangue de teu Cristo, que te oferecemos no altar puro e santo, como nos ensinaste»;

— «Conheçam-te todos os habitantes da terra [...] e também nós, meu Senhor, teus pequenos servos, fracos e míseros, que nos achamos reunidos em tua presença, recebemos de ti por tradição o exemplo que nos deste, alegrando-nos, glorificando, exaltando, recordando e celebrando este mistério grande e terrível da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo»;

— «Venha teu Espírito Santo, meu Senhor, e repouse nesta oferenda de teus servos bendizendo-a e santificando-a, para que nos traga, Senhor meu, a remissão das dívidas, o perdão dos pecados, uma grande esperança de ressuscitar da morte e a vida nova no reino dos céus, em companhia de todos os que acharam graça a teus olhos ao celebrar este mistério grande e terrível da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo».

As ditas preces pressupõem claramente a consagração e atestam, portanto, que esta figurava outrora na anáfora de Addai e Mari, mas por mais que o leitor as leia e releia, como fizemos nós, não encontrará nelas, nem sequer “disseminadas”, as palavras da consagração: “Este é o meu corpo”; “Este é o meu sangue”. Por isso não se compreende que o artigo de L’Osservatore Romano chegue a esta conclusão: «Desta maneira, as palavras da instituição não faltam [sic!] na anáfora de Addai e Mari, mas as menciona explicitamente [sic] conquanto estejam disseminadas [?] pelas passagens mais importantes da anáfora».

Porventura devemos achar nesta anáfora o que não há, só porque assim o quer o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos? Certamente não. A fé e a obediência não exigem renunciar à reta razão. Os fatos são fatos, e a honestidade intelectual requer que o pensamento se conforme à realidade (apesar dos “neoteólogos”, os quais pretendem antes adaptar a seu próprio pensamento a realidade e a razão dos demais).

Por outro lado, o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos mostra que não crê nem pouco nem muito em suas próprias afirmações, dado que recomenda o seguinte no nº 3 do mesmo documento: «quando os fiéis caldeus [católicos] participarem em uma celebração assíria [nestoriana e cismática] da santa eucaristia, inste-se à vera [sic] o ministro assírio a introduzir as palavras da instituição na anáfora de Addai e Mari». E por que diabos se haveria que instar a isso “à vera” se não fosse porque «o rito nestoriano se serve para a eucaristia, comumente, de uma anáfora que carece do essencial»? (v. Dict. de Th. Cath., verbete Orientale / Messe, col. 1459). Assim, pois, nem sequer a Congregação para a Fé nem o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos crêem, a despeito da fé “plena” da Igreja Católica, que o rito romano sem a fórmula da consagração seja suficiente para celebrar validamente a santa missa, ainda que se trate do Pange Lingua com seu “quase-relato” da instituição eucarística.

Documento vergonhoso

Com este documento “ecumênico” se autoriza e estimula os fiéis católicos a participar ativamente em atos cultuais de hereges e cismáticos (communicatio in sacris), conquanto o proíba o direito divino natural e positivo: haereticum hominem devita [ao herege evita-o] (Tit 3, 10). Por respeito ao dito direito divino, a Igreja nunca admitiu casos de “necessidade” neste campo: veja-se o código de Direito Canônico pio-beneditino, cân. 1258 § 1, e o Decreto do Santo Oficio de 7 de agosto de 1704, o qual precisa que «um católico não deve assistir à missa de um sacerdote herege ou cismático, ainda no caso de que, urgindo o preceito dos dias festivos, tenha de ficar sem missa para assistir» (Enciclopedia Cattolica, verbeteComunicazione nelle cose sacre, col. 118).

Ademais, com este documento “ecumênico” se autoriza os fiéis, conquanto se careça de poder para dar-lhes tal permissão, a que violem o direito divino participando em uma “missa” só de nome, por carecer da fórmula consecratória, de modo que se torna irrisória a afirmação segundo a qual assim «os fiéis caldeus católicos [...] podem receber a santa comunhão [?] em uma celebração assíria da santa eucaristia» (L’Osservatore Romano cit., Admissão à eucaristia..., artigo ilustrativo cit.).

Para rematar, o referido documento dá permissão, em razão de sua reciprocidade, à “intercomunhão” com hereges e cismáticos, vedada até agora, ao menos oficialmente. Com efeito, também aos “assírios” autorizam-nos a receber a santa comunhão (mas esta real), em caso de necessidade, em uma celebração “caldéia”, quer dizer, católica.

Não cremos errar ao dizer que este documento cobrirá de perpétua vergonha a história da Congregação para a Fé, e que servirá para demonstrar que o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos promove, em verdade, a unidade dos cristãos com os hereges e cismáticos na «ruína comum» (Pio XII, Humani Generis).

 

Nota do tradutor:

(1) No que diz respeito à liturgia da igreja caldéia, «esta liturgia está em uso entre os cristãos da Mesopotâmia, Pérsia e Malabar, e vem da liturgia primitiva, em uma forma especial do oriente sírio. Seu antigo centro foi Edessa.

Esta parte da Igreja caiu no nestorianismo no século V. Muitos de seus membros continuam sendo nestorianos, enquanto outros, desde 1551, se tornaram católicos. A estes se chama caldeus na Mesopotâmia e na Pérsia, e malabarenses na costa de Malabar, na Índia. Tanto os católicos como os dissidentes deste rito seguem a antiga liturgia dos Santos Addai e Mari. Todos, menos os de Malabar, usam duas anáforas nos domingos e dias de festa, desde o Advento até o Domingo de Ramos e em outros cinco dias do ano» (J. B. Carol e outros, Mariologia, Madrid: B. A. C., 1964, p. 229). Naturalmente, os católicos caldeus usam a liturgia de Addai e Mari uma vez completada, como se viu no artigo.

 

(Revista Sim Sim Não Não, no. 110)

 

À margem da polêmica renovada sobre o missal de Paulo VI

Agosto 26, 2018 escrito por admin

A revista paulina para "agentes de pastoral" (Vita pastorale, no. 6/1997), na rubrica Cartas recebidas, publica uma carta (verdadeira?) dum leitor alarmado, que pede à revista paulina uma "resposta tranqüilizadora" a respeito das declarações do cardeal Ratzinger na sua autobiografia (Minha vida -- pp. 105-115) "sobre o trágico erro cometido por Paulo VI com a interdição do uso do Missa de Pio V e a aprovação do "novo" Missa que teria rompido com a tradição litúrgica da Igreja"

Rinaldo Falsini o.f.m. (conselheiro da Congregação para o Culto Divino) escreve, entre outras coisas: "Paulo VI teve de abolir o uso do Missal de Pio V [...], reduzido a um filete d´água quase seco, incapaz de dessedentar e de nutrir a fé e a piedade do povo cristão".

O Ordo Missae, chamado de Missa de São Pio V, um filete de água quase seco? E que dizer então do mini-Ordo de Paulo VI? E por qual mágica o rito de São Pio V se tornaria "incapaz de dessedentar e de nutrir a fé e a piedade do povo cristão", após ter dessedentado e nutrido notavelmente, durante séculos e séculos, inclusive os Santos hoje canonizados? Porque o Missal dito de São Pio V não é absolutamente de São Pio V: é o rito romano tradicional, ou seja, a Missa tal qual foi substancialmente celebrada em Roma desde os tempos apostólicos, mesmo se foi lentamente enriquecida (e não bruscamente empobrecida) de ritos e orações (v. Enciclopédia Cattolica verbete Missa col. 792 seg.).
  
O cardeal Ratzinger, por outro lado, explica bem na sua autobiografia: "eu ficava estupefato pela interdição do antigo missal, no momento que "jamais se tinha verificado uma coisa semelhante em toda a história da liturgia. Deram a impressão de que tudo isto era absolutamente normal. O missal precedente tinha sido composto por Pio V em 1570, em seguida ao Concílio de Trento; era portanto normal que, após quatrocentos anos e um novo Concílio, um novo papa publicasse um novo Missal. Mas a verdade histórica é diferente. Pio V se limitara a fazer elaborar de novo o missal romano então em uso, como no decurso da vida da história isto havia sempre sucedido no transcorrer os séculos. E muitos dos seus sucessores, do mesmo modo que ele, tinham elaborado novamente este missal, sem jamais opor um missal a um outro. Tratava-se sempre dum processo contínuo, a continuidade nunca era destruída. Um missal de Pio que teria sido criado por ele não existe. Há somente nova elaboração ordenada por ele, como fase dum longo processo de crescimento histórico.
   
"O fato novo, após o concílio de Trento, foi de outra natureza: a irrupção da reforma protestante se fez, sobretudo, sob a modalidade de "reformas" litúrgicas [...] tão bem que os limites entre o que era ainda católico e o que não, eram freqüentemente difíceis de definir. Nesta situação de confusão, tornada possível pela ausência de normas litúrgicas e pelo pluralismo litúrgico herdado da Idade Média, o Papa decidiu que o Missale Romanum, o texto litúrgico da cidade de Roma, enquanto certamente católico, devia ser introduzido em toda a parte onde não se pudesse apelar para uma liturgia que remontasse pelo menos a dois séculos antes. Lá onde isto se verificava, s epodia manter a liturgia precedente, dado que o seu caráter católico podia ser considerado como certo". (J. Ratzinger, La mia vitta - "Minha vida" - pp. 111-112, os negritos são nossos).

Portanto, São Pio V não fez nada mais do que estender a todo o Ocidente a Missa romana tradicional como barreira contra o protestantismo. Mas Falsini (Vita Pastorale) escreve: "Pio V aboliu todos os Missais que não datavam de 200 anos. Paulo VI teve de [sic] abolir o uso do Missal de Pio V, tanto mais por ser totalmente inadequado às finalidades pastorais do Concílio e ainda porque o conteúdo do Eucológio [exato! somente o conteúdo] e a estrutura [somente o esqueleto] da celebração se fundam no novo". A comparação entre São Pio V e Paulo VI não subsiste.
  
Paulo VI "teve de" abolir o rito romano tradicional porque as autodenominadas finalidades "pastorais" do Concílio não se referiam, como deveriam, aos católicos, mas aos... protestantes. Sem oposição ao Breve exame crítico dos cardeais Ottaviani e Bacci, que denunciaram no Novus Ordo de Paulo VI um "impressionante afastamento da teologica católica da Santa Missa", citaremos aqui uma fonte ainda mais autorizada e insuspeita: "A oração da Igreja não deve ser um estorvo para ninguém" escrevia no Osservatore Romano de 19 de maio de 1965 Mons. Bugnini, e, como se não fosse inevitável que a "oração da Igreja" choque aqueles que não têm a fé da Igreja, ele continuava dizendo ser portanto necessário "remover todas as pedras que pudessem constituir mesmo uma sombra de risco de obstáculo ou [até] de desagrado para os nossos irmãos separados". E o Osservatore Romano de 13 de outubro de 1967 anunciava com satisfação que a operação poderia ser considerada como bem sucedida; "a reforma litúrgica deu um passo notável para a frente [sic!] e houve uma aproximação das formas da Igreja luterana". Portanto, a comparação de Falsini não é válida; São Pio V aboliu, não o rito romano tradicional, mas todos os outros ritos que não remontavam a 200 anos e ele os aboliu por estarem poluídos de protestantismo, ou ao menos suspeitos de infiltrações protestantes, estendendo a todo o Ocidente o Missal Romano, porque "certamente católico". Paulo VI, ao contrário, aboliu o rito romano tradicional, e o fez porque ste era muito católico, promulgando um novo missal protestantizado. A diferença não é pequena.
  
A seguir, que Paulo VI tenha realmente abolido o uso do Missal de Pio V, fica ainda por demonstrar, como também cabe totalmente demonstrar se ele tinha o direito de abolir o rito mais venerável da Igreja latina, e isto sem outro motivo que o de agradar aos protestantes.
  
Na constituição Missale Romanum de Paulo VI, de fato, não se lê a fórmula solene abrogatória e imperativa que se lê na Quo Primum de São Pio V (v. Sim Sim Não Não, ano I, no. 9, p. 5), mas simplesmente:

 

"Ad extremum ex iis quae hactenus de novo Missali Romano exposuimus quiddam nunc cogere et efficere placet" que mesmo um aluno aplicado do liceu, ajudado por um bom dicionário, é capaz de traduzir: "Enfim, do que expusemos até agora sobre o novo Missal nos apraz tirar algumas conclusões".
  
"Falsários" interessados (cf. uma carta do conhecido latinista prof. Heitor Paratore a Luís Salleron) apressaram-se entretanto a traduzir muito livremente: "Enfim queremos dar força de lei [sic] ao [sic] que expusemos até agora sobre o novo Missal Romano" (e assim de maneira mais ou menos equivalente em todas as outras línguas); tradução que absolutamente não corresponde ao texto latino (v. Sì Sì No No ano II, no. 4, p. 2 Uma notinha filológica à margem de algumas traduções da "Missale Romanum" de Paulo VI).
  
De resto, ficou tão pouco claro que Paulo VI, ao promulgar o Novus Ordo, tenha abolido o uso do Missal de São Pio V, que chegaram interpelações à Santa Sé do mundo inteiro sobre esse assunto, como atesta um dos principais artífices do Novus Ordo Missae, Mons. Aníbal Bugnini em La riforma liturgica (CLV - Edizioni Liturgiche, Roma, 1983).
  
