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Catecismo revolucionário

Sumário: — Catecismo Revolucionário, por Manuel da Benarda, Lisboa, 1910 — Um volume, in-8o., de 606 páginas, com XIII de prólogo, por Teófilo Ibérico, e finíssimas estampas.  

 
Do interessante opúsculo supramencionado e que ora nos chega de Lisboa, julgo conveniente extratar algumas perguntas e respostas, que terão, talvez, o sabor da atualidade.
 
P. — Sois revolucionário?
 
R. — Sim, mas não por graça nem de graça.
 
P. — Que é ser revolucionário?
 
R. — Ser revolucionário é aceitar, pregar e praticar as doutrinas da revolução.
 
P. — E quais são elas?
 
R. — Diversas. Pode-se mesmo dizer que seu nome é Legião. Mas a capital é o ódio sistemático da autoridade.
 
P. — É certo que a revolução, em geral, e particularmente a denominada Grande Crise, em França, foi que no planeta estabeleceu a igualdade, a liberdade e a fraternidade?
 
R. — Costumamos afirmar isto, por ser mais conhecida a famosa campanha que se iniciou pela tomada da Bastilha: mas a nossa origem perde-se em a noite dos tempos. Nosso mais antigo fundador foi aquele que primeiro clamou: Non serviam!
 
P. — Que entendeis por igualdade?
 
R. — O nivelamento de todas as condições sociais. Nosso ideal em fisiografia seria uma planície. Detestamos as colinas pretensiosas e os cabeços das montanhas coroados de nuvens. Em geometria suprimiríamos uma das três dimensões. Adoramos o largo e o chato.
 
P. — Entretanto quando vos constituís governos é preciso que exerçais autoridade e que então a cerqueis de todas as notas externas da superioridade social e política.
 
R. — Distinguimos. No princípio abolimos os tratamentos cerimoniáticos, os títulos e condecorações. É o período dos ex: o ex-rei, o ex-barão, o ex-comendador. Depois pouco a pouco restabelecemos tudo isso. Teófilo Braga anda em carros de segunda classe, que no Brasil se chamam caras-duras... Mas já no Rio os cidadãos elevados ao pináculo se fazem admirar em soberbos attelages à d'Aumont. No começo predomina o tratamento de vós. Depois reinam as excelências. Os revolucionários alçados ao poder são muito mais majestosos do que as majestades de nascimento.
 
P. — Compreendo. E como definis a liberdade?
 
R. — Nunca a definimos, porque, como já o tinha dito alguém, toda definição é perigosa. A liberdade, em direito revolucionário, é como aqueles ídolos que só se mostram de relance e entre fumaradas. Sente-se que é uma bela coisa, muitos por ela se batem e morrem, mas sem jamais nitidamente lhe divisarem o vulto.
 
P. — Entretanto poderíeis arriscar, não digo uma definição filosófica, mas alguma coisa que vagamento no-la faça reconhecer.
 
R. — É a licença de fazer cada qual o que bem lhe pareça, contanto que não vá contra o que instituímos.
 
P. — Admiro e entendo perfeitamente a vossa restrição; mas bom seria que por melhor acentuá-la désseis alguns exemplos, tirados, verbi gratia, das revoluções que mais conhecemos, a francesa, encetada em 1789, a brasileira que ocorreu um século depois, e a portuguesa de há poucos dias.
 
R. — Nada mais fácil.
 
Em França, a Declaração dos Direitos do Homem dogmatizou: "Os homens nascem e permanecem livres. A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não seja noscivo a outrem" (arts. 1o. e 4o.). Mas bem pouco tempo se tinha passado e os cárceres estavam cheios e à guilhotina subiam milhares de criaturas humanas a quem nós decepávamos as cabeças porque nestas se tinham aninhado idéias subversivas das nossas teorias e tendentes a destruir o que com tanto trabalho havíamos efetuado.

No Brasil o Governo Provisório, que nascera de uma pertinaz oposição pela imprensa, um mês e oito dias após a sua proclamação promulgou o decreto de 23 de dezembro de 1889, no qual se cominavam as penas dos artigos de guerra (ordenadas do Conde de Lippe) contra os jornalistas réus de intemperança de linguagem, e que foram destarte equiparados às praças de pré insubordinadas.
       
Em Portugal, agora, a liberdade de consciência proscreve os jesuítas e demais ordens religiosas; a liberdade de imprensa mete na cadeia e tortura o intrépido Homem Cristo; a liberdade de reunião proíbe que em cada convento possa haver mais de três frades.
       
Com todas essas precauções bem é de ver que a liberdade, em mãos de revolucionários, perde o caráter perigoso que tinha em vetustos regimens.
 
P. — Pouco haveis explicado relativamente à fraternidade.
 
R. — A fraternidade entre revolucionários também se deve admitir com inteligentes restrições. Seria absurdo conceder que o filho de Luís Capeto, criança vulgarmente denominada Luís Dezessete, fosse irmão do sapateiro Simon que o educava e democraticamente seviciava. Pedro II, no Brasil, não foi, evidentemente, considerado um irmão pelos que o exautoraram e baniram. Como pensar agora que fraternas hajam sido as relações entre o ex-monarca do ex-reino de Portugal e aqueles que bravos atiravam sobre o palácio real? A fraternidade, como as regras da gramática, padece, no direito revolucionário, quase tantas exceções quantos os fatos regulares.
 
