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A desmoralização do partido comunista

Os caminhos já percorridos até aqui pelos comunistas, em seu papel que permanece ativo na decomposição do mundo, permitem-nos uma tentativa de avaliação de suas possibilidades de ainda impressionar a inteligência e a retidão de muitas pessoas que se vêm sem alternativas ou que julgavam encontrar nas vias de esquerda a única maneira de dar sentido à sua vida pela dedicação aos outros.

Sim, houve tempo, há muitos e muitos anos, em que um moço dotado de alguma inteligência e incapaz de uma baixeza moral, mesmo sem muita consciência disso, sentia-se atraído pela lógica interna aparente de um sistema intelectual que parecia ter respostas para todos os problemas fundamentais da vida e, além disso, tinha por ideal concreto uma aparente perseguição de justiça para os desvalidos. É claro que essa atração se exercia sobre almas destituídas de uma visão religiosa verdadeira, herdeiras de uma civilização feita de erros acumulados e de falcatruas já tão bem assentes que formavam uma constelação de “verdades” aceitas, não mais postas em discussão, “verdades” que levavam inocentes a só encontrar sentido nas alternativas socialistas ou marxistas. E uma vez adotadas tais alternativas, a lógica que pedia eficácia à ação prática levava estas almas a encontrar nos Partidos Comunistas, entre as demais vias de esquerda, a que lhes parecia a mais acertada e mais plausível.
 
Naqueles tempos, entretanto, o que nimbava de auréolas de luz o ideal comunista e a ação dos Partidos era uma espécie de certeza de que este era o caminho da humanidade, desenrolar inevitável da História, que uns logo notavam como tal e outros só tardiamente iriam percebendo. Era inevitável que esta confiança “religiosa” incluísse uma espécie de “fé” na pureza de intenções dos “dirigentes”. Realmente, os “dirigentes” eram pessoas que os iniciantes consideravam incapazes de trapaças, de rasteiras nos rivais a caminho do poder ou mesmo nas distribuições de tarefas nas células, quando a uns, neófitos, se davam incumbências como pichar paredes ou distribuir volantes e a outros, “dirigentes”, encargos de retaguarda mais protegida. Imaginar que os “dirigentes” na União Soviética poderiam reservar para si, sob tais ou quais pretextos, posições privilegiadas que transferiam parcialmente para quem os ajudava ou a quem tinham afeto; imaginar que os “dirigentes” disputavam encarniçadamente a simpatia dos superiores, que o ambiente nos níveis mais altos de “direção” era de pura e simples bajulação indecente e sobretudo que a ambição maior era a procura desenfreada de poder, isso tudo soaria apenas como propaganda burguesa. Em alguns, já percebiam que nem tudo eram mentiras no cipoal de acusações de “revisionistas” e “grupos anti-partido”  e “velhos comunistas” e “camarilhas chauvinistas” e outras seitas em que se foram dividindo ao longo dos anos os que tinham o segredo da História, nestes a resistência à desilusão completa se mantinha pela tristonha consideração de que tais desvios eram derrapagens inevitáveis, conflitantes ainda e sempre em que o misterioso impulso em que secretamente acreditavam com fervor religioso terminaria por prevalecer e recolocar nos trilhos a longa marcha para a sociedade sem classes e sem governo, apenas com administração das coisas e não mais exploração do homem pelo homem.
 
