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A Cultura e Hamlet

Niilismo e crença na peça Hamlet, de Shakespeare

 

O prof. David Allen White, como insistia nas suas aulas e conferências, apontou que as ideias inscritas em Hamlet, de Shakespeare, foram o começo do mundo moderno. A peça, escrita por volta de 1600, dramatiza o conflito entre a rica cultura católica da Idade Média e o ascendente individualismo dos inícios da idade moderna, uma das mais profundas mudanças de paradigma da civilização ocidental, e cujos efeitos persistem até os nossos tempos pós-modernos. Uma imagem útil dessa mudança vem do filósofo Eric Voegelin, que percebeu que o homem moderno deixou de considerar-se um elo na cadeia hierárquica que se origina em Deus e passou a ser ele mesmo o centro do universo e de todo o significado – uma visão “macroantrópica”, nos termos de Voegelin. Um fato notável é a ressurreição, por obra dos humanistas da Renascença, da frase de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Um dos eixos da ação de Hamlet é a dúvida que corrói as velhas certezas e que permite que o príncipe das vestes negras procure de per si o significado das coisas e confie no seu raciocínio e na sua melancolia a fim de atuar no podre reino da Dinamarca. Embora a tragédia se encerre com múltiplas mortes, Shakespeare durante o curso da trama dá uma resposta e uma solução às dúvidas de Hamlet, com um resultado angustiante; essa resposta estabelece as bases para uma restauração da tradição perene, e dá uma das maiores contribuições a ela.

 

As dúvidas corrosivas de Hamlet

Um breve porém significante momento no Ato 2, Cena 2 da peça identifica o problema central desse primevo homem moderno. Na tentativa de explicar o comportamento estranho de Hamlet, o conselheiro da corte Polônio lê para o rei e a rainha uma carta de amor que Hamlet enviara à sua filha Ofélia. Escrita num tempo anterior à narrativa, enquanto ainda estudava na Universidade de Wittenberg – célebre por ser o lugar onde Lutero produzira as 95 teses e como que o nascedouro do Protestantismo – a carta de Hamlet expressa as dúvidas corrosivas que envolviam o início da cultura moderna:

 

          Duvides [isto é, suspeites] que a estrela é ardente,

          Divides que o astro-rei irá se pôr,

          Duvides [isto é, suspeites] que a verdade sempre mente,

          Mas não duvides tu do meu amor.

 

Ó querida Ofélia, enojam-me esses números [isto é, versos]. Falta-me a arte de expressar os meus gemidos. Mas amo-te bem mais que a eles. Oh, muito mais, acredites. Adeus.

          Sempre mais teu, caríssima senhora,

          Enquanto nele durar esta máquina,

          Hamlet.

 

É interessante que os dois primeiros versos do poema envolvem dúvidas sobre a visão tradicional do universo: pensar que as estrelas são ardentes significa que elas não são feitas de matéria celestial como se pensava; duvidar do movimento do sol indica a crença no movimento heliocêntrico em oposição ao modelo geocêntrico de Ptolomeu. Mais importante ainda é como esse modo de ver as coisas se universaliza no terceiro verso: Ofélia deve suspeitar que a mesma verdade é falsa. O jovem desnorteado só pode ter certeza duma coisa: do seu íntimo sentimento pessoal de amor por Ofélia. O ácido corrosivo da dúvida dissolveu tudo exceto a emoção, e o lance subsequente mostra que os sentimentos, ainda que se expressem de forma apaixonada, podem mudar. Ataques de melancolia – Hamlet é o que hoje em dia chamaríamos de depressivo diagnosticado – misturam-se com a incerteza e a angústia, quiçá também a loucura oprima o príncipe; ele despenca no abismo do niilismo, ao rejeitar quase tudo e quase todos ao seu redor, inclusive Ofélia na terrível cena logo após o famoso discurso “Ser, ou não ser”.

