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A Revolução Cultural de Mao

Marcel Clément

 

Não pretendem estas páginas recapitular a história do comunismo, mas sim considerar sua filosofia, sua estratégia e seus métodos multiformes na medida em que essas coisas, no seu conjunto tendem a solapar a civilização humana e cristã. Nessa perspectiva, o “Maoísmo”, além de aperfeiçoar as técnicas psicológicas de Lenine, levou a intuição revolucionária até as mais extremas conseqüências, trazendo à tona a noção de revolução cultural.

Forjando essa noção, Mao separou-se do Marxismo-Leninismo clássico. Para este último, a cultura aparecia como uma simples superestrutura inconscientemente..., inocentemente secretada pela classe social. Mao não vê as coisas assim. Para ele a cultura é forjada cinicamente pela classe social como uma arma da qual se serve para defender seus interesses.

A burguesia forjou para si mesma, a sangue frio, e com plena consciência, a arma da cultura burguesa (isto é, a cultura do passado, em todos os países). O proletariado deve recusar essa arma maldita e forjar por sua vez, com o mesmo sangue frio e a mesma consciência, uma nova arma, igualmente acerada e aguçada. A conseqüência de tal doutrina, certamente, é a condenação em bloco da arte e do pensamento do passado, tanto estrangeiro quanto chinês1.

Em teoria, Mao está de acordo com Lenine. Chega a cita-lo, considerando, como ele, que “a literatura e a arte são pequenas engrenagens, pequenos parafusos no mecanismo geral da revolução”.[i] Mas na prática afasta-se dele a olhos vistos, pois a essência da revolução, no pensamento marxista-leninista, é o estabelecimento de novas estruturas econômicas capazes de facilitar a passagem para uma forma socialista e depois comunista de vida coletiva. Isto já fora alcançado pela revolução chinesa: plano anual, direção coletiva das empresas, comunas populares no meio rural, etc. Mas não era suficiente. A Revolução não fora ainda realizada nos espíritos.

Na verdade, a U.R.S.S. e a China esbarravam no mesmo problema. Pois se um país como a Tchecoslováquia, depois de tantos anos de ditadura policial e de mentirosa propaganda, chega a ser unânime em querer sair do jugo da escravidão, e o único meio de que dispõe Moscou, à vista de todo o mundo, é a invasão e a ocupação do país, o restabelecimento da censura, etc., fica experimentalmente demonstrado que a análise do materialismo dialético é falsa. Não basta abolir a propriedade privada para suprimir todo pensamento chamado “burguês” ... isto é, o pensamento crítico e livre.

A U.R.S.S. resolveu o problema graças à polícia, ao terror, à invasão, à ocupação. No seu país, Mao parece ter feito uma análise mais profunda. O advento político do socialismo não basta para destruir a natureza humana da pessoa, sua inteligência, sua vontade livre. É preciso, pois, ir mais longe. É preciso apagar todo o patrimônio humano na inteligência, destruir todo modo de proceder anteriormente impresso na vontade. Em suma, não basta abolir a propriedade privada, base “objetiva” da dignidade da pessoa, para aniquila-la completamente. É preciso ir mais fundo e destruir a memória da humanidade. Pois para Mao a classe não é algo exterior mas intrínseca ao homem. Este jargão mostra claramente que não é o sistema econômico que faz a pessoa uma imagem viva do Deus vivo, mas a própria estrutura de sua alma espiritual...  É preciso, pois, remodelar diretamente, imediatamente, essa estrutura. Tal é a significação da revolução cultural. É a pior, a mais radical das revoluções. Pois se a revolução política atinge a ordem jurídica, e a revolução social desarticula a ordem econômica, a revolução cultural “liquida” a ordem interior, espiritual, para remodelar a alma humana diretamente, e sem que ela possa esperar.

Deste ponto de vista, pouco importa que historicamente Mao tenha sido levado à revolução cultural por despeito. Sabe-se que o fracasso do “grande salto para a frente” (1957) é que levou o deus chinês a interpretar o abandono em que o deixou a U.R.S.S. como indício de traição. Depois das alusões sarcásticas de Kruchtchev às comunas e ao “grande salto”, e da retirada dos técnicos russos, Mao passou a achar que a U.R.S.S. era um país revisionista. Quer dizer, um país empenhado na via da civilização do bem-estar, da civilização do consumo, em suma do capitalismo. Era preciso separar-se dela e de todos que, na China, fossem seus amigos e imitadores. Urgia fazer da China um novo centro da revolução mundial e para isso imaginou uma ação mais rápida, mais eficaz, mais universal do que a do aparelho aburguesado da U.R.S.S. dos satélites e dos partidos obedientes a Moscou. A revolução cultural trazia para a China e para os outros países, enfim, a solução.