É ainda mais duvidoso que Paulo VI tivesse o direito de abolir um rito essencialmente de origem apostólica, e isto sem outro motivo além do de agradar aos protestantes. Na Santa Igreja de Deus, menos ainda que alhures, o direito não se identifica com o arbítrio. Donde a questão posta por um perito em liturgia (não "lefebvrista") Mons. Klaus Gamber, diretor, na época (1979) do Instituto das Ciências Litúrgicas de Ratisbona e membro honorário da Academia Pontificia Litúrgica de Roma: "O Papa tem o direito de mudar um rito que remonta à Tradição Apostólica?" (A reforma da Liturgia Romana - antecedentes e problemática). A história -- escreve ele -- nos diz que jamais qualquer papa o fez: "as mudanças efetuadas no Missal Romano, no decurso de quase 1400 anos não afetaram o rito da Missa: tratou-se, pelo contrário, apenas de um enriquecimento com o acréscimo de Festas, Próprios de Missas e de simples orações" (ibid). E hoje o cardeal Ratzinger lhe faz eco: "jamais se verificou uma coisa semelhante em toda a história da liturgia" (La mia vita cit).
  
Para encontrar algo de semelhante à "reforma litúrgica" de Paulo VI, deve-se sair do domínio católico e, então, encontrar um precedente, certamente não honroso para o papa Montini, na "reforma litúrgica" de Lutero, que "destruiu a Missa romana, conservando algumas formas exteriores", inclusive o canto gregoriano (K. Gamber, loc. cit). Mesmo se "o conteúdo" e o esqueleto -- perdão! -- "a estrutura" do rito romano tradicional estivessem "fundidos" no novo, isto não seria bastante: "Não basta que algumas partes do antigo Missal se tenham transferido para o novo -- já escrevera Mons. Gamber -- [...] para que se possa falar de continuidade do Rito romano" (op. cit). E hoje o cardeal Ratzinger lhe faz eco: com a "reforma litúrgica" de Paulo VI "acontece alguma coisa a mais" do que uma simples "revisão" do Missal precedente: "desfizeram em pedaços o antigo edifício, e se construiu um outro, mesmo se foi com o material de que se fizera o antigo edifício e utilizando a planta precedente" (La mia vita, p. 112). Estamos assim felizes com poder estar nisto de acordo com o cardeal Prefeito da Congregação da Fé.
  
É certo que Suarez, com outros insignes teólogos, entre os quais Caetano, dá como exemplo de papa cismático um papa que chega "ao ponto de mudar todos os Ritos da Igreja consolidados pela tradição apostólica": "si vellet omnes ecclesiasticas caeremonias apostolica traditione evertere" (De Charitate disput. 12, 1). Portanto Suarez, com os outros insignes teólogos, não reconhece ao papa esta autoridade que Paulo VI, na sua obstinação "ecumênica", se atribuiu assim tão facilmente. E, como quer que seja, é certo que a autoridade do papa, como acima de qualquer outra autoridade na Igreja, existe para edificar e não para demolir.
  
 

Gorgonius

A sacrílega comunhão na mão

Este trabalho do Sr. Lafayette é um dos capítulos de uma grande compilação sobre a  Santa Missa, onde o autor recolhe de vasta bibliografia e organiza com inteligência, muitas explicações sobre a Missa Nova, seus erros, a comparação com a Missa de São Pio V etc. Nesta obra inédita são dadas exaustivas referências a todas as obras citadas. Essas notas  foram aqui retiradas para não tornar a leitura desagradável. 

Antecedentes -  Sobre o Concílio Vaticano II e a Reforma Litúrgica  

O Papa Pio XII faleceu em 1958 e no início de 1959 foi dado o primeiro aviso oficial sobre o futuro Concílio; e a 25 de julho de 1960, João XXIII tornou pública a sua decisão de confiar aos Padres do Concílio a reforma litúrgica. 
As comportas iam ser abertas; era preciso, então, acelerar as providências. O monge beneditino Dom Adrien Nocent, "neolitúrgico típico", foi nomeado, em 1961, professor do Pontifício Instituto de Liturgia de Santo Anselmo em Roma, uma venerável universidade beneditina fundada por Leão XIII; e lá Dom Nocent preparava o Concílio. Naquele mesmo ano de 1961, em sua obra O Futuro da Liturgia, Dom Nocent definia os princípios e os fundamentos da nova missa que então preconizava. Seu propósito: influir direta e decisivamente na "revisão da liturgia" que poderia ser realizada durante o Concílio Vaticano II.

Veio o Concílio. 
Pela vontade do Papa João XXIII, o Vaticano II quis ser um Concílio Ecumênico e, como disse um bispo não tradicionalista, aí esta palavra "ecumênico" deve ser entendida não no sentido tradicional de "universalidade" ou de "catolicidade", mas "na acepção moderna (ou errônea?) de favorecer a unidade dos cristãos"1
Essa intenção de fazer do Concílio um instrumento de ecumenismo (aliás, falso) abriu as portas da Santa Sé e a cidadela foi ocupada pelos neolitúrgicos progressistas. 
Deixemos de lado o que nos separa, guardemos o que nos une; este bem conhecido programa de João XXIII foi o principio inspirador da nova liturgia. 
Ora, uma reforma litúrgica inspirada em "motivos ecumênicos" é inconcebível, porque contradiz o princípio imutável da liturgia católica: cabe à regra de fé regular a oração. Uma tal reforma é, ao contrário, pôr em prática a "caridade sem fé" que São Pio X condenou no modernismo. Não é de espantar que a "reforma" (que ia ser implantada) tenha sacrificado a claridade e a exatidão doutrinal em troca de ambigüidade e compromisso. 
Todavia, imbuídos do princípio anunciado por João XXIII, os Padres conciliares irão dizer, no primeiro documento que aprovaram, ou seja, na Constituição "Sacrosanctum Concilium" sobre a reforma da "Sagrada Liturgia", de 4 de dezembro de 1963, que o Concílio Vaticano II, desde o seu inicio, propunha-se a "favorecer tudo o que possa contribuir para a união dos que crêem em Cristo"... e para tanto julgou "ser seu dever cuidar de modo especial da reforma e do incremento da Liturgia" (idem, pg 259. O destaque é meu)., estando a Reforma do Ordinário da Missa inserida nessa reforma. E esse documento foi redigido de uma forma tão ambígua que tornou possível a remoção "das pedras que pudessem constituir mesmo sombra de um risco de tropeço ou de desagrado para nossos irmãos separados", como declarou Monsenhor Annibal Bugnini, artífice da Nova Missa, no L’ Observatore Romano de 19 de maio de 1965, pedras essas que existiam (e que continuam a existir) na liturgia da Igreja Católica, particularmente no rito romano tradicional, restaurado e canonizado por São Pio V para deter e combater as heresias protestantes. 
Com a aprovação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia foi iniciada a protestantização da Missa católica. E, isto feito, Paulo VI, a 29 de fevereiro de 1964, criou o "Consilium ad Exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia" – Conselho para a Aplicação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, o "Consilium", tendo por presidente o Cardeal Lercaro e por secretário o Monsenhor Annibal Bugnini, ou seja, os elementos mais avançados do Movimento Litúrgico italiano. Ao Consilium coube a tarefa de fazer a Reforma Litúrgica, aprovada pelo Vaticano II.

A VERDADEIRA HISTÓRIA DA COMUNHÃO NA MÃO

I - Introdução 

Na "Missa de Dom A. Nocent", sugerida por este monge beneditino em 1961, já estava recomendado que a comunhão deveria ser feita sob ambas as espécies — costume que havia sido abolido "por graves e justas causas", como afirmou o Concílio de Trento, mas que a Constituição "Sacrosanctum Concílium" sobre a Sagrada Liturgia, de 1963, tornou novamente possível2 — e, mais ainda, de pé e na mão. 
O procedimento de receber a comunhão de pé e na mão não consta do Livreto "Liturgia da Missa", obra com a “Tradução Oficial para o Brasil” aprovada pela CNBB e pela Sagrada Congregação do Culto Divino, mas foi adotado sem a menor sombra de dúvida e, depois, tornou-se uma prática universal. 
Quanto à questão de ser a comunhão feita de pé, salvo a menção feita na "Missa de Dom A. Nocent", nada encontrei em documento algum. Todavia, é um procedimento que acompanha naturalmente à decisão de permitir a comunhão na mão, pois ninguém vai se ajoelhar para receber a comunhão desse modo e, hoje em dia, os comungantes só recebem a comunhão de pé; até mesmo aqueles que a querem receber na boca (ver X – “Conclusões”). 
A comunhão na mão foi especificamente autorizada pela Instrução "Memoriale Dómini" – Instrução essa redigida "por mandato especial de Paulo VI e por ele mesmo aprovada em razão de sua autoridade apostólica" (28/05/69) – e na qual a Sagrada Congregação para o Culto Divino, na esteira de outros autores, afirma que "em épocas muito antigas se fez uso da comunhão na mão", dando a entender que este era o procedimento normal. É este o tema que vamos aprofundar neste ensaio, para mostrar a verdadeira história da comunhão na mão. 

II - O Corpo de Deus e o respeito que lhe é devido 

"Eu sou o pão da vida"... (Jo.6,48), "Eu sou o pão vivo que desci do céu... e o pão, que Eu darei, é a minha carne para a vida do mundo" (Jo.6,51) (e não apenas para a vida dos discípulos) e "Eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mt.28,20). 
Este pão da vida e pão vivo - Carne do Senhor - o Corpo de Deus vivo e verdadeiro - sempre foi tratado com o maior respeito e cercado de inúmeros cuidados desde os primeiros tempos do cristianismo (voltaremos a este ponto a seguir), como não poderia deixar de ser por se tratar do próprio Deus vivo, que quis se transubstanciar, usando um pedaço de PÃO, para que os homens pudessem comer da sua carne (Jo.6,54), alimento da alma, e (pudessem) alcançar a vida eterna (Jo.6, 54 e 58). 
O Senhor se fez carne, Cordeiro de Deus, para o sacrifício e, de carne, se fez Pão – Pão do céu – para alimento de nossas almas. 

III - Os cuidados com as partículas que caem da Hóstia consagrada 

Era norma dos primeiros cristãos só comer a Carne do Senhor depois de tê-la adorado, o que prova a crença na presença real de Nosso Senhor; e àquele que ia comê-la era dirigida esta advertência: "...recebe com cuidado de nada perder. É em verdade o Corpo de Cristo" (ver IX - A "Memoriale Dómini"). 
A Igreja sempre tomou um grande cuidado a fim de evitar que qualquer partícula da Santa Eucaristia se perdesse ou caísse no chão. São Cirilo de Jerusalém (313-316) dizia aos novos batizados que eles deviam lamentar mais a perda de qualquer partícula da Hóstia que a perda de ouro, de diamante ou de qualquer um dos membros de seu corpo. De acordo com este modo de pensar, os orientais chamam os fragmentos da Eucaristia de "pérolas". Por sua vez, a liturgia de São Crisóstomo (344-407) assinala que, ao fim da Missa, o padre ou o diácono consome com atenção e devoção todos os fragmentos e cuida para que não se perca qualquer partícula ou "pérola". Note-se que tal norma era, no século IV, dirigida apenas aos ministros do culto, não fazendo menção aos fiéis leigos. 
E eles tinham todos esses cuidados ainda que as partículas, ou fragmentos, que caíam da Hóstia consagrada fossem naquele tempo muito menos numerosas que hoje em dia. Isto porque o "dom" oferecido nos primeiros tempos era um pão ázimo como agora, mas de uma forma, com um contorno, que não favorecia a deposição de partículas, ou seja, as "pérolas", como acontece com as pequenas hóstias que são hoje em dia empregadas pela Igreja do Ocidente; e é preciso dizer que é da máxima importância ter todo cuidado com qualquer partícula da Hóstia já consagrada, por menor que seja, pois está "o Cristo todo inteiro sob a espécie do pão e sob a mínima parte desta espécie", como definiu dogmaticamente o Concílio de Trento3
Com efeito, das bordas das pequenas hóstias que hoje são utilizadas para serem oferecidas e consumidas caem pequeninas partículas; quem já viu um cibório, onde são guardadas as hóstias já consagradas, ou uma patena depois da comunhão dos fiéis sabe quantas "pérolas" ali ficam. Com a nova forma de comungar, o Corpo do Senhor fica agora na palma da mão ou entre os dedos de quem comunga ou então cai no chão e pode ser pisado. 

IV - A manipulação do Corpo do Senhor: o procedimento normal 

Talvez já prevendo que tais profanações pudessem vir a ocorrer e, também, em função do respeito que se deve ter para com o Corpo do Senhor, os Santos Padres se preocuparam desde os primórdios do Cristianismo em firmar uma doutrina sobre quem estava habilitado a tocar no Pão e no Vinho consagrados. E o procedimento normal adotado, desde o início, sempre foi o de ficar a manipulação dos dons consagrados - e, portanto, a sua distribuição também - restrita a pessoas, também, consagradas, aquelas que recebem o dom de poder tocar no Santíssimo Sacramento, o que mostra que ao leigo não é lícito (salvo em casos especiais) tocar neste Corpo; e se não lhe é permitido tocar, muito mais grave é recebê-lO nas mãos e levá-lO à boca para consumir a Vítima sagrada do Sacrifício — o Corpo de Deus Filho — oferecido a Deus Pai. 
Além disso, as normas estabelecidas pelos Santos Padres (que serão mostradas mais adiante) não seriam necessárias se os fiéis leigos estivessem também autorizados a tocar nos santos mistérios. Não podendo tocá-los, por não terem mãos consagradas para fazê-lo, como é que estas mesmas mãos podem receber o Corpo de Deus vivo? 
Porém, hoje, depois do Vaticano II, para justificar a comunhão recebida na mão, é dito que era esse o costume dos primeiros cristãos. O próprio, e insuspeito, Padre Le Brun afirma que "durante os cinco primeiros séculos os padres davam a Eucaristia na mão dos fiéis"4. Todavia, como veremos, esta não é a verdadeira história, e se, no século V, um Papa afirmou explicitamente que a comunhão deve ser recebida na boca não foi porque antes fosse recebida na mão, mas, sim, por causa dos abusos que, ainda, continuavam a ocorrer em seu tempo, como será também mostrado. 