P. — A revolução é, por sua natureza, anticristã?
 
R. — Sem dúvida. Ela, cautelosa, nem sempre o declara, mormente nos países onde a superstição esteja arraigada; mas, onde quer que tenha elementos de triunfo, logo suprime o rebuço e com toda a franqueza declara seus intuitos.
 
P. — Quais os processos que em geral seguis para atingir o vosso desideratum?
 
R. — Eles variam ao infinito, segundo as ocasiões e os lugares; mas um dos mais belos exórdios é a separação da Igreja e do Estado. Desamparada da força oficial, em alguns países a religião desmedra e caminha para a sua extinção, mas quando isto não se realize, temos o recurso de açular a populaça, criar ódios ferozes contra as comunidades religiosas, expulsá-las como agremiações de malfeitores e deste modo coarctar a expansão de propagandas adversas.
 
P. — Não será de recear que desta invasão das consciências se originem formidáveis relutâncias e talvez sangrentos embates?
 
R. — Em verdade assim pode acontecer; mas para que tal não suceda, deve-se proceder com a devida cautela. Sonda-se a opinião; contra os cobardes, que são a maioria, emprega-se o terror; dão-se gorjetas aos venais, acena-se aos ávidos com o quinhão no confisco.
 
P. — A revolução não recua ante o emprego deste meio extremo, que, no fim das contas, nada mais é do que tirar o alheio contra a vontade do seu dono?
 
R. — A revolução tem, para essa e outras dificuldades, uma fórmula magnífica e que salva todos os escrúpulos: — Salus populi suprema lex est. Que a salvação do povo seja a lei suprema. Com esse latim lícitas se tornam diversas enormidades úteis: — a subtração de bens alheios, o perjúrio, o abandono das bandeiras e do soberano, o assassinato pseudojurídico de inimigos políticos. O confisco, segundo vedes, não é o mais rijo de tais expedientes e tem, melhor do que os outros, a imensa vantagem de arruinar o vencido e opulentar o vencedor.
 
P. — Tendes explanado assaz claramente as forças de que dispõe a revolução para dar combate à autoridade e levá-la de vencida; mas, permiti que vos objete, como todos esses elementos entre si não se travam constituindo um sistema, parece-me que, em seguida à vitória, haveis de experimentar enormes dificuldades.
 
R. — Vossa objeção tem algum fundamento. Um dos primeiros embaraços é conciliar as aspirações divergentes dos ideólogos. Estes querem alhos, e aqueloutros bugalhos. Os contra-revolucionários aproveitam-se destas divisões e então planeiam restaurações criminosas. Mas cumpre não exagerar o mal. As divergências doutrinais apenas são terríveis entre homens mais aferrados aos princípios de que às conveniências, e geralmente essa não é a hipótese entre revolucionários. Além disto o instinto de conservação sempre lhes dita umas tanta transigências que afinal se tornam de praxe.
 
P. — Entendeis que o Positivismo, pelo menos o ortodoxo, desaconselhe as revoluções ou lhes seja infenso?
 
R. — É o que comumente ele propala, até mesmo apoiado em textos do filósofo seu criador; mas por outro lado, atendendo-se à facilidade com que o Positivismo se conforma com as revoluções e logo trata de lhes dar o fomento das suas pastorais, não é arriscado pensar que lhe sorri a violência consumada.
 
P. — Em todo caso o Positivismo ortodoxo nobremente se opõe a todos os excessos contra a liberdade de propaganda.
 
R. — Sim, o que bem lhe assenta e até lhe vale as simpatias de alguns eclesiásticos. isto nos cria aborrecidos estorvos. Mas cumpre notas que, no Brasil, têm sido positivistas, e dos ortodoxos, os autores de vários movimentos sediciosos.
 
P. — O intuito do Positivismo — organizar a sociedade sem Deus e sem rei — não é também o que a revolução tem por fito em suas onímodas manifestações?
 
R. — Sim, conquanto os roteiros sejam diferentes. Por muitos caminhos se foge de Roma.
 
P. — Acreditais então que nas campanhas ultimamente ganhas pela revolução em França, no Brasil, em Portugal, não só as realezas pereceram, mas também periclita a causa da religião?
 
R. — Certamente. E os intuitos revolucionários ainda visam outro ponto, na esfera econômica, isto é, a supressão do direito de propriedade.
 
P. — Podeis achar, em algum mestre da vossa grei, qualquer trecho em que se condense o vosso pensamento?
 
R. — Sim, no bem conhecido Proudhon.
 
P. — Fazei-me o favor de citá-lo.
 
R. — Procurarei um breve e conceituoso período:
 
"Nosso princípio (disse ele) é a negação de todo dogma; nosso fim é o nada. Negar, negar sempre, tal o nosso método; e ele nos tem conduzido a assentar como princípios — em religião, o ateísmo; em política, a anarquia; em economia, a não-propriedade."
 
P. — Os governos, que isto não ignoram, saberão pôr-vos peias.
 
R. — Os governos são nossos cúmplices. Os povos são nossas conquistas. A nós o futuro!
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