Muito tempo resistiram os que resistiram. Muita coisa engoliram e muita baixeza acabaram fazendo, ao menos no íntimo de seu coração apoiando o que lhes repugnava antes, revendo princípios fundamentais e declarações enfáticas que antes tinham, também eles, adotado como seus. Ao longo dos anos se foram sucedendo os escândalos comunistas: o suicídio de Maiakovsky, o poeta, evidentemente levado ao desespero quando viu em que tinha dado sua luta contra o Czar pelos ideais da Revolução; depois a dissidência Stalin/Trotsky que terminou pelo bárbaro assassinado deste último, caçado no mundo inteiro pelos agentes de Stalin afinal infiltrados na casa em que Trotsky residia, no México, e que ali meteram uma picareta em sua cabeça; depois veio, por três vezes, em 1922-23, em 1925-27 e em 1933-34, a fome que assolou um país escangalhado pelos intelectuais que fizeram a revolução comunista, fome que matou milhões de russos; e mais a inacreditável baixeza de Lênin e de seu discípulo Stalin que apelaram, por causa da fome, para a livre iniciativa na agricultura e mais tarde, cheios de celeiros, massacraram os proprietários de pequenas fazendas, chamadas kulaks, que eles mesmos tinham incentivado; depois vieram as denúncias famosas de André Gide; depois os “julgamentos de Moscou” em que a profunda estupidez dos comunistas levou-os a cair como patinhos nas ciladas do serviço secreto alemão e eles próprios, os comunistas, eliminaram praticamente toda a alta oficialidade do seu assim chamado Exército Vermelho; depois houve o abandono dos comunistas espanhóis em 1938 quando a Rússia temeu um envolvimento na guerra civil da Espanha semelhante ao que Hitler quis e fez; depois houve o Pacto com Hitler que só com esse apoio e por causa desse apoio pôde começar a Segunda Grande Guerra, nove dias depois de ver assinar o acordo Ribbentrop-Molotov; depois houve o ataque russo-alemão à Polônia, da qual a Rússia tirou metade do território que até hoje conserva, e ainda o apoio dos comunistas do mundo inteiro a Hitler; e mais o covarde ataque da Rússia à Finlândia da qual tirou fatias de terras e paralisou definitivamente como nação, enquanto o mundo ocidental estava muito ocupado com a Alemanha; depois houve a pressão dos comunistas que procuravam incitar o mundo ocidental a não vencer Hitler mas a ajudar a Rússia de qualquer maneira, abrindo o segundo “front” no continente europeu imediatamente; e mais houve a baixeza de declarar guerra ao Japão só depois que Hitler estava vencido e a bomba atômica havia sido lançada sobre Hiroshima; depois os comunistas abocanharam os países que ocuparam e encerraram na “cortina de ferro”... e houve também o roubo dos segredos de fabricação da bomba atômica; depois, a ambição de poder e os fracassos da agricultura soviética levaram Kruschev a fazer a denúncia pública dos crimes de Stalin que no final de seu governo massacrou cerca de 800.000 pessoas sob a pressão de um misto de medo de conspiração contra seu poder pessoal e ódio a judeus e outros grupos étnicos ou religiosos; depois ficou moda entre comunistas denunciar o chamado “culto a personalidade” que nós conhecemos sob o nome de bajulação canina, motivo pelo qual, a cada novo “dirigente” no poder, as coleções de livros de História, nesse país “científico”, são recolhidas e re-escritas para denegrir as anteriores e enaltecer os novos “dirigentes” conforme as conveniências da politicagem do momento; isso, aliás, é motivo para que se conte a piada: “na União Soviética, o presente é sempre o mesmo, o passado é que muda sem cessar”; depois veio a denúncia da “nova classe” em que Milovan Djilas mostrou como os “dirigentes” substituíram os burgueses nos prazeres da vida ao mesmo tempo em que mantêm seus pretextos e suas mentiras com as quais procuram se justificar a seus próprios olhos; depois as perspectivas de nepotismo se evidenciaram com as posições de “genros” e “filhos” de dirigentes nos mais altos cargos e os privilégios de automóveis e “dachas” que esses cargos fornecem; depois a maldade evidente que dirige e coordena o terrorismo internacional, isto é, os mais perversos e criminosos assassinos que a humanidade já conheceu, capazes de assassinar reféns e jogar bombas a esmo em supermercados, cinemas, restaurantes, hospitais, aeroportos, etc.; depois a guerra-fria entre comunistas russos e chineses, chineses e albaneses, “euro-comunistas” e “leninistas”, etc; depois... meu Deus... tantas coisas mais, o sistema de reféns internos que só nos países comunistas existe como denunciou Soljenitzin; o internamento de dissidentes em hospícios, tratados com injeções de Haloperidol, Triftasina e Enxofre conforme denunciou na televisão francesa o matemático Pliutch; a comparação entre a fisionomia de fantasma de Bukovsky, libertado das prisões soviéticas, do “Gulag” que Soljenitzin denunciou, e o retrato de Corvalán que saiu das prisões chilenas gordo, bem vestido, arrogante embora, como sabemos, para um comunista, Pinochet é que tortura... Tanta coisa, tanta coisa ainda falta nesta lista infindável.. nesta história de maldade, sangue e mentira como jamais houve semelhante em toda a história da humanidade, como jamais se pode comparar com qualquer outra história de maldade, sangue e mentira.
 