V - O procedimento de exceção na manipulação do Corpo de Deus

De fato, a manipulação do Corpo do Senhor pelos leigos — para seu próprio uso ou para distribuí-lO a outros fiéis (o que não significa necessariamente que estivessem autorizados a distribuir a comunhão na mão desses fiéis) — era um costume que devia ficar restrito a alguns casos especiais, casos de exceção (ver VII – “As exceções”), e isto se aplica tanto aos primeiros tempos do cristianismo como aos tempos atuais. Assim é que o Santo Ofício, em resposta (21 de julho de 1841) a uma consulta, diz: "É unicamente em tempo de perseguição, em caso de real necessidade e se o padre, ministro ordinário do Sacramento, estiver impedido, que os leigos podem manipular a Santa Eucaristia". 
 
VI - Os acontecimentos históricos

 Vejamos, então, o que realmente aconteceu, ou seja, qual era a doutrina dos Santos Padres dos primeiros tempos e quais eram os casos de exceção; passemos aos fatos históricos.

São Paulo chama os padres de "ministros do Cristo e dispensadores dos mistérios de Deus" (1Cor.4,1 e 2) e, portanto, cabe a eles a manipulação do Corpo de Deus e a distribuição dos dons consagrados. 
Abusos devem ter ocorrido, pois, São Sixto I - Papa de 117 a 126 - julgou necessário lembrar e publicar a norma apostólica, reafirmando que somente os ministros do culto (os padres e seus ajudantes, os diáconos) são aptos a tocar (tangere) os santos mistérios: "hic constituit ut mysteria sacra non tangeretur, nisi a ministris". 
São Justino (100-166), por sua vez, na sua Apologia dedicada ao Imperador romano, testemunha esta disciplina primitiva afirmando que são "os diáconos que distribuem a comunhão e levam aos doentes". 
E o sábio Tertuliano de Cartago (160-250) diz, também, que o Sacramento da Eucaristia era recebido "somente da mão do padre": "nec de aliorum manu sumimus". 
Como os casos em que estava autorizada a manipulação da Santa Eucaristia pelos leigos (ver VII – “As exceções”) continuassem a gerar abusos, Santo Estevão - Papa de 254 a 257 - teve que advertir os leigos, dizendo-lhes que eles não deviam "considerar como suas as funções eclesiásticas"; e, quanto ao clero, Santo Eutiquiano - Papa de 275 a 283 - exortou os padres a manterem a disciplina cumprindo seus deveres, especialmente levando eles mesmos a Comunhão aos doentes: "nullus praesumat tradere Communionem laico vel feminae ad deferendum infirmo" (que ninguém ouse confiar a um leigo ou a uma mulher o cuidado de levar a Comunhão a um doente). 
Assim, pelos textos citados, vemos que mesmo em tempo de perseguição, ou seja, mesmo antes da "paz da Igreja", o que ocorreria pouco depois do ano 313, ano do Edito de Milão, não era um costume generalizado os leigos manipularem a Eucaristia para distribuí-la ou consumi-la. Não seriam necessárias todas as advertências dos Santos Padres, acima citadas, sobre quem devia manipular o Corpo de Deus, se os fiéis pudessem tocar habitualmente no Santíssimo Sacramento. Se eles pudessem tocá-lO, poderiam também servir a si mesmos e também (poderiam) distribuir a Comunhão à outras pessoas (o que hoje fazem errada, pois habitualmente, os ministros extraordinários da Eucaristia). Porém, o que de fato se verifica é que, pelo menos desde o Papa São Sixto I, somente aos padres e aos diáconos é permitido manipular e distribuir a Eucaristia e, mais ainda, o diácono devia receber o Santíssimo Sacramento das mãos do padre. Os leigos só podiam tocar na Hóstia consagrada excepcionalmente. 

VII - As exceções 

É verdade que casos havia em que era permitido aos leigos manipular e distribuir a Comunhão. Os leigos podiam fazê-lo nos chamados casos de necessidade, ou seja, quando não havia sacerdote para se ocupar daqueles deveres; fora dessas circunstâncias, nem os leigos, nem os padres menores, devem ser considerados como ministros da Eucaristia. Eles somente serão chamados a título de ministros extraordinários em casos excepcionais. 
Portanto, é verdade que - em tempo de perseguição e, portanto, tempo de exceção - os fiéis leigos foram autorizados a levar para casa o Santo Sacramento, para consumi-lo durante as semanas seguintes ou levá-lo aos doentes, mas era, conforme o caso, ou por causa da ameaça sempre eminente de perseguição ou da distância ou da falta de padres e de diáconos. São Basílio de Cesaréa (329-379), em sua Carta 93, datando aproximadamente de 372, declara que por esses motivos poder-se-ia "receber a Comunhão por meio de sua própria mão". Temos, assim, mais uma confirmação de que, normalmente, o fiel não deve receber a Comunhão de sua própria mão. Podemos concluir, também, que no caso de distribuição autorizada do Corpo de Deus a outros (doentes, por exemplo), isto não significa que a comunhão fosse dada na mão; estando o leigo que a ia receber proibido de tocar no dom consagrado, não é lícito esperar que recebesse o Corpo do Senhor na mão; e se o fizesse não seria em função de uma norma da Igreja, mas de um abuso. Para evitar dúvidas e abusos, os Santos Padres passarão a dizer, explicitamente, que a Santa Comunhão é recebida na boca (ver VIII - "Os tempos normais"). 
Desde que as circunstâncias permitiram, o costume excepcional mencionado no parágrafo anterior foi-se tornando desnecessário e é certo que esta prática de exceção, como diz o "Dicionário de Arqueologia Cristã e de Liturgia", de Dom H. Leclerq, "caiu em desuso pouco tempo depois da paz da Igreja". 
Todavia, o hábito arraigado em alguns leigos fazia com que esses praticassem abusos já em tempos normais, por continuarem levando o pão consagrado para suas casas. Além disso, com a paz e liberdade concedidas à Igreja, as conversões para o Cristianismo se efetuavam em grande escala e de maneira por vezes brusca; conseqüentemente os novos cristãos ainda guardavam consigo traços de sua antiga mentalidade pagã, muito dada à superstição e ao uso de amuletos. Documentos atestam que a partícula sagrada era não raro pendurada ao pescoço dos fiéis, aos leitos, às paredes das casas, aos cofres, como se fora um amuleto, um feitiço dotado de poderes quase mágicos ou um instrumento poderoso contra doenças, desgraças, inimigos, etc. 
Então, medidas enérgicas foram tomadas para restabelecer as regras apostólicas. 
Para tanto, São Dâmaso I - Papa de 366 a 384 - proibiu aos fiéis terem o Alimento divino em suas residências: "oblationes... sub dominium laicorum deteneri vetat". 
No ano 380, o Concílio Regional de Saragoça lança anátemas contra aqueles que insistissem em continuar a tratar o Santo Sacramento da mesma maneira que em tempos de perseguição, e o Concílio Regional de Toledo, no ano 400, insiste na mesma determinação: "Se alguém não consumir realmente a Eucaristia recebida do sacerdote, seja expulso como um sacrílego" (canon 14). 
Verifica-se, portanto, que naquele tempo já era claramente distinguida a regra normal, daquilo que tinha sido, por muito tempo, exceção na Igreja. 
Além disso, sendo as sanções acima citadas, pelas quais a Igreja protegeu o cumprimento das normas litúrgicas transmitidas pelos Apóstolos, de âmbito específico (regional), pode-se concluir também que esses abusos eram desvios não generalizados. 

VIII - Os tempos normais 
A paz externa, a expansão da Igreja por todo o Império Romano e o aumento das vocações sacerdotais fizeram com que a manipulação do Santíssimo Sacramento pelos leigos não tivesse mais justificativa. 

A) A norma expressa sobre a Comunhão na boca 

Se os primeiros Santos Padres se preocuparam em afirmar que cabia aos ministros do culto distribuir a comunhão, a fim de evitar que o Pão da Vida fosse manuseado por qualquer um como um pão comum, agora, no século IV e seguintes, em tempos de normalidade, vamos encontrar os Santos Padres citando explicitamente o costume tradicional de comungar; já haviam desaparecido os motivos que justificavam a manipulação do Corpo do Senhor pelos leigos e, por outro lado, era preciso firmar doutrina para combater os abusos que ainda ocorriam, bem como, também, (combater) a prática herética dos arianos5 de receber a comunhão na mão. 
Assim, São Leão I - Papa de 440 a 461 - diz, explicitamente, que o Sacramento da Eucaristia recebe-se na boca: "hoc enim ore sumitur quod fide tenetur" (os/oris=boca). 
Em 536, o Papa Agapito I, tendo se dirigido a Constantinopla, realiza uma cura milagrosa de um surdo mudo, durante a Comunhão, no momento em que lhe punha na boca o Corpo do Senhor: "cunque ei Dominicum corpus mitteret in os", conforme assinalado por São Gregório Magno - Papa de 590 a 604 - e sabemos que o próprio São Gregório I, também, dava a Comunhão na boca aos comungantes, como atesta o seu biógrafo Jean Diacre. 
Os únicos que sempre comungaram de pé e com a mão foram, desde o princípio, os arianos, que negavam, obstinadamente, a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo e que, por isso mesmo, não viam na Eucaristia senão um símbolo de união que podia ser manipulado à vontade. 
Por volta de 650, sob o império de Clóvis II, o Concílio de Rouen estabeleceu, também, regras sobre a distribuição do Sacramento da Comunhão, indicando com muita precisão a atitude conveniente dos fiéis, isto é, a recepção da hóstia unicamente na boca — "Nulli autem laico aut feminae Eucharistiam in manibus ponat, sed tantum in os ejus" (cf. Acta Conciliorum Rothomagense, cap. II, pág. 8). 
Apesar do cisma do Oriente já estar se anunciando, entre outras coisas por desvios na Liturgia, o Concílio de Constantinopla (692) proibiu, também, aos fiéis leigos se darem a si próprios a comunhão e ameaça de excomunhão por uma semana aqueles que se atreverem a distribuí-la quando houver um bispo, padre ou diácono na região. 
Em 878, mais outro Concílio de Rouen (canon II) volta a lembrar a regra tradicional, o que mostra o aspecto realmente esporádico do abuso da prática de comungar com a mão. 
Vê-se bem, face ao exposto, que a Igreja não mudava sua regra original, mas a consolidava, desejando o desaparecimento completo dos abusos, porque sempre foi costume, na Igreja de Deus, os leigos receberem dos padres a Comunhão. 
São Tomás de Aquino, o Doutor Comum da Igreja Católica (1225-1274), ensina as razões teológicas que embasam esse costume: 

"A distribuição do Corpo de Cristo cabe ao padre por três motivos. Primeiro, porque... é ele que consagra assumindo o lugar de Cristo. Ora, o próprio Cristo distribuiu o seu Corpo durante a Ceia. Portanto, assim (como) a consagração do Corpo de Cristo cabe ao padre, é também a ele que cabe a sua distribuição. Segundo, porque o padre foi instituído intermediário entre Deus e os homens. Por conseguinte, como tal, é ele que deve encaminhar a Deus as oferendas dos fiéis e também levar aos fiéis as dádivas santificadas por Deus. Terceiro, porque, por respeito por este Sacramento, ele não é tocado por nada que não seja consagrado. Por causa disto, o corporal e o cálice são consagrados e igualmente as mãos do padre o são, para tocar este Sacramento. Assim, nenhuma pessoa tem o direito de o tocar, a não ser em casos de necessidade como, por exemplo, se o Sacramento cair no chão, ou casos semelhantes" (Summa, III pars, Qu. 82, art 3). 

Em 1551, o Concílio Ecumênico6  de Trento, também, repetiu o ensinamento tradicional da Igreja por causa dos desvios dos protestantes: 

"Na comunhão sacramental sempre foi costume na Igreja de Deus receberem os leigos a comunhão das mãos do sacerdote... . Com razão e justiça se deve conservar este costume como proveniente da Tradição apostólica" (Sessão XIII, de 11-10-1551 – Decreto sobre a Santíssima Eucaristia – capítulo 8). 

O Concílio Vaticano II, porém, nada decidiu e decretou sobre a maneira de comungar: se de pé ou de joelhos, se na mão ou se deve o Corpo do Senhor ser depositado pelo padre na língua do comungante. 
Foi a Sagrada Congregação dos Ritos que se manifestou sobre o assunto em questão pela Instrução "Memoriale Dómini", redigida "por mandato especial de Paulo VI e por ele mesmo aprovada em razão de sua autoridade apostólica", a 28 de maio de 1969. Esta Instrução, que traz as assinaturas do Cardeal Gut e do Monsenhor A. Bugnini, Prefeito e Secretário daquela Congregação, foi suscitada por solicitações dirigidas à Santa Sé por umas poucas Conferências Episcopais (que já faziam uso da Comunhão na mão, como é dito na própria Instrução, sem qualquer licença para isso). E, em função dessas poucas solicitações, a norma apostólica sobre a comunhão: (I) que deve ser dada pelos ministros do culto, (II) que não deve ser tocada por mãos não consagradas, e (III) que deve por isso mesmo ser recebida na boca, será alterada em 1969. 