Pois é bom que se saiba que a crítica da sociedade de consumo apresentada como uma evidência pelos revolucionários de Nanterre em maio de 1968 é uma crítica maoísta, que faz parte integrante da teoria da revolução cultural.

Essa crítica foi claramente formulada por Charles Bettelheim e Jacques Charrière nos seguintes termos:

“Neste tipo de sociedade (de consumo) contrariamente a algumas afirmações e ilusões, não se assiste a uma crescente satisfação das “necessidades”. Ao contrário, a insatisfação relativa dos indivíduos é constantemente estimulada, já que é condição para vender e ter mais lucros (...). O “modelo” de comportamento que se depreende do estilo da construção do socialismo na China é, por sua natureza, a negação do “modelo” da sociedade de consumo 2.

Assim, Mao — e aqui seu pensamento se ajusta ao de Marcuse — condena tanto o capitalismo americano quanto o revisionismo russo na medida em que um e outro tendem a moldar um homem-consumidor, totalmente incluído numa organização destinada a transforma-lo num animal condicionado para aspirar, numa crescente insatisfação, a um nível de vida cada vez melhor.

É impossível ler essa crítica sem encontrar certas analogias com o que, há muito tempo, nos ensina a Igreja Católica. Não lastimava então Pio XII, em 16 de novembro de 1946, citando Pio XI, “que não sejam as necessidades humanas que, segundo sua importância natural e objetiva, regulem a vida econômica e o emprego do capital, mas que o capital e seus interesses é que determinem quais as necessidades que devem ser satisfeitas e em que medida”?

Estará a Igreja de acordo com a crítica Maoísta da sociedade de consumo? Concordará em participar da revolução cultural que a propaganda de Pequim espalha pelo mundo através da agitação universitária? A questão torna-se mais grave quando sabemos que isto foi afirmado por padres e militantes cristãos em maio e junho de 1968.

Além disso, cresce esta questão em interesse ainda, pois nos leva a um estudo mais profundo da própria noção de revolução cultural.

Essa revolução começou, na China, em 18 de agosto de 1966. O enunciado de seus princípios foi feito no manifesto do Comitê Central do P.C. de 8 de agosto precedente:

Opor uma réplica frontal a cada desafio lançado pela burguesia no domínio ideológico e transformar a fisionomia moral de toda a sociedade por meio do pensamento, da cultura e dos usos e costumes próprios do proletariado”. E em “A informação de Pequim”, de 8 de agosto, podia-se ler: “A grande revolução do proletariado atualmente em curso é uma grande revolução que toca o homem no que ele tem de mais profundo. Representa uma nova etapa da revolução socialista”.

Essa etapa tem como objetivo imediato destruir todos os sinais sensíveis da civilização chinesa (e de modo geral a civilização humana) anterior ao comunismo. Cinqüenta milhões de “guardas vermelhos” — quer dizer cinqüenta milhões de crianças ou de adolescentes — foram lançados ao assalto do passado. Incendiaram bibliotecas, apagaram os nomes das ruas, arrancaram os letreiros das lojas e as inscrições dos cemitérios, acuaram os saltos altos e os pescadores de anzol, colaram centenas de milhões de jornais murais, puseram em perigo a produção e atiraram a China de pernas para o ar. Mas criaram as premissas de uma ideologia revolucionária universal capaz de rivalizar com a ideologia soviética — e que se esforçará por ultrapassa-la.

No centro da revolução, sozinho contra todos, está Mao. Seu pensamento revoga todo o pensamento humano anterior, suas obras devem substituir o conjunto das obras humanas existentes, sua vontade anulará qualquer propósito humano anterior, ou atual e diverso. Ele é “nosso grande guia, nosso grande comandante-em-chefe, no grande timoneiro, o dirigente mais respeitado e o mais querido”. O culto de seu pensamento eclipsa ainda, se tal é possível, o culto de sua pessoa; em algumas usinas consagram-se quatro horas por dia ao estudo de suas obras.

Isto, nota Morávia, explica o caráter ao mesmo tempo radical e múltiplo da “austeridade” chinesa, que condena indiferentemente Shakespeare e as mini-saias, os clássicos chineses e os discos de dança, Dostoievski e as meias de seda. Trata-se de uma austeridade totalitária baseada na idéia muito simples de que a contra-revolução pode infiltrar-se num tubo de batom. Talvez seja útil lembrar aqui os precedentes históricos: Florença de Savonarola, Genebra de Calvino. Mas aí tratava-se sempre de pequenas comunidades e não de setecentos milhões de indivíduos3.

Uma austeridade totalitária! Eis a palavra que talvez nos conduza ao nível mais profundo da significação mística da revolução cultural de Mao.