O fato é que tudo isso, todos esses anos, agora, não podem ser mais ignorados, temperados, “explicados”. Agora não é mais possível a um moço dotado de retidão na alma e de alguma inteligência, deixar-se ainda enganar por “ideais” de nobreza por parte de comunistas ou neo-esquerdistas que ainda venham querer entabular conversa em termos de “acabar com a exploração do homem pelo homem”. Meu Deus, isso é que é verdadeira piada.
 
Dentro da União Soviética, como sabem aqueles que acompanham estas coisas, a grande saída para os moços — é o álcool, a embriaguez. Nada mais tem na vida depois que algumas experiências com o sexo tiram-lhe certas ilusões. E o pior é que embora se digam “preocupadas” com o fato, como, de vez em quando, admitem as autoridades soviéticas, o que é realmente fato é que são do governo, como tudo o mais, as fábricas de bebidas alcoólicas. Fora do mundo comunista, em nosso mundo ocidental, para os moços que não têm ou julgam não ter alternativas — já que lhes repugna também, e com razão, o mundo liberal — não é mais possível fazer das tripas coração e se deixar empolgar pelo comunismo. Ficam num vago anseio de “liberdade” que não sabem bem exprimir e que quereriam juntar a uma organização social que acabasse com a pobreza. Pobres moços, pobres ingênuos que não têm quem lhes mostre que não é no plano da pobreza material que está o maior drama do homem e que nosso mundo morre de falta de sabedoria e de sentido espiritual para a vida mais do que de falta de pão.
 
Tudo isso veio-me à mente porque ouvi, faz pouco, uma declaração de um desses antigos comunistas convictos, cuja nobreza ou retidão de alma é evidente para os outros já que, para ele mesmo, sua atenção não se demora em tais considerações. Esse homem, falando-me do vazio interior que assola a sua alma e angustia o seu espírito — descoberta importante para quem ainda se julga um comunista de pensamento — respondeu-me, quando lhe perguntei: “Mas, e o Partido?”. — “O Partido?”, respondeu-me, “o Partido está desmoralizado”, e acrescentou que só via uma instituição social que ainda podia socorrer os homens: a Igreja Católica. Caí das nuvens, outra vez. A Igreja? Que Igreja?
 
Depois de tudo o que acima se disse, depois de tudo o que acima se recordou, o mais inacreditável, absurdo, horrível espetáculo que enche a terra de malignidade e de estupidez é que aos outros comunistas, os perversos, só restou — ainda restou — um único ambiente em que podem ainda recrutar não apenas cúmplices (isso se consegue mediante promessas de remuneração de uma forma ou de outra) mas admiradores: só entre imbecis pseudo-intelectualizados do mundo eclesiástico, episcopal, cardinalício, é que ainda pode o Partido Comunista encontrar quem, com fervor, admire os que “têm cuidado com os pobres”, assim designando... os homens de esquerda em geral e os comunistas em particular. Só dessa raça, dessa “retaguarda da tribo marxista em marcha para a terra prometida” como dizia Bernanos, podem ainda sair ativistas jovens para o Partido, os que já deram início às agitações na PUC do Rio de Janeiro e na PUC de São Paulo e só dessa gente que ainda ostenta títulos de bispos e cardeais é que podem emergir os Arns e Avelar Brandão a se julgarem, ainda por cima, iniciadores, precursores, “líderes” em suma da fementida, corrompida, destruída, desmoralizada, maligna, maldita, mentirosa fé ateísta e antiteísta na evolução e na História que esses ainda ditos católicos adotam, mascarando-a com terminologia cristã já totalmente desvinculada de qualquer sentido sobrenatural e de qualquer comprometimento com o passado da Igreja.
 
Esse é o espetáculo monstruoso que vemos em nossos dias a envenenar o mundo e a encher as almas religiosas de uma profunda repugnância e de uma angústia quase insuportável. Essa é a razão pela qual já nos parece impossível, de nosso lado, julgar que aquilo que se costuma chamar de “Crise” dentro da vida da Igreja seja ainda uma simples crise como tantas houve no passado, mais grave pode ainda acontecer com as altas hierarquias da Igreja, pondo a perder o povo fiel, do que a mera expansão em termos quantitativos, da subversão inaudita que já violentou tudo o que se tinha por sagrado e imutável em toda a tradição de 20 séculos da Igreja Católica? Que falta ainda para que possamos nós, mais uma vez, lembrar as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo — “haverá ainda fé no mundo quando vier o Filho do Homem?” — palavras que agora nos soam com o terrível sentido de uma possibilidade evidente?
 
 
PERMANÊNCIA, n° 122-123, Janeiro-Fevereiro, Ano XII.

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