B) A cronologia das mudanças 

Antes de entrar no mérito do conteúdo da "Memoriale Dómini" julgo ser interessante apresentar a cronologia das alterações relativas à Missa e do modo de receber a Comunhão: 

[03-04-69] Paulo VI aprova a Constituição "Missale Romanum", reformando o rito da Missa (ainda sem missal). 
[06-04-69] A Sagrada Congregação de Ritos promulga o novo Ordo Missae, com sua "Institutio Generalis", que deveria entrar em vigor a 30-11-69. 
[28-05-69] Paulo VI aprova a Instrução "Memoriale Dómini", permitindo a comunhão na mão. 
[19-06-69] A Congregação para o Culto Divino por carta dirigida ao Presidente da Conferência Episcopal da França autoriza a comunhão na mão, ainda que contrariando a recente "Institutio Generalis" - a "Instrução Geral" do novo Missal - cujo artigo 80 diz que a patena é um dos objetos que se deve preparar para a celebração da Missa e cujo artigo 117 descreve a maneira como se deve efetuar a comunhão: ... O fiel responde: Amém e sustentando a patena debaixo do seu rosto recebe o sacramento7 . 
[23-09-69] Data constante do Livreto "Liturgia da Missa" com a "Tradução Oficial para o Brasil" da Nova Missa, aprovada pela CNBB e pela Sagrada Congregação do Culto Divino. 
[20-10-69] Data da Instrução da Congregação para o Culto Divino: "De constitutione missale romanum gradatim ad effectum decudenda" (Instrução sobre a Aplicação Progressiva da Constituição Apostólica "Missale Romanum"), ficando a introdução do Novus Ordo Missae diferida para 28-11-71. 
  
As regras da Nova Missa a respeito do modo de comungar, constantes da Instrução Geral da Constituição "Missale Romanum", estavam, portanto, superadas antes mesmo de terem entrado em vigor e, na prática, uma Instrução vai alterar não só essa Constituição, como, também, indiretamente, aquela que tinha sido aprovada pelo Vaticano II, ou seja, a "Sacrosanctum Concilium" sobre a Sagrada Liturgia. Vejamos, então, a Instrução "Memoriale Dómini". 

IX - A "Memoriale Dómini" 
  
Na Instrução "Memoriale Dómini", em sua introdução sobre o valor e o histórico do Sacramento Eucarístico, está dito que, em tempos muitos remotos, nas pequenas comunidades primitivas, a distribuição do Pão da Vida era feita nas mãos dos fiéis. 
Contudo, apesar deste início - com o qual não concordo, como se vê pelo exposto acima - é importante transcrever longamente a "Memoriale Dómini", pois este documento mostra e reconhece aquilo que estamos querendo demonstrar, como se vê pelas partes reproduzidas abaixo.

(Nota - Todas as transcrições da Instrução "Memoriale Dómini" que se seguem foram tiradas de artigos de Gustavo Corção, publicados em sua coluna no jornal "O Globo" dos dias 19, 21 e 26 de junho de 1975. Os destaques são, no entanto, todos do autor deste ensaio).

1) Os grandes cuidados que a Santa Igreja sempre teve com relação à Santa Eucaristia. 

"As prescrições da Igreja e os textos dos Santos Padres atestam abundantemente o profundíssimo respeito e as grandes precauções que cercavam a Santa Eucaristia. Assim, "que ninguém (...) coma esta Carne se antes a não adorou"; e a quem a come se dirige esta advertência: "...recebe com cuidado de nada perder. É em verdade o Corpo de Cristo". 

2) Que sempre foi assegurado o respeito que é devido ao Corpo do Senhor. 

"Assim, a função de levar a Santa Eucaristia aos ausentes não tardou a ser exclusivamente confiada aos ministros sagrados, a fim de melhor assegurar o respeito devido ao Corpo de Cristo e também de melhor atender às necessidades dos fiéis". 

3) Que o aprofundamento da verdade do mistério eucarístico arraigou o costume de dar a comunhão na língua do comungante. 

"Com o tempo, quando a verdade e a eficácia do mistério eucarístico, assim como a presença real do Cristo foram mais aprofundadas, tornou-se mais consciente o respeito devido a esse Santíssimo Sacramento e a humildade com a qual deve ser recebido, estabelecendo-se então o costume pelo qual deveria o próprio ministro colocar a partícula consagrada na língua do comungante". 

4) Que a "comunhão na boca" deve ser mantida. 
  
"Levando em conta a situação atual da Igreja no mundo inteiro, esta maneira de distribuir a santa comunhão deve ser conservada, não somente em razão de sua multissecular tradição, mas principalmente porque exprime o respeito dos fiéis em relação à Eucaristia. Este uso, aliás, em nada fere a dignidade pessoal de quem recebe tão alto sacramento, ao contrário favorece a preparação exigida para que o Corpo de Deus seja recebido de maneira frutuosa". 
  
Mas, então, por que um grande número de sacerdotes se nega a dar a comunhão da maneira que, como diz a própria “Memoriale Dómini”, dá mais frutos? Por que querem tornar obrigatória a "comunhão na mão"? 
Continuamos, abaixo, com a "Memoriale Dómini".

5) Que a "comunhão na boca" é a maneira tradicional de comungar, que assegura o respeito, o decoro e a dignidade que devem cercar o Corpo do Senhor. 

"Esse respeito bem exprime que não se trata de «um pão e uma bebida comuns», mas do Corpo e do Sangue do Senhor, pelo qual o povo de Deus participa dos bens do sacrifício pessoal, re-atualiza a Nova Aliança uma vez por todas selada por Deus com os homens no Sangue de Cristo e na fé e esperança prefigura e antecipa o banquete escatológico no Reino do Pai". 
"Além disso, essa maneira de fazer, que já deve ser considerada como tradicional, assegura mais eficazmente o respeito, o decoro e a dignidade com que convém distribuir a Santa Comunhão,...". 

6) Que a "comunhão na boca" evita as profanações. 

"(com que convém distribuir a Santa Comunhão), garante também o afastamento de qualquer perigo de profanação das espécies eucarísticas, nas quais, ‘de um modo único o Cristo total e inteiro, Deus e homem, se acha presente substancialmente e permanentemente’; e enfim, essa maneira de ministrar o sacramento assegurava (este verbo no passado é uma antecipação do que vem mais adiante8) a cuidadosa atenção relativa aos fragmentos sagrados como a Igreja sempre recomendou: ‘considera o que deixaste cair como parte de teus membros que assim te falarão’". 

Este final não é um reconhecimento de que a "comunhão na mão" não protege adequadamente as partículas sagradas? 
Além disso, como diz Gustavo Corção, já vemos que a Santa Sé parece ter "a firme intenção de reafirmar o desejo de cercar a Santa Eucaristia de todas as garantias e respeitos assegurados pela tradição e não pode ver com simpatias as poucas Conferências Episcopais (ver 7, a seguir) que solicitavam a adoção do rito da ‘comunhão na mão’". Era ainda de se esperar que a Santa Sé fosse contra os abusos que estavam sendo cometidos, pois já estava sendo praticado um rito antes de ter sido obtida a necessária permissão para fazê-lo. 
Voltemos, porém, à "Memoriali Dómini". 

7) Que a "comunhão na mão" foi pedida por uns poucos e que todos os bispos foram consultados, apesar dos perigos previsíveis, sobre a alteração da verdadeira doutrina. 

"Por isso9, diante do pedido formulado por um pequeno número de Conferências Episcopais e certos bispos a título individual para que nos seus territórios fosse permitido o uso da comunhão na mão, o Soberano Pontífice decidiu consultar todos os bispos da Igreja latina sobre o que pensam da oportunidade de introduzir esse rito. Com efeito, mudanças introduzidas em matéria tão grave, que se prende à tradição tão antiga e venerável, não somente tocam a disciplina, mas também podem acarretar perigos que, como todos tememos, nasceriam eventualmente desse novo modo de distribuir a santa comunhão, isto é, um respeito menor pelo augusto sacramento do altar, uma profanação desse sacramento ou ainda uma alteração da verdadeira doutrina (sic)". 

"Por que, então, pergunta Gustavo Corção, diante de tão evidente desaconselhável alteração pedida por um pequeno número de CNBB's e não justificada por nenhum motivo plausível, a não ser o de contrariar e romper e contrariar a tradição? Não entendemos o acatamento que pode merecer tão insólito pedido depois de tudo o que sabemos e do que acabamos de ler. E quando lemos no próprio documento que os pouco numerosos solicitantes já praticam sem licença aquilo para o que solicitam permissão [ver 9, adiante], ainda menos entendemos o redobrado acatamento que leva o Soberano Pontífice a consultar os bispos do mundo inteiro. Não terão os redatores de tal Instrução da Congregação para o Culto Divino percebido que a insistência de tão desproporcionada consulta viria diminuir a autoridade da secular tradição, a autoridade do Concílio de Trento, do Vaticano I e do Vaticano II, e finalmente a augusta autoridade do sucessor de Pedro - tudo isso para atender a umas poucas agremiações de duvidosíssima catolicidade? Temos a penosa impressão, conclui Corção, de que alguém em Roma tem a esperança de obter um resultado contrário ao que este próprio documento insistentemente ensina". 

8) Que o resultado da consulta universal mostrou que a grande maioria dos bispos foi contra a "comunhão na mão", como está dito na própria "Memoriale Dómini". 

"Essas respostas mostram, então, que uma forte maioria dos bispos acham que nada deve ser mudado na disciplina atual; e que, tal mudança ofenderia o sentimento e a delicadeza espiritual desses bispos e de numerosos fiéis." 
"Assim sendo e levando em conta as observações e conselhos daqueles que ‘o Espírito Santo constituiu administradores para governar’ as Igrejas (Cf. At.20,28), em vista da gravidade do assunto e do valor dos argumentos invocados, o Soberano Pontífice não pensou dever mudar a maneira tradicional de distribuir a santa comunhão aos fiéis." 

"Por isso a Santa Sé exorta vivamente os bispos, os padres e os fiéis a respeitar atentamente a lei de sempre que permanece em vigor e que se acha confirmada novamente levando em conta tanto o julgamento emitido pela maioria do episcopado católico, quanto a forma utilizada atualmente na santa liturgia e enfim o bem comum da Igreja." 

9) Que, porém, surpreendentemente, a Santa Sé — depois de ter concluído que o respeito ao Santíssimo Sacramento e o bem comum da Igreja exigiam vigorosamente a manutenção do rito tradicional depois do resultado da consulta formulada a todos os bispos e apesar de ter Paulo VI dito que não pensava dever mudar a maneira tradicional de distribuir a comunhão — a Santa Sé (repetimos) autorizou o uso da "comunhão na mão" nos lugares onde tal prática já havia sido introduzida. 

"Mas nos lugares onde já foi introduzido um costume diferente - o de depositar a santa comunhão na mão - a Santa Sé, a fim de ajudar as Conferências Episcopais a desempenhar sua tarefa pastoral, tornadas tantas vezes mais difícil nas atuais circunstâncias, confia a essas mesmas Conferências o encargo e o dever de pesar com cuidado as circunstâncias particulares que poderiam existir, sob a condição, no entanto, de afastar qualquer risco de falta de respeito ou de opiniões falsas que poderiam se insinuar nos espíritos em relação à Santíssima Eucaristia e evitar cuidadosamente todos os outros inconvenientes." 
......... 
"A Santa Sé examinará cada caso atentamente, levando em conta os vínculos existentes entre as diferentes igrejas locais, assim como entre cada uma delas e a Igreja universal a fim de promover o bem comum e a edificação comum para que o exemplo mútuo aumente a fé e a piedade." 
Desnecessário será, talvez, dizer que, a partir daí (antes mesmo da entrada em vigor da Nova Missa), este novo procedimento tornou-se universal, utilizado tanto pelas dioceses que já usavam o rito da "comunhão na mão" como também pelas que não o empregavam e, mais ainda, muitos celebrantes se recusam a dar a comunhão segundo a maneira tradicional, tornando assim obrigatório o novo costume, apesar do mesmo permitir a ocorrência de profanações e sacrilégios. 

10) Que os bispos, inclusive os que foram contra a "comunhão na mão", tomaram conhecimento da "Memoriale Dómini" por intermédio das Conferências Episcopais. 

"Esta instrução redigida por mandato especial do Sumo Pontífice Paulo VI foi aprovada por ele mesmo em virtude de sua autoridade apostólica em 28 de maio de 1969 e ele decidiu que a mesma seja levada ao conhecimento dos bispos por intermédio dos presidentes das Conferências Episcopais. Revogadas todas as disposições em contrário."

Assim sendo, em junho de 1969, logo depois de aprovada a "Memorile Dómini", por carta dirigida ao presidente da Conferência Episcopal da França, a Congregação para o Culto Divino autorizava a "comunhão na mão", naquele país, a discrição de cada bispo. 

X - Conclusões 

Monsenhor Bugnini10, responsável pela reforma litúrgica e pela Nova Missa, estava implantando rapidamente a "comunhão na mão". 
Não diz a "Memoriale Dómini" que "o próprio ministro deve colocar a partícula consagrada na língua do comungante"? que "esta maneira de distribuir a santa comunhão deve ser conservada"? que esta é "a lei de sempre que permanece em vigor"? 
Via de regra, não é isto o que se vê. 
comunhão na boca é a maneira de distribuir a comunhão que deve ser preservada, como reconheceu a própria "Memoriale Dómini", mas, na prática, a comunhão é, hoje em dia, em quase toda parte e em quase todos os casos, nas Missas ou fora delas, recebida de pé e na mão.Em 1961, o monge progressista Dom Adrien Nocent, na obra em que defendia a implantação de uma nova liturgia, já pedia a adoção desse rito. Paulo VI "não pensou dever mudar a maneira tradicional" de distribuir a santa comunhão, porém, por mandato especial dele, o maçon Monsenhor Bugnini o fez com a ajuda das Conferências Episcopais. 
O uso da "comunhão na mão", como diz Gustavo Corção, "hoje mais do que nunca expõe o Santíssimo Sacramento da Eucaristia a inimagináveis profanações, que aliás parecem ser o objetivo, muito logicamente, desejado pelas entidades que querem destruir a Igreja e transformar o Cristianismo num Humanismo, que depressa se tornará desumano e infra-humano”. 
Existe, ainda, uma outra razão que também contribuiu para que fosse mudada a maneira tradicional de distribuir a santa comunhão: um desejado falso ecumenismo. Se a Eucaristia é um símbolo materializando a simples lembrança de um acontecimento passado (como querem os protestantes) é inteiramente lógico que haja pouca preocupação com as migalhas que inclusive podem cair no chão (e serem pisadas). Mas se se trata da presença do próprio Deus, de nosso Criador, como o quer a fé da Igreja, como compreender que se admita uma tal prática e até que se a encoraje? A idéia que se esforça por inculcar, assim, com tal procedimento, é uma idéia protestante, contra a qual se rebelam os católicos ainda não contaminados. Para melhor impô-la, os fiéis são obrigados a comungar de pé. 
Tanto faz se o que acarretou a mudança da maneira tradicional de comungar foram as atividades maçônicas ou o desejo de implantar uma outra religião, humanista ou protestante, porque o resultado desejado é o mesmo: a destruição da Igreja Católica Tradicional. E é uma destruição realizada dentro da própria Igreja, pois o que se verifica "é a existência de uma Outra Igreja que, com grande parte do clero da Igreja Católica, quer destruí-la em nome da evolução", como bem disse Gustavo Corção. 
Os católicos passaram a comungar o Corpo do Senhor de pé e na mão e, conseqüentemente, a devoção para com o Santíssimo Sacramento é afetada. Além da falta de respeito, quando uma patena é utilizada, mesmo se as comunhões são pouco numerosas, nela ficam sempre partículas (as "pérolas"). Por conseguinte, estas partículas ficam agora nas mãos dos fiéis. E ninguém se importa mais. O respeito ao Corpo do Senhor diminui, a fé se abala.