Os estudantes devem tornar-se operários e camponeses. Os camponeses e operários devem tornar-se estudantes. Trata-se de formar um homem novo, síntese do “homo faber” e do “homo sapiens”, um “manual-intelectual”, ou melhor um “soldado-operário-camponês-intelectual”. Na nova sociedade, a vida é vivida em comum, as refeições são comidas em comum, os jornais murais são lidos em comum, as decisões, em cada nível elementar, são tomadas em comum. Uma pobreza radical e organizada é tida como ideal de vida, não só em relação aos bens materiais como também aos bens culturais. O comunista é um despojado total. Não lhe sobra nada — a não ser o pensamento e a vontade daqueles que o dirigem.

Além disso, uma obediência radical condiciona a realização dessa pobreza coletiva. Seu modelo vem da tradição chinesa, onde a obediência representa um aspecto espiritual e místico antes que jurídico e exterior. No seio do partido, que envolve o povo inteiro, Mao Tse-Tung a formula sem rebuços:

“1) Submissão do indivíduo à organização; 2) Submissão da minoria à maioria; 3) Submissão do escalão inferior ao escalão superior; 4) Submissão do conjunto do partido ao Comitê central”.

Essa submissão atinge não somente o foro externo mas o foro íntimo, não só os atos mas os pensamentos, não só a vida pública mas a vida particular.

Enfim, (...) tanto a vida afetiva quanto a vida sexual são reguladas pela sociedade. Os jovens são “aconselhados” a não se casarem antes dos trinta anos — e esse gênero de “conselho” é estritamente interpretado.

De volta da China, André Athenoux conta o diálogo que teve com sua intérprete, uma jovem de vinte e dois anos. Ele se espantava por não encontrar no teatro, no cinema, na poesia, o tema eterno do amor.

Entre nós, o amor... esse amor de que o senhor fala, é secundário (...).

Os jovens se procuram visando ao casamento. Quais são para vocês os critérios de um amor autêntico? Quais as condições essenciais para um casamento sólido e durável?

Em primeiro lugar... a mesma concepção política, a fé no comunismo, uma adesão muito sincera, a dois, ao pensamento de Mao.

E a senhorita, com vinte e dois anos não pensa em casar-se?

Por ora não; talvez dentro de uns oito ou dez anos... Primeiro é preciso que eu estude e me aprofunde no pensamento de Mao, a fim de que a revolução proletária triunfe na China e em todo o mundo 4.

Tal é o clima social: uma austeridade totalitária onde encontramos as virtudes evangélicas como fundamento da vida social: a pobreza, a obediência, e até a castidade!

Do mesmo modo que, numa noite, uma paisagem é iluminada pelos relâmpagos, aparece-nos a realidade cultural de Mao numa luz repentina e trágica. Ela constitui a inversão totalitária da vida evangélica, assim como a revolução social de Marx constitui a inversão totalitária da vida trinitária, e a estratégia revolucionária de Lenine a inversão totalitária do conselho de “oferecer a outra face”.

Pois se a Igreja condena uma economia de “consumo” onde o homem seja um mero instrumento do capital, ela não admite, do mesmo modo, a violência revolucionária para destruir essa economia, violência que, como dizem os ingleses, leva a “jogar fora o bebê junto com a água do banho”. Não admite tão pouco a destruição de toda a herança cultural da humanidade, de tudo o que permite ao homem descobrir a verdade, o bem e o belo nas obras do espírito, do coração e do corpo. Não aceita que se imponham à força os conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência, que correspondem a um apelo interior de Deus à alma, um chamado que nem todos recebem na mesma hora e com as mesmas exigências. Tudo se passa como se o Inimigo invisível da Humanidade, através de uma caricatura monstruosa, quisesse desviar os homens da ordem social cristã, verdadeiramente comunitária, que, através de uma comunhão de liberdade e amor, realiza aquilo de que o comunismo representa o avesso, um oco e árido avesso de totalitarismo, de condicionamento forçado e de terror.

Com a revolução cultural, o comunismo atingiu o ponto irreversível do empreendimento intrinsecamente perverso que pretende realizar na terra a contra-Igreja.

Pois Satã — podemos agora constatá-lo como que experimentalmente — é o símio, a imitação caricata de Deus.

 

Traduzido de “Le Comunisme face à Dieu”, N.E.L., Paris, 1968, por Ana Luísa Fleichman para a Revista Permanência, n°14, novembro de 1969.

 

 

  1. 1. Alberto Morávia: “A Revolução Cultural de Mao”, págs. 80-81.
  2. 2. Mao-Tsé-Tung: “Livrinho Vermelho”, pág. 170.
  3. 3.A Revolução Cultural de Mao”, págs. 82.
  4. 4. André Athenoux: “O Cristo Crucificado no País de Mao”, pág. 184.
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