Depois de quatro atos de confusão, angústia, e até assassinato, o ato final começa no local para onde se inclina a peça inteira: no cemitério. A Cena 5, Ato 1 é o passo mais importante do drama moderno; ele não apenas recapitula o tema do niilismo mas também dá uma resposta a ele. Já de volta à Dinamarca, após sobreviver providencialmente a uma tentativa de assassinato, Hamlet, com o seu amigo Horácio, aproximam-se de dois homens cavando uma cova. Uma vez que por falta de espaço reutilizam-se as covas, o coveiro e o seu assistente estão empurrando vários ossos para o lado enquanto Hamlet prepara a cena. Começa o diálogo com um gracejo entre os coveiros e depois entre eles e Hamlet; a comédia recorda o homem da sua natureza humana e coloca-lhe os pés no chão, de molde que ela é relevantemente apropriada a uma cena cujo tema é o final de cada um dos homens. Os coveiros pedem a Hamlet que identifique um crânio em particular, mas porque a morte é uma grande niveladora Hamlet é incapaz de fazê-lo. Enfim, diz o coveiro que o crânio pertencia ao antigo bobo da corte, Yorick. O que se segue é um dos mais icônicos momentos da história do drama: Hamlet segura o crânio dum comediante, “um tipo de graça infinita e de incomparável fantasia”, que outrora produzira “gracejos que faziam os convivas cair na gargalhada”. Nada disso importa, contudo, pois tudo se encaminha à dissolução, retorna ao pó. Hamlet pede ao crânio que se dirija ao “quarto da minha dama e diga-lhe” que ainda que ela emboce o rosto com uma polegada de maquiagem, ao cabo também ela transformar-se-á numa caveira. No abismo niilístico de Hamlet, não existe significado real: Yorick, uma bela dama, Alexandre o Grande, “o imperioso César, morto e tornado em lama”, tudo se transfigura em caveiras fétidas a apodrecerem na terra. Imediatamente após esses momentos, que antecipam o drama ateísta do século XX, chega a procissão fúnebre de Ofélia: enquanto Hamlet estava fora, a virtuosa moça enlouquece e afoga-se. Imagens da beleza pousam no cemitério niilístico: “a carne bela e impoluta” de Ofélia e as violetas são símbolos da castidade e da fidelidade. Hamlet, espantado, apresenta-se e faz um anúncio decisivo:

 

          Este sou eu,

          Hamlet o Danês,

          Amei Ofélia. Nem quarenta mil irmãos,

          Some-se embora todo o seu amor,

          Seriam páreos ao meu.

         

 

Amor, e não falta de sentido

No abismo do túmulo, quando lhe morrera alguém próximo, Hamlet não encontra a falta de sentido, mas a força mais poderosa do universo: o amor. Com a reafirmação do sentido, pode Hamlet novamente ser uma pessoa completa – por isso, ao dar o passo à frente, diz o seu nome e apresenta o seu título real – mas na tragédia é significativo que tal fato ocorra apenas após a morte de Ofélia. Nas palavras de Charles Boyer, apenas depois de ser ela destruída durante um lance trágico o herói consegue perceber “o que se perdeu em razão da sua visão equivocada do mundo”. Com a proximidade da sua própria morte, na cena seguinte, a última da peça, Hamlet expressa de contínuo a sua crença na velha ordem. Diz ele a Horácio que “Há uma divindade que ao fim nosso molda / Mui distinto do que ansiamos”, que “Na queda dum pardal / Especial providência existe”, numa resposta clara à mais célebre fala da peça, “A prontidão é tudo… deixa estar”. Eis o conhecimento adquirido pela dor, que é um dos distintivos da tragédia.

Em The Death of Christian Culture [A Morte da Cultura Cristã], John Senior escreve que “a literatura é o boi de carroça da cultura, e a sua besta de carga”. Na literatura, as ideias e os valores da cultura se transmitem indiretamente enquanto o leitor vivencia a história ao lado das personagens. O conflito de Hamlet se torna o nosso conflito, assim como é nossa a peregrinação de Dante e nossa a viagem de Ulisses. Nesse sentido os grandes autores não são apenas “as breves crônicas abstratas do nosso tempo” mas os arquitetos da mesma civilização. Citando novamente Senior:

“A cultura, como em ‘agricultura’, é o cultivo da alma a partir do qual o homem cresce. Para que se estabeleçam os métodos adequados, devemos ter ideias claras acerca da colheita. ‘Que é o homem?’, pergunta o Catecismo de Um Vintém [The Penny Catechism], que responde: ‘Uma criatura feita à imagem e semelhança de Deus, para conhecê-Lo, amá-Lo e servi-Lo’. A cultura, portanto, tem claramente essa simples finalidade, a despeito da complexidade e a dificuldade dos meios.”

Por isso, a cultura sempre repetirá as mesmas verdades sob distintas expressões no decorrer do tempo, pois sempre haverá a necessidade de relembrar os homens daquilo que já conhecem mas esqueceram, e daquilo que amam, para que esse amor seja novamente acalentado.

 

(The Angelus - tradução: Permanência)

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