A "comunhão de pé e na mão" é uma manifestação pública de falta de fé na presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo na Eucaristia. "O pão, que Eu darei, é a minha carne, para a vida do mundo" (Jo.6,51), e, por causa da dureza desta linguagem, muitos discípulos, então, na Galiléia, se afastaram de Jesus "e já não andavam mais com Ele" (Jo.6,66); já não eram mais discípulos. Aqueles que, hoje, não reconhecem o Senhor na Hóstia consagrada já estão, também, afastados de Jesus e já não são mais católicos. 

  1. 1. Frei Boaventura Kloppenburg - "Compêndio do Vaticano II" - 1983 - Editora Vozes – Petrópolis – pag. 11 e 12.
  2. 2. Essa Constituição diz que devem ser “salvarguardados os princípios dogmáticos estabelecidos pelo Concílio de Trento”, mas a seguir especifica os casos em que fica autorizada a “Comunhão sob as duas espécies” [Cap. II - O Sacrossanto Mistério da Eucaristia, nº 612, página 612 da obra citada na nota de rodapé nº 1]. Na prática, a abertura limitada da Constituição em pauta abriu as portas para inúmeros abusos.
    Os princípios do Concílio de Trento foram estabelecidos na Sessão XXI, de 16-07-1562 – Doutrina da comunhão sob ambas as espécies e das crianças - capítulos 1 a 4, cânones 1 a 3.
  3. 3. Sessão XIII, de 11-10-1551 – Decreto sobre a Santíssima Eucaristia – capítulo 3, cânon 3.
  4. 4. Padre Pierre le Brun - "Explication de la Messe" – 1716 e re-editado em 1949 por Les Editons du CERF – Paris - página 421.
  5. 5. Discípulos de Ário. A heresia desse clérigo da Igreja teve início no século IV e é conhecida como “Arianismo”
  6. 6. Ecumênico está aqui empregado no sentido tradicional de “universalidade” ou de “catolicidade”, o qual era o único sentido existente na Igreja para “ecumenismo” (até o Vaticano II).
  7. 7. Louis Salleron - "La Nueva Misa" - 1978 - Editorial Iction – páginas 150, 151 e 156.
  8. 8. Esta observação entre parênteses é do autor deste ensaio.
  9. 9. Em lugar desse “Por isso”, caberia melhor um “Porém”, pois nada do que foi dito antes justifica o que se segue.
  10. 10. Monsenhor Annibal Bugnini foi destituído de sua função de Secretário da Congregação do Culto Divino, em 1976, quando se tornou evidente que era membro da franco maçonaria, mas, quando ele foi enfim afastado, o mal já estava consumado.

Uma preciosa contribuição à história da "Reforma Litúrgica" de Paulo VI

Agosto 12, 2018 escrito por admin

Um testemunho direto

“Il card. Ferdinando Antonelli e gli sviluppi della riforma litúrgica dal 1948 al 1970” [O cardeal Ferdinando Antonelli e os desenvolvimentos da reforma litúrgica de 1948 a 1970] de Nicola Giampietro O. F. M. Cap. (ed. Studia Anselmiana, Roma) é uma preciosa contribuição à história da “reforma litúrgica” de Paulo VI.

Relator geral da “Seção Histórica” dos Ritos, criada por Pio VI, membro da Comissão Pontifícia para a Reforma Litúrgica, instituída por Pio XII, de 1948 a 1960, Promotor Geral da Fé a partir de 1959, na Sagrada Congregação dos Ritos, perito e secretário da Comissão da S. Liturgia no Concílio Vaticano II, enfim membro do Consilium ad exsequendam constitutionem de Sacra Liturgia, o Pe. Antonelli, O.F.M. Cap. É uma testemunha direta desta sadia renovação litúrgica que estreou sob o reinado de Pio XII, mas já estava na mira de São Pio X e de Pio XI.

Peça mestra, no governo de Pio XII, do restabelecimento da Vigília Pascal (1951) e da reforma litúrgica da Semana Santa (1955), o Pe. Antonelli nutriu, logo de início, a ilusão de que o Concílio iria conduzir felizmente ao porto esta prudente reforma litúrgica que havia dado seus primeiros bons frutos no tempo de Pio XII, o qual parecia ter endireitado com a encíclica Mediator Dei a barra do “movimento litúrgico”, corrigindo os seus desvios e disciplinando as suas tendências aberrantes (v. Enciclopédia Cattolica, verbete Mediator Dei).

Quando Paulo VI, a 4 de dezembro de 1963, promulgou a constituição conciliar sobre a liturgia, o Pe. Antonelli escreveu na sua agenda: “Os ossos de São Pio X devem ter exultado. A Constituição da Liturgia não é outra coisa que o fruto precioso duma pequena semente que ele lançou” (op. cit., p. 204).

 

As primeira dúvidas

Numa conferência de 8 de dezembro de 1964, contudo, o Pe. Antonelli já parecia perplexo: ele se pergunta se este momento histórico representa uma ocasião favorável para a realização da reforma litúrgica e responde: "Eu não sei... talvez algumas coisas precisavam de mais maturação" (p. 208). Entrementes, a aplicação da Constituição conciliar foi confiada ao famoso Consilium. A 3 de março de 1964, após uma conversa com o cardeal Larraona, prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos, o Pe. Antonelli anota na sua agenda a perplexidade comum deles: "A aplicação da Constituição litúrgica é entregue ao "Consilium ad exsequendam Constitutionem". Ora, até se provar o contrário, a Congregação [dos Ritos] é o órgão de governo: se se cria um outro órgão de governo, daí resultará uma confusão" (p. 227, nota 12).

 

O "método de trabalho" do "Consilium"

Após a primeira reunião do Consilium, escreve o Pe. Antonelli "grandes programas, mas a realização não será tão fácil" (p. 228). Ele crê ainda que se trata de trabalhar com ponderação, no respeito prudente da tradição litúrgica, como outrora no tempo de Pio XII, mas bem depressa ele perceberá que não é mais assim. 

"Não estou entusiasmado com os trabalhos ― escreve ele depois da Segunda reunião dos consultores ― ... um grupo de pessoas muito incompetentes, e mais ainda, avançadas nas trilhas das novidades. Discussões inteiramente de vanguarda, à base de impressões, desejos caóticos. O que mais me desagrada é que as atas do que é exposto e as questões correspondentes estão sempre numa linha avançada e freqüentemente numa forma sugestiva. Direção fraca" (p. 229).

Esta primeira impressão negativa se confirma na Segunda reunião do "Consilium". "Entretanto, todas as coisas avançadas aqui passam ― escreve o Pe. Antonelli ― porque nisto está o clima do "Consilium"; há, em seguida, uma grande pressa de se atirar para a frente e não se dá tempo para refletir; [...] Não deveria haver tanta pressa. Mas os espíritos estão excitados e querem atirar-se para a frente" (p. 229).

Dúvidas apoderam-se novamente do Pe. Antonelli, por exemplo, sobre a concelebração (p. 230) e, após a terceira assembléia do "Consilium", retorna a dúvida radical sobre a oportunidade duma reforma litúrgica neste momento histórico particular: "Não gosto do espírito demasiadamente novidadeiro, nem o tom das discussões, muito expeditivas, e às vezes tumultuosas; não me agrada o fato de o Presidente [Lercaro] não fazer todos os participantes falarem, pedindo a cada um o seu parecer. Em conclusão, as coisas que devem ser levadas a seu termo são importantes e eu não sei se a hora é oportuna" (p. 230).

Após a Quinta sessão ou assembléia, o Pe. Antonelli se mostra seriamente "preocupado" com o "espírito inovador" dos membros do Consilium:

"Foi uma sessão construtiva. Mas o espírito não me agrada. Há um espírito de crítica e intolerância para com a Santa Sé que não pode conduzir a bom termo. E, ademais, um estudo muito acentuado de racionalidade na liturgia, e nenhuma preocupação com a verdadeira piedade. Temo que num dia se deva dizer de toda esta reforma [...]: "a liturgia tomou tudo e a devoção se afastou"" (p.234).

 

Preocupações doutrinais

Mas não é somente a devoção que está em jogo. Quando, na sétima assembléia, se discute sobre o rito das ordenações sacerdotais, o Pe. Antonelli "nota com surpresa que, entre os deveres dos sacerdotes, não está mencionado o seu compromisso principal: sacrificium eucharisticum offerre" (p. 236).

No mesmo momento o retém um acidente, devido à incompetência do "corpo judiciário" e à "pressa em avançar". Mas o discurso de Paulo VI, a 19 de abri de 1967, o obriga a reflexões mais graves sobre as responsabilidades deste Papa: "Paulo VI se declarou contristado porque se faziam experiências caprichosas na Liturgia e mais aflito ainda por certas tendências para uma dessacralização da Liturgia. Contudo, ele reconfirmou a sua confiança no "Consilium". E o Papa não percebe que todas as desgraças vêm da maneira com que se organizaram as coisas nesta reforma pelo "Consilium" (p. 237, seg) e apesar disto ― notou logo no início o Pe. Antonelli ― "é certo que Paulo VI seguia atentamente os trabalhos deste "Consilium"" (ibid). O método de trabalho, ou antes, a ausência de todo método de trabalho no "Consilium", não cessa de espantar o Pe. Antonelli. A 23 de abril de 1967, ele anota na sua agenda: 

"... os esquemas se multiplicam sem chegar a uma forma verdadeiramente pensada... O cardeal Lercaro não é homem para dirigir uma discussão. O Pe. Bugnini só se interessa por uma coisa: atirar-se para a frente e acabar. O sistema de votação é pior. Ordinariamente os votos são dados com a mão levantada, mas ninguém conta quem levanta a mão e quem não o faz; ninguém diz: tantos aprovam e tantos não. Uma verdadeira vergonha. Em segundo lugar, jamais se pode saber, e a questão foi posta muitas vezes, que maioria era necessária: maioria de dois terços ou maioria absoluta [...] Um outro defeito grave é a ausência de processo verbal das sessões, ao menos nunca se falou dele e certamente jamais foi lido".

 

Uma "continuação do Concílio" ou ainda o Concílio permanente

Finalmente, depois de três anos de anarquia, ou antes, de ditadura do Pe. Bugnini, o "Consilium" pensa em se dar "Estatutos" e o seu esboço é apresentado a Paulo VI, o qual, por sua vez, o passa, para se fazerem observações eventuais ao Pe. Antonelli. Este que, além de seu mandato de membro do "Consilium", é também o Secretário da Congregação para os Ritos, submete as suas "Observações" ao cardeal Larraona, prefeito desta Congregação, e depois as remete a Paulo VI. Nas suas "Observações gerais", o Pe. Antonelli sublinha que "uma inquietude notável a respeito destas mutações contínuas está muito espalhada numa grande parte do clero e dos fiéis" e que "este estado de instabilidade e de incerteza sobre o futuro, favorece os abusos e diminui sempre mais o santo respeito das leis litúrgicas". Além disso, ele realça a anomalia de "dois órgãos da Santa Sé que se ocupam da vida litúrgica, a Sagrada Congregação dos Ritos e o "Consilium"". Nas "observações particulares", em seguida, o Pe. Antonelli nota que, segundo os estatutos, os membros do "Consilium", "inclusive os Cardeais", serão nomeados na percentagem de 4/5 pela Presidência e somente 1/5 pelo Papa, e isto é inadmissível; "este sistema ― escreve o Pe. Antonelli ― é absolutamente novo e não é outro senão uma continuação do Concílio, coisa sem precedente na história, porque ― mesmo depois dos Concílios de Trento e do Vaticano I, uma vez terminado o Concílio foi a Santa Sé que recuperou sua plena autoridade.

O Pe. Antonelli pede também nas suas observações que se fixe finalmente o sistema de escrutínio, porque ― escreve ele ― "até agora... bastava que um certo número levantasse a mão para se ir adiante, sem que ninguém contasse quantos aprovam ou não. E durante este tempo se faz freqüentemente apelo a um voto afirmativo, sem que ninguém possa provar que ele tenha sido verdadeiramente afirmativo".   

Após as observações do Pe. Antonelli, a questão do "Estatuto" se atola. Paulo VI optará, como veremos, por uma solução diferente, que privará o Pe. Antonelli da reforma litúrgica e deixará as mãos livres a Bugnini. No mesmo tempo, portanto, Antonelli deve sofrer a violenta reação de Bugnini, que ele acaba de descobrir, portanto, a par desta consulta que Paulo VI, pelo contrário, chamará "estritamente reservada" (p. 242).

 

O Pe. Antonelli começa a ver claro

Estamos no fim de 1967 e o Pe. Antonelli escreve na sua agenda: "Confusão. Ninguém possui mais o sentido sagrado e coercitivo da lei litúrgica... nos estudos em maior escala continua o trabalho de dessacralização, que se chama agora secularização; donde se vê que a questão litúrgica [...] se insere [...] num problema muito mais vasto e de fundo doutrinal; a grande crise, portanto, é a crise da doutrina tradicional e do magistério".

A venda começa a cair dos olhos do Pe. Antonelli; não se trata só de incompetência, duma espantosa superficialidade de trabalho "a toda a pressa"; trata-se dum fato muito mais grave: a reforma litúrgica é um instrumento nas mãos dos "inovadores" triunfantes (do mesmo modo que já tinha sido, em parte, o movimento litúrgico nas mãos dos "modernistas em declive").

A 23 de julho de 1968, o Pe. Antonelli revela ao cardeal Benelli as suas "preocupações sobre a reforma litúrgica que se torna sempre mais aberrante. Eu notava, em particular:

1. A lei litúrgica, que até o Concílio era uma coisa santa, não existe mais para muitos. Cada um se considera autorizado a fazer o que quer [...]

2. A Missa sobretudo, é o ponto crucial [...] agora começa a ação desagregadora em torno da confissão;

4. [...]

5. No "Consilium" há poucos Bispos que tenham uma preparação litúrgica, muitos poucos que sejam verdadeiramente teólogos [...]. E este é um lado perigoso. Na liturgia, cada palavra, cada gesto traduz uma idéia que é uma idéia teológica. Dado que atualmente toda a teologia está em discussão, as teorias correntes entre os teólogos avançados desmoronam sobre a fórmula e o rito: com esta gravíssima conseqüência que, enquanto a discussão teológica se mantém no nível elevado dos homens de cultura, uma vez descida na fórmula e no rito, ela toma caminho para a sua divulgação no povo" (p. 257, seg.).

 

Autodemolição da Igreja

Tudo isto é, com a conivência de Paulo VI, o malogro de toda a sã renovação litúrgica. A liturgia é sujeita à demolição doutrinal. O Pe. Antonelli dora em diante está consciente disto e testemunha o seu sofrimento. "O que, contudo, é triste [...], é um elemento profundo, uma atitude mental, uma posição preestabelecida, a saber, que muitos do que têm uma influência na reforma [...] e outros não têm nenhum amor, nenhuma veneração por aquilo que nos foi transmitido. Eles desprezam, logo de início, tudo o que existe atualmente. Uma mentalidade negativa, injusta e nociva. Infelizmente, mesmo o papa Paulo VI está um pouco deste lado. Todos eles terão as melhores intenções, mas com estas intenções, mas com esta mentalidade eles são levados a demolir e não a restaurar" (p. 258).

A 10 de fevereiro de 1969, a propósito do rito do Batismo, Antonelli escreve: "No fim do capítulo doutrinal, eu pergunto: como sucede que em todo o capítulo se fala do batismo para remissão dos pecados mas não se faz alusão ao pecado original?". E a 20 de fevereiro: "nesta manhã mesma tocou-me observar que até lá onde se esperava uma alusão clara ao pecado original, como numa pequena homilia de caráter catequético, parece que se evita falar dele. É esta nova mentalidade teológica que se degrada e não me agrada" (p. 224). Lembramos aqui que, precisamente com a negação do pecado original no célebre texto de São Paulo (Rm 5, 12-21), se tinha aberto o "novo curso" do Instituto Pontifício Bíblico, ou ainda o triunfo da exegese neomodernista, tenazmente combatida pelo saudoso Mons. Spadafora.

As observações do Pe. Antonelli são sempre mais graves e preocupantes. A propósito da discussão sobre os Proenotanda da Confirmação, ele escreve: "Eu me pergunto como se pode dar um parecer sobre estas questões das quais umas são muito graves, com um texto mudado no último momento e apresentado no decorrer da sessão? Não é uma coisa séria." E ainda: "Pessoalmente, eu me pergunto que autoridade e que preparação nós temos aqui para discutir questões muito mescladas de teologia?" (p. 246)

A questão do "Novus Ordo"

Em 1969, estoura a "questão do 'Ordo Missae'". O Pe. Antonelli fala a este respeito no seu Diário, mas também nas suas Notas pessoais sobre a reforma litúrgica. Sigamo-lo.

A 31 de outubro de 1969, ele anota na sua agenda: "Há alguns dias, o Pe. Sticker, salesiano, me diz que o cardeal Ottaviani tinha preparado uma crítica doutrinal do "Ordo Missae" e da "Instructio" anexa. Depois a notícia aparece nos jornais. Mons Laboa me disse que o Papa tinha escrito uma carta de 2 páginas ao cardeal Seper para este examinar a questão. O cardeal Seper, alarmado, tinha falado dela ao cardeal Gut, o qual - muito impressionado - falara da mesma ao Pe. Bugnini. Ontem de manhã, ele me disse que o cardeal Villot tinha escrito  há alguns dias  ao Pe. Bugnini para obstar a qualquer observação relativa ao "Ordo Missae". Mons. Laboa viu esta carta. Depois houve a publicação imprevista da "Instructio" [...] para matar no nascedouro a campanha da imprensa. A seguir, nessa tarde, 31 de outubro, o comunicado da C. E. I. (Conferência Episcopal Italiana, n.d..r), segundo a qual, a 30 de novembro, a versão italiana seria publicada e entraria em vigor na Itália; ao passo que a C.E.I tinha já dito que isto não seria possível. Estamos no reino da confusão. Eu lamento o fato, pois as suas conseqüências serão tristes" (p. 259).

O Pe. Antonelli, pessoalmente, é do parecer que não há "heresias", nem na Instructio nem no Ordo Missae, "mesmo se não se pode negar que as disposições da "Instructio" são confusas e que a sua própria formulação é tudo, menos clara e límpida" (p. 26). Em particular ― admite ele ― "a insistência sobre a idéia de refeição (ceia) que parece estar em detrimento da idéia de sacrifício", à qual se faz alusão "indireta, enquanto que a idéia de refeição volta freqüentemente e de modo direto... Ademais, certas omissões não serviram à clareza" (p. 260) e este foi também o caso da "formulação imprudente do no. 7" (p. 261). Mas, ainda uma vez, o Pe. Antonelli fica estupefato com a maneira de tratar da questão. A 31 de outubro de 1969, ele escreve: "Estou preocupado com a questão do Ordo Missae. Não compreendo por que se inquietam tanto com as críticas do cardeal Ottaviani e, em seguida, quando a imprensa começou a fazer barulho, quando se quis reagir com a publicação da "Instructio"... e o Comunicado da C. E. I com a ordem de pôr tudo em vigor para 30 de novembro, quando os textos não existem ainda e no-los prometem para 15 de novembro. Como se pode preparar uma transformação desta medida em 10 dias?" (p. 259)

Estamos, portanto, nas últimas réplicas. Já em 8 de maio de 1969, Paulo VI, com a Constituição Apostólica Sacrorum Rituum Congregatio dividiu a Sagrada Congregação para os ritos em duas: a Congregação para os Santos e a Congregação do Culto Divino. Bugnini foi nomeado Secretário da nova Congregação para o Culto Divino e Antonelli, secretário da Congregação para os Santos (p. 264). A última sessão do "Consilium" (9 de abril de 1970) coincide com a primeira sessão da nova Congregação do Culto Divino que ― precisa o cardeal Gut ― "é uma continuação do Consilium" (p. 244). Assim, o Pe. Antonelli sai ou talvez, mais exatamente, é excluído da cena da "reforma litúrgica".

 

Um julgamento do qual não podemos partilhar

O autor do livro que, não obstante, quer reivindicar o valor e a obra do "liturgista Antonelli" escreve: "É pena que Antonelli entre tão mal no trabalho da reforma, sobretudo após a supressão da sua Congregação dos Ritos. Portanto, ele permanece amargo. É talvez o destino dos pioneiros: eles abrem o caminho e outros vão adiante, deixando os pioneiros de lado" (p. 247).

Não. O Pe. Antonelli não é "amargo". Ele teria bom motivos para o ser, mas ele não o é: suas notas jamais têm o sabor dum ressentimento pessoal. Por exemplo, quando Paulo VI exclui o Prefeito da Congregação dos Ritos, o "conservador" cardeal Larraona, da "reforma litúrgica", confiando esta última ao "Consilium" presidido pelo cardeal "progressista" Lercaro, ladeado por Bugnini, somente o Pe. Antonelli parece preocupado ― e por justo motivo ― com a "diarquia" e os conflitos inevitáveis que surgirão entre dois organismos, ambos competentes na mesma matéria. Igualmente, quando Paulo VI o exclui também da "reforma litúrgica" preferindo-lhe Bugnini, o Pe. Antonelli se contenta com escrever: "Eu podia dizer muita coisa deste homem. Devo acrescentar que ele foi sempre apoiado por Paulo VI. Não me quereria enganar, mas a lacuna mais importante no Pe. Bugnini é a falta de formação e de sensibilidade teológicas. Tenho a impressão de que se concedeu muito, sobretudo em matéria de sacramentos, à mentalidade protestante. Não que seja o Pe. Bugnini que se tenha criado para si mesmo estas concessões. Absolutamente não foi ele que as criou. Ele se serviu de muitas pessoas e, não sei por que, introduziu neste "trabalho" pessoas hábeis, mas de colorações teológicas progressistas". E, muito generosamente, o Pe. Antonelli acrescenta: "E, ou ele não se deu conta dos fatos, ou então não resistiu, como se não se pudesse resistir [?], a certas tendências" (p. 264).

O julgamento do Pe. Antonelli sobre a "falta de formação e de sensibilidade teológicas" do Pe. Annibale Bugnini coincide, substancialmente com o seguinte julgamento, que, em termos jocosos, mas bem mais pesados, deixou sobre ele o abade D. Pietro Salvini O.S.B.: "No pequeno jornal da diocese de Pisa (no. 12, de 25/03/1973) li que o Bispo Bugnini... teria desejado substituir a homilia na Missa pela dança. Um hotentote desse gênero pode desejar isto e pior ainda" (Divagazioni di una lunga vita ― Divagações duma longa vida, ed. Stella del Mare, Livourne).

Quanto ao incrível "método de trabalho" dos autores da reforma litúrgica, basta reler o que escreve a respeito o prof. Romano Amerio, citando exemplos famosos da decadência da Cúria Romana e de seus organismos. (Iota Unum. Ed. Francesa, N.E.L., 1987), no. 74, p. 145: "a textos pontifícios que puderam gloriar-se durante séculos duma perfeição maravilhosa e duma irrepreensibilidade" corresponde hoje - observa ele - "um mau uso do latim" e uma "falta de rigor dos termos", "merecendo a Cúria ser inculpada pela falta de cultura subjacente em textos pontificais que se puderam gloriar durante séculos, duma perfeição maravilhosa e duma irrepreensibilidade."

Enfim, quanto às perplexidades manifestadas pelo Pe. Antonelli sobre Paulo VI e suas responsabilidades, bastará considerar que o Pe. Antonelli tem êxito em tomar à boa parte mesmo o discurso no qual o papa Montini diz aos membros do "Consilium" que a liturgia "é como uma árvore vigorosa que as suas raízes mantém no solo e sobre cujo tronco brotam novos ramos que cada ano se recobrem de novas folhas" (p. 200). O Pe. Antonelli se detém nestas "raízes" bem fixas no solo da Tradição e não colhe a novidade deste "tronco" "sobre o qual brotam novos ramos que se recobrem cada ano de novas folhas". Quando, então, isto teria acontecido na história bimilenar da liturgia? O cardeal Ottaviani havia vigorosamente sublinhado isto no Concílio, ao dizer: "Procuraremos suscitar o espanto, e até mesmo o escândalo, no povo cristão, introduzindo modificações num rito tão venerável, aprovado durante tantos séculos e que é agora tão familiar? Não convém tratar o rito da Santa Missa como se se tratasse dum pedaço de fazenda que se põe na moda, segundo a fantasia de cada geração". R. Wiltgen. (O Reno se lança no Tibre), 1976, p. 28.

Habituado, com Pio XII, a um trabalho sério e refletido, no respeito da tradição litúrgica, o Pe. Antonelli parece razoavelmente perplexo e depois, pouco a pouco, ele fica sempre mais preocupado com o andamento que a "reforma litúrgica" está a ponto de tomar: aqui, não se trata de "pioneiros" que "abrem o caminho e outros avançam", mas dum verdadeiro desvio da liturgia sujeita ao neomodernismo ― sob a etiqueta de "nova teologia" ― que, como bem compreendeu o Pe. Antonelli, "em regressão na fórmula e no rito, se dispõe a partir para a sua difusão no povo" (p. 257, cit).

Se se pode fazer uma censura ao Pe. Antonelli é de não ter sido "amargo", ao contrário, é de ter tido dificuldade em compreender, e talvez não ter compreendido plenamente a gravidade do que estava para acontecer. Mas é precisamente a sua confiança inicial e sua disponibilidade para uma renovação litúrgica sã que fazem dele uma testemunha preciosa contra a "feroz amputação litúrgica que se quis fazer passar por uma reforma" (G. Ceronetti, La Stampa, 18 de julho de 1990).

Martinus

O drama histórico de dois sacrifícios

Agosto 10, 2018 escrito por admin

Deus é simples, ou seja, sem partes, sem nenhuma possibilidade de divisão e, portanto, de corrupção. Portanto, Deus é perfeito e eterno. Não pode mudar nem morrer. A Santíssima Trindade não pode perder nem diminuir a sua perfeita simplicidade e a unidade de sua substância; mesmo a própria Trindade das Pessoas exprime com a maior plenitude a perfeição da sua natureza divina.  

Por isso, a simplicidade e a unidade são os sinais da perfeição ou da união da alma com Deus. Por conseguinte, quanto mais uma criatura é composta e complexa mais é imperfeita! Os Anjos são compostos somente de sua essência e da existência que receberam de Deus. O homem, ao invés, além desses dois elementos dos Anjos, é composto ainda de alma e corpo. Todos os outros seres (animais, vegetais e minerais) são ainda mais complexos, e precisamente toda essa composição é a fonte de sua decomposição, ou seja, de sua corrupção e morte.

Daí podemos constatar como a característica da divindade ou santidade de uma obra é sempre a simplicidade. Quando Deus quer significar sua presença — ou quando o homem quer significar a presença de Deus, ou procura fazer qualquer coisa de santo e divino — imprime à obra composta a marca da simplicidade. Todo “dualismo” introduziria na obra divina alguma imperfeição como germe da divisão, da corrupção e, por fim, a duplicidade!

Recordo-me a esse propósito de uma reflexão de meu diretor espiritual — um santo religioso — quando foi eleito papa o cardeal Luciani no ano de 1978, o qual escolheu o nome duplo de João Paulo. Ele me disse: “Desagrada-me ver que desse modo se estabelece a duplicidade no cimo da Igreja! O Corpo Místico de Cristo exige uma cabeça única para manter a unidade. Este nome duplo não me deixa esperar nada de bom...”. De fato, os sucessores de São Pedro tiveram sempre empenho em escolher um nome único para manifestar a vontade de governar a Igreja em nome de seu único chefe, Jesus Cristo. A escolha de um nome duplo destruiu esse símbolo muito significativo, preferindo-se significar no nome a referência aos dois papas do Concílio Vaticano II. O que poderia significar coisa de pouca importância, a mim me parece ser uma característica típica da Igreja conciliar, à qual apraz a duplicidade ou, ao menos, o dualismo, batizado com o nome de “abertura” ou “liberdade religiosa” ou “pluralismo”. Vemo-lo ainda hoje a propósito do conflito entre os sustentadores do antigo e os do novo rito da missa, quando se procura obviar com a introdução do bi-ritualismo (celebrar-se nos dois ritos). E isso me faz temer, porque toda história do sacrifício se resume no drama do conflito entre dois sacrifícios.

Devemos amar uns aos outros. Não como Caim, que era do maligno e matou o irmão. E por qual motivo o matou? Porque suas obras eram más, ao passo que as do seu irmão eram boas” (I Jo, 3, 12).

De fato, sabemos que “Abel foi pastor de rebanho e Caim agricultor. Passado certo tempo, Caim ofereceu a Deus sacrifícios dos frutos da terra. Abel depois ofereceu os mais pingues dos primogênitos do seu rebanho. Deus olhou Abel e os seus dons, mas não olhou Caim e os seus dons” (Gen. 4, 2- 5).

Abel ofereceu o mais belo cordeiro de seu rebanho, enquanto Caim ofereceu os frutos da terra. Talvez a sua intenção era boa, mas não soube escolher a coisa mais bela para sacrifica-la a Deus: não ofereceu o mais belo fruto da terra.

A história do homem pode chamar-se a história do conflito entre os dois sacrifícios: o do cordeiro, que foi aceito, e o dos frutos da terra, que não foi aceito; o que foi oferecido sobre o altar em nome do Senhor, e o que foi feito em nome do homem.

O 1° Livro dos Reis (18, 21-40) narra um episódio análogo acontecido entre Elias e os profetas do Baal. Estes — eram quatrocentos e cinqüenta — puseram-se a invocar o nome de Baal de manhã ao meio-dia, depois se agitavam em torno do altar que tinham feito... mas “não se tinha ouvido nenhuma voz e ninguém respondia ou prestava atenção ao que eles pediam”. A primeira concelebração da história resultou em um tremendo conflito (todos foram mortos pelo profeta Elias). Elias, por seu turno, “edificou com pedras um altar em nome do Senhor”, pedindo-Lhe que manifestasse o seu poder: “Mostrai que sois o Deus de Israel e que eu sou teu servo”. E Deus se agradou de seu sacrifício e devorou o holocausto com o fogo.

Não é esse o drama que vivemos hoje? De fato temos a missa de Abel — na qual a Igreja oferece a Deus sobre o altar o seu bem mais precioso, ou seja, o Corpo e o Sangue do Cordeiro imaculado, o primogênito dos filhos de Deus; e temos a missa de Caim, que não tem mais nada a oferecer que “os frutos da terra e do trabalho do homem”, enquanto todos dançam e cantam em torno do altar que foi construído pelo homem como uma mesa. 

Este dualismo não é tolerável, e um destes sacrifícios deverá perecer: o que não foi instituído por Deus para a sua glória! Deverá perecer porque Deus não poderá ser glorificado por um sacrifício inventado pelos não católicos (maçons, protestantes, modernistas) para agradar aos não católicos, como confessou Paulo VI a Jean Guitton. 

Como a Igreja não é bicéfala, assim o seu sacrifício não pode ser senão único (embora seja expresso por ritos católicos diversos). Portanto, se a Missa Tridentina é válida, boa, santa..., como dizem aqueles mesmos que a vetaram há já trinta anos, por que inventaram outra? Por que querer manter a todo custo essa nova missa, quando já foi demonstrado tantas vezes que é dúbia, na sua história como na sua natureza? Como se podem fazer rezar ainda hoje os sacerdotes e o povo católico através dessas preces de um ofertório que não é outra coisa que uma fórmula da Cabala hebraica? Por que esta obstinação em impor o “bi-ritualismo” àqueles que querem conservar a Missa tridentina?

Queira Deus que nossa Mãe, a Santa Igreja Católica, não deva mais suportar esse falso sacrifício. É já muito que tenha sofrido trinta anos. Que a Santíssima Virgem venha logo esmagar esta serpente que quer morder o coração da Santa Igreja, a santa Missa de sempre.

A protestantização litúrgica

Agosto 10, 2018 escrito por admin

Em la Nostra Valle, publicação mensal interparoquial da diocese de Fano-Fossombrone (julho de 1997, pp. 4-5) lemos o título: "Menos missas para uma missa mais verdadeira" [sic!]

O articulista se alegra por "ter ouvido dizer" que "nossos bispos italianos deram normas concretas" para a celebração das missas: "por exemplo: numa mesma igreja, entre uma celebração e outra, interponha-se um espaço de tempo razoável determinado em uma hora e meia, ao menos" (embora o articulista não o precise, temos que supor ques e trata das missas dos dias festivos, dado que uma hora e meia de intervalo para a minimissa de Paulo VI, que não ultrapassa o quarto de hora nem mesmo no melhor dos casos, seria absolutamente incompreensível nos dias de trabalho).

Eis os motivos dessa disposição: "não acumular as celebrações..., pois ninguém deve sentir-se forçado a celebrar apressadamente uma liturgia para não invadir o tempo assinalado para a seguinte". Suposto isto, ainda que não seja verdade, não estaria mais em consonância com a fé limitar o tempo da homilia (geralmente tão prolixa e tão vazia, ou algo pior ainda), do que diminuir o número das missas? Isto porque uma diminuição ulterior do número das missas é a conseqüência inevitável do dispositivo supracitado. Daqui o lema lançado pelo artigo: "menos missas e mais missa", ou seja, "um menor número de missas para uma missa mais verdadeira". Sim, porque -- explica o articulista -- esta é a "razão fundamental" das disposições ditadas pelo episcopado italiano: "é pastoralmente oportuno, ou melhor, necessário diminuir o número de missas" (como se o seu número não tivesse já sido diminuído consideravelmente pelas "concelebrações", nas quais há muitos concelebrantes, porém uma só missa), dado que a sua multiplicação (em tempos passados, entenda-se) "não favoreceu o incremento da estima em que os fiéis tinham um ato tão divinamente grande como a celebração da Eucaristia (...). A multiplicação das missas ofuscou o seu valor, rebaixando a sua celebração ao nível do rotineiro, do obrigatório (preceito!) [sic!], do mero sufrágio pelos defuntos, do devocionismo; a celebração por excelência converteu-se na celebração para todas as circunstâncias... [e então? não o é?]. Eis aí os "Ofícios de missa" pelos mortos [horror!]: uma missa celebrada atrás da outra; eis aí as "festas", cuja solenidade se mede pelo número de suas missas...".

Médico, cura-te a ti mesmo!

Antes de tudo, é evidente que quem assim escreve (e fazemos votos de que não seja um sacerdote, como tememos) não tem a menor estima nem pela santa missa nem pela sua "divina grandeza", embora afirme esta e se levante como seu paladino.

O concílio de Trento definiu solenemente que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu a santa Missa a fim de que a virtude salvífica de seu sacrifício cruento "se nos aplique para a remissão dos pecados que diariamente cometemos" (Denz. 938); e Pio XII escreve na Mediator Dei, ratificando este ensinamento solene: "o augusto sacrifício do altar é um insigne instrumento para a distribuição aos fiéis dos méritos derivados da Cruz do Divino Redentor": cada vez que se oferece este sacrifício, se realiza a obra da nossa Redenção" (1)

Em conclusão, diremos com o Pe. De Condren que "o sacrifício da cruz merece tudo, mas não aplica nada; o sacrifício da missa não merece nada, mas aplica tudo" (2).

Ora, posto que a Missa nos aplica todos os méritos do Calvário, é mister dizer com Santo Tomás: "o bem comum espiritual de toda a Igreja se encerra essencialmente no Sacramento da Eucaristia" (3), e "com mais Missas... se multiplica a oblação do sacrifício e, por isso, se multiplica o efeito do sacrifício" (4), multiplicar as Missas significa multiplicar a efusão sacramental do sangue de Cristo, e, por conseguinte, de toda a graça, sobre a Igreja e toda a humanidade.

Se o articulista de La nostra valle acreditasse, com a Igreja, que cada vez que se celebra uma Missa "se realiza a obra da nossa redenção", consideraria, com a Igreja, "pastoralmente oportuno, ou melhor, necessário" não diminuir, mas multiplicar o número das Missas.

O eco de Lutero

Digna de nota é a impressionante semelhança que prevalece entre os motivos pretextados pelo articulista de La nostra valle e as "razões" aduzidas por Lutero e seus colegas "reformadores".

Na Confissão Augustana que, embora redigida por Melanchton, exprime a "teologia" de Lutero e ainda hoje os protestantes a consideram "como a expressão oficial da fé da igreja luterana" (5), se lê: "é manifesto -- seja dito sem jactância -- que a Missa se celebra com mais recolhimento e seriedade entre nós [protestantes] que entre os inimigos da nossa causa [os católicos]" (6). Como se a disputa versasse sobre o fervor subjetivo, pessoal, e não sobre o valor intrínseco, objetivo, da Missa, sacrifício verdadeiro e próprio, e não comemoração pura e simples da Ceia e do Calvário!

Na Confissão Augustana - protestante - tudo se passa depois do ataque contra as "missas inúteis e supérfluas": do "erro abominável" da Missa como sacrifício "proveio a grande quantidade, a quantidade incalculável das Missas". Pretendia-se obter, assim, com tal ato, tudo o que era necessário. ao mesmo tempo, a fé em Cristo e o verdadeiro culto de Deus caíam no esquecimento" (7). Também os protestantes, portanto, pediam "menos Missas e mais Missa", ou seja "um menor número de Missas para uma Missa mais verdadeira".

Não obstante, os luteranos eram coerentes com a sua heresia: rechaçavam a práxis católica da multiplicação das Missas porque rejeitavam a doutrina católica da Missa como sacrifício; a troco de quê multiplicar um simples "memorial", uma "comemoração pura e simples" do sacrifício efetuado e concluído duma vez por todas?

Mas... e o articulista de "La nostra valle"? É um incoerente ou um outro herege?

Da Missa "protestantizada" a uma mentalidade protestantizante

Em Sì Sì No No (ed. italiana de 30 de novembro de 1996), na seção Semper infideles, escrevemos sobre outra "novidade" publicada por um boletim paroquial da diocese do Cardeal Carlo M. Martini, S. J.: a Missa sem comunidade "só da medo"; portanto, é "absolutamente" necessário reduzir o número das Missas nos dias de festa para ter "menos Missas" e "mais comunidade" (o pretexto é distinto, porém o alvo é o mesmo).

Este também é o eco dito "católico" da polêmica luterana contra as "Missas ditas num canto" (Winkelmess), isto é, "as Missas particulares, celebradas pelo sacerdote, sem a assistência dos fiéis" (8). Porém, também nisto os luteranos são coerentes com a sua heresia: com efeito, ao negar a Missa como sacrifício, negam o valor objetivo, intrínseco, da Santa Missa.

Mas os católicos, que sabem ter a Missa valor em si, independente do número dos presentes, ou melhor ainda: independente da própria presença dos fiéis, podem continuar, pergunta-se, a chamar-se católicos quando, como os protestantes, fazem depender o valor da Missa da assistência da comunidade, e duma comunidade numerosa?

Na Mediator Dei (1947), Pio XII, entre os desvios que então se propagavam subrepticiamente e "contaminam" a auspiciada "renovação litúrgica" com "erros concernentes à fé católica e à doutrina ascética", condena também o erro dos que "aproximando-se de erros já condenados ensinam (...) ser preferível que os sacerdotes "concelebrem" junto com o povo presente a oferecerem, na ausência deste, em particular, o "Sacrifício" e até "reprovam absolutamente as Missas celebradas em particular e sem a assistência do povo", ou afirmam também "que os sacerdotes não podem oferecer a Vítima divina em altares distintos ao mesmo tempo, porque, desta maneira, dissociam a comunidade e põem sua unidade em perigo".

Salta à vista que hoje triunfam os erros condenados por Pio XII, "erros relativos à fé católica", e, por detrás deles, triunfam "os já condenados", muito semelhantes aos de Martinho Lutero e demais heresiarcas do protestantismo. O Novus Ordo Missae nos deu um rito da Missa com o qual "se aproxima, substancialmente, da teologia protestante, que destruiu o Sacrifício da Missa" (9). Hoje colhemos os frutos da Missa "protestantizada": a presença de uma mentalidade cada vez mais protestantizante. E é inevitável: a lex orandi é inseparável da lex credendi; reza-se como se crê e crê-se como se reza: se se reza como os protestantes, acaba-se pensando como eles.

"Uma simples festa da unidade humana"

Até aqui o desprezo essencial que o articulista de La nostra valle mostra sentir pela Missa. Entretanto, relativamente aos fiéis, ele é assaltado por uma dúvida: a de que o seu menosprezo pela Missa não se deva à multiplicação das Missas, mas a fatores muito diversos, entre os quais se conta, embora não em último lugar, a subversão posta em marcha pelo Papa Montini sob a capa de "reforma litúrgica"

 A estima dos fiéis pela Missa não se consegue diminuindo o número delas, e sim restabelecendo aquele rito que é uma "contínua profissão de fé católica" (Pio XII, Mystici Corporis) com a dignidade que sempre teve e hoje não mais possui, e que simultaneamente alimentava a piedade pessoal ou subjetiva, tão denegrida hoje (também pelo articulista) como "devocionismo".

Na Mediator Dei, Pio XII também condenou o erro, que então já se prenunciava, de quantos "queriam abandonar ou atenuar 'a piedade subjetiva' ou 'pessoal', porque 'consideravam que se deviam abandonar as outras práticas religiosas não estritamente litúrgicas e realizadas fora do culto privado".

"É verdade -- escreve ele -- que os sacramentos e o Sacrifício do altar têm uma virtude intrínseca, enquanto são ações do próprio Cristo que comunica e difunde a graça da Cabeça divina nos membros do corpo místico; porém, para ter a devida eficácia, exigem boas disposições da nossa alma". E estas se adquirem recorrendo precisamente a "todos os preâmbulos e exercícios de piedade não estritamente litúrgicos", como "a meditação das realidades sobrenaturais", o exame de consciência e todas as demais "práticas espirituais" (hoje em desuso): "desta maneira, a ação individual e o esforço ascético, dirigido à purificação da alma, estimulam as energias dos fiéis e os dispõem para participarem, com melhores disposições, do augusto Sacrifício do altar; e assim tirarem melhor fruto da recepção dos Sacramentos, bem como a celebrarem os sagrados ritos de modo a saírem deles mais animados e formados na oração e abnegação cristã; e a cooperarem ativamente com as inspirações e convites da graça imitando sempre mais as virtudes do Redentor, não só em proveito próprio, mas também no de todo o corpo da Igreja; dessa igreja onde todo o bem que se realiza provém da virtude da Cabeça e redunda em benefício dos membros". Assim, da piedade pessoal, nasce a participação frutuosa, e, desta, a estima da Santa Missa.

"Por grandes motivos -- assinala Pio XII -- prescreve a Igreja aos ministros do altar e aos religiosos que, em tempos determinados, se dediquem à piedosa meditação, ao diligente exame e emenda da consciência e aos outros exercícios espirituais (cf. CIC, can. 125, 126, 565, 571, 595, 1397), visto estarem eles, de modo particular, destinados a cumprir as funções litúrgicas do Sacrifício e do louvor divino". E conclui: "sem dúvida, a prece litúrgica, por ser uma súplica oficial da inclita esposa de Jesus Cristo, tem uma dignidade maior que as orações particulares; mas esta superioridade não significa uma oposição ou contraste entre estes dois tipos de oração. Ambas se fundem e se harmonizam por estarem animadas por um único espírito: "Cristo é tudo em todos" (Col. 3, 11) e tem o mesmo objetivo: "ver Cristo formado em vós" (Gal 4, 19)".

Ora, o que aconteceu com a "piedade subjetiva" e com as "orações particulares" depois do Concílio? Deixemos que no-lo diga o Cardeal Siri, ao escrever em 1978: "experimenta-se um tipo de oração considerado válido somente se é feito em comunidade e em virtude dela. A oração particular, sobre ser negligenciada, é escarnecida, e daí não se reza, se falta um membro duma comunidade. Parece um simples erro de fato, mas, pelo contrário, não é assim. Debaixo dele se difundem erros veladamente, não percebidos diretamente, mas adquiridos inconscientemente mediante a práxis: quando cometidos conscientemente, constituirão as melhores mostras da raiva contra tudo o que é, que foi e que será. Eis os erros: negação da pessoa em proveito da comunidade (não é difícil ver nisto uma provável nota marxista); a supervalorização da comunidade, não tanto por amor dela (ou do gueto, talvez) quanto por causa da prioridade dada à base sobre o vértice, ou seja: invertem a instituição da Igreja e, portanto, a tornam agradável aos supostos protestantes (...)

"Não é difícil ver nisto o dedo dos que desejam retornar a Lutero. Mas, para cúmulo, há de permeio um Concílio Ecumênico Tridentino que creu fazer muitas dezenas de definições infalíveis no sentido estrito. A práxis inconsciente é o caminho do erro subversivo. A doutrina católica, magnificamente exposta e resumida na "Mediator Dei", concede à piedade e à oração particular o que lhes corresponde, como a princípios de verdade e diligência, (como preparação) para a oração pública e oficial. Aqueles que, nas igrejas, martelam continuamente nos ouvidos, não deixando instante algum para a concentração pessoal, estão, sem sabê-lo (assim o esperemos!) na parte não bem informada [eufemismo caridoso]" (10).

Ao mesmo tempo, quando se denegria e desanimava a piedade pessoal, se introduziam na Missa, reduzida a um rito pressuroso e ambíguo: "costumes estrambóticos e dignos de um circo -- continua o Cardeal Siri -- e com isto não é de admirar que a Eucaristia se torne para alguns uma simples festa da unidade humana" (12). Com a estima que merece "uma simples festa da unidade humana" -- acrescentamos nós.

Dois jubileus e o triunfo da "seita antilitúrgica"

E aqui está a exortação final do articulista de La nostra valle: "neste primeiro ano do triênio de preparação imediata para o jubileu do segundo milênio (...), a reflexão encaminhada para operar a nossa "conversão" deveria levar-nos a pôr a Eucaristia no centro do nosso trabalho de revisão e compromisso". Trabalho de "revisão", cuja primeira etapa se funda na diminuição ulterior do número de Missas, já notavelmente reduzido pelas concelebrações. Exatamente nos antípodas do "ano de Jesus Cristo" celebrado por Pio XI para comemorar o XIX Centenário da Redenção (1935). Naquela ocasião, se celebraram na gruta de Lourdes, ininterruptamente, por três dias e três noites, cento e quarenta Missas, em conclusão do "Jubileu da redenção humana", com sumo agrado de Pio XI, que aplaude "sem reservas" a iniciativa (imitada noutras dioceses) numa carta a D. Gerlier, bispo de Lourdes, na qual declara que o jubileu não se poderia concluir "mais digna e convenientemente". Hoje, a um jubileu concluído com a multiplicação das Missas se quer opor, ao que parece, um jubileu coroado pela... diminuição do número de Missas.

O que D. Guéranger escrevia sobre o que chamava "a seita antilitúrgica" tem todas as características de uma profecia. A propósito do sínodo de Pistóia, cujos erros derivam do protestantismo através do jansenismo, escreve D. Guéranger: "porém, voltando ao divino Sacrifício, vede quão insistentemente se repete esta verdade (em si mesma incontestável, mas da qual é tão fácil abusar nesta época de calvinismo mascarado): que o povo oferece (o Sacrifício) junto com o sacerdote (...). E não basta à seita poder insultar o Sacrifício católico, mas não aboli-lo. Por isso, todos o seu esforço tenderá a tornar menos freqüente a sua celebração (...). Vê-la-emos proibir a celebração simultânea das Missas numa mesma igreja; chegará até a reduzir o número dos altares a um só (...); achará um novo meio para limitar ulteriormente a oblação deste sacrifício a ela tão odioso: seria (é um pretexto!) o restabelecimento do uso da igreja primitiva segundo o qual todos os sacerdotes duma igreja concelebravam uma única Missa..." (13)

A partir da "reforma litúrgica" de Paulo VI, assistimos uma realização minuciosa deste programa de "autodemolição" litúrgica e, se as coisas andam como pressagia o articulista de La nostra valle, o jubileu do ano 2000 coroará, entre outras coisas, também o triundo da "seita antilitúrgica".

 

 

Notas:

(1) Missale Romanum, secreta do IX domingo depois de Pentecostes, citada também pelo Vaticano II no Decreto Presbyterorum Ordinis

(2) Cit. em Per meglio servire Dio, Ed. Paulinas, 1957

(3) S. T., II q. 65, a. 3 ad 1: "bonum commune spirituale totius Ecclesiae continetur substantialiter in ipso Eucharistiae sacramento". Cf. Concílio de Trento, seção de 17 de setembro de 1562: decreto sobre a Santa Missa.

(4) S. T., q. 79, a. 7 ad 3: "In pluribus vero missis multiplicatur sacrificii oblatio. Et ideo multiplicaur effectus Sacrificii" [certamente num número maior de Missas se multiplica a oblação do sacrifício, e por esta razão se multiplica o efeito do Sacrifício]

(5) Segundo Pierre Jundt na introdução à Confissão de Augsbourg (tradução da Aliança Nacional das Igrejas Luteranas da França, 1979)

(6) Ibidem

(7) Ibidem

(8) Ibidem

(9) Breve exame crítico do "Novus Ordo Missae", apresentado a Paulo VI pelos cardeais Ottaviani e Bacci

(10) Renovatio XIII (1978), fasc. 2, pp. 147-150.

(11) Rivista Diocesana Genovese, outubro de 1977, pp. 278-280.

(12) Renovatio VI (1970), fasc. 4, pp. 477-490.

(13) Dom Guéranger, Institutions liturgiques, Le Mans-Paris, 1841, t. II, pp. 607 e ss

Carta Aberta aos Católicos perplexos e a nova Revista Permanência

Dom Lourenço Fleichman OSB

Houve épocas em que as pessoas escreviam cartas umas às outras. A carta fazia parte das relações humanas, e cumpria funções variadas na vida dos homens. Havia cartas oficiais, secas e sem vida; havia cartas agressivas, cheias de brigas e desprezos. Havia cartas de amor, de saudades, de despedida. Cartas circulavam por toda parte quando nascia o bebê, outras eram guardadas no sigilo, quando deixada pelo desesperado. Muitas vezes elas preenchiam o vazio da ausência sentida de um filho, de uma pessoa amada. 

E assim corria o mundo, numa lentidão cheia de sabedoria e recuo, onde a letra caligrafiada era reconhecida, tornava mais calorosa a escrita e a leitura, e onde a espectativa da chegada do correio enchia os dias de um colorido impossível de se reproduzir nos dias atuais.

Quem poderá medir com precisão o imenso prejuízo social, psicológico e espiritual causado pelo desaparecimento das cartas trocadas entre os homens. O mundo do e-mail, pior, o mundo do imediato, do superficial, do banal, dessas mensagens instantâneas e invasivas nunca mais poderá saborear as delícias de uma bela e amorosa carta.

Pois bem, estas considerações me vieram à mente no momento de apresentar aos nossos leitores esta bela carta escrita por Dom Marcel Lefebvre para você, caro leitor, para todos os católicos que ainda guardarm um mínimo de apego e amor à santa doutrina católica. Não é uma carta qualquer, mas uma carta pública, uma Carta Aberta aos Católicos Perplexos. Uma carta de consolação espiritual no meio da guerra sem tréguas. 

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Recomendamos igualmente aos nossos leitores o novo número da nossa Revista Permanência. Vários artigos sobre os Cristeros mexicanos, verdadeiros soldados de Cristo-Rei, que deram suas vidas lutando pela restauração da Religião católica num México maçônico e dominado por anti-clericais.

Uma grande epopéia, cheia de personagens impressionantes, cheia de mártires admiráveis.

No momento em que o Brasil mostra a que nível de decomposição moral e política nós chegamos, o exemplo da reação mexicana de 1925 a 1929 deve animar a todos os católicos para que resistam, para que acordem do sono, para que se dediquem, na oração e no trabalho, à restauração das famílias católicas.

Além desses artigos, o leitore encontrará ainda outros com temas variados e de grande proveito para a formação católica.

160 páginas - R$ 30,00

Orgia religiosa

No dia 2 de novembro, os carismáticos reuniram em São Paulo cerca de 600.000 pessoas no que se está chamando de show-missa. Evidentemente uma tal multidão não passa sem ser notada. Os jornais abriram mais uma vez suas páginas de ouro para notícias tão lucrativas...

Será preciso falar nele também?

Dom Lourenço Fleichman OSB

Por incrível que pareça, sinto-me na obrigação de dizer algumas palavras sobre o Padre Marcelo Rossi. Normalmente não deveria me preocupar com mais um padre progressista, com mais um "carismático". Ele não deveria impressionar aos nossos fiéis, que há tantos anos aprendem o que seja a verdadeira fé, a verdadeira missa. Mas constato que entre nós, algumas pessoas não estão sabendo analisar este fenômeno com os princípios da Fé Católica. Por isso resolvi dizer algumas palavras.
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Eucaristia e Liturgia

 Pe. Calmel O. P.

 Na Igreja Católica, a justificativa da liturgia se encontra na fé depositada nos sacramentos, em particular no sacramento da Eucaristia. Se fosse a Eucaristia desprovida da consistência sobrenatural que lhe consigna a fé imutável da Igreja, seria igualmente desprovida de realidade e de valor a liturgia. Daí, se quisermos chegar a alguma conclusão séria acerca da atual subversão do culto, devemos recordar os ensinamentos da Tradição e do Magistério sobre o sacramento do altar. Enunciam-se tais ensinamentos em quatro proposições: LEIA A CONTINUAÇÃO
 
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