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Rumo a um "entendimento doutrinal"?

 

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Numa entrevista recente, Mons. Guido Pozzo declarou que “a reconciliação acontecerá quando Dom Fellay aderir formalmente à declaração doutrinal que a Santa Sé lhe apresentou. É também a condição necessária para proceder à regularização institucional, com a criação de uma prelazia pessoal”. E no retorno da recente peregrinação à Fátima (12-13 de maio), numa conferência concedida à imprensa no avião, o Papa Francisco aludiu ao documento preparado pela Congregação da Doutrina da Fé, em sua última sessão de quarta-feira, 10 de maio. Segundo o espírito de Roma, tratar-se-ia de um entendimento doutrinal. A expressão, porém, é equívoca; com efeito, pode ser entendida em dois sentidos.

Num primeiro sentido, o fim buscado é que a Tradição reencontre todos os seus direitos em Roma, e que, por conseguinte, a Santa Sé corrija seriamente os erros doutrinais que são a fonte da crise sem precedentes que ainda açoita a Santa Igreja. Essa correção é o fim buscado, um fim em si mesmo e causa final, princípio de todo agir subsequente no quadro das relações com Roma. E esse fim é simplesmente o bem comum de toda a Igreja. Nesse sentido, o entendimento doutrinal significa que Roma deve entender-se não com a Fraternidade São Pio X, mas com a doutrina de sempre, e abandonar os seus erros.

Num segundo sentido, seria o caso de Roma entender-se com a FSSPX, com vistas a um reconhecimento canônico. Esse reconhecimento seria o fim em si, princípio de todo agir subseqüente. Esse fim seria um bem particular aparente de uma sociedade específica, como é a Fraternidade. A formulação de uma posição doutrinal comum, suficientemente aceitável pelas duas partes, Roma e a Fraternidade, seria apenas o meio para isso. E bastaria que esse meio fosse proporcional ao fim: não seria necessário, portanto, que Roma corrigisse todos os erros do Concílio; bastaria que não impusesse a profissão destes erros. Nesse sentido, o entendimento doutrinal significaria que a Fraternidade entraria em acordo com Roma sob uma série de afirmações doutrinais isentas de erro.

Parece possível, e mesmo evidente, que Roma compreenda o entendimento doutrinal no segundo sentido, e considere na melhor das hipóteses um regime de tolerância para com a Fraternidade, mas de modo algum a correção dos erros do Concílio. Até aqui, os herdeiros de Dom Marcel Lefebvre obrigaram-se a considerar as coisas do ponto de vista do primeiro sentido. Portanto, está claro que semelhante “base de entendimento” permanecerá sempre insuficiente, enquanto Roma não incluir a correção dos erros do Concílio.

Com efeito, o adágio vale aqui como em qualquer lugar: “bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu – o bem provém de causa integralmente boa, o mau provém de qualquer defeito”. O adágio deve, certamente, entender-se no sentido moral, e com relação aos atos humanos. Se tomarmos Vaticano II como um conjunto de textos, é evidente que poderemos sempre separar a verdade, o equívoco e o erro e cada passagem considerada pode ser tratada isoladamente. Essa triagem pode ser feita no quadro de um diálogo de peritos – ou de uma comissão de revisão. Entretanto, o costume da Igreja é considerar os textos não enquanto tais, mas de um ponto de vista moral, ou seja, enquanto esses textos são, globalmente, objeto de uma adesão da parte da Igreja e de seus fiéis (portanto um ato humano moralmente considerado) e tendem, devido aos seus erros e sentenças equívocas, a causar escândalo. Sob esse ponto de vista, não basta assinar um texto que exprime apenas uma parte da verdade; é necessário que Roma professe a integralidade de toda a verdade e condene, por esse mesmo fato, os erros que viciam de alto a baixo todas as verdades parciais que podem encontrar-se no magistério conciliar e pós-conciliar.

Alguns pontos litigiosos:

O Concílio Vaticano II

A referência a Vaticano II é sempre incômoda, mesmo quando se tratam de passagens isoladas, aparentemente ortodoxas. Esse Concílio, com efeito, é o objeto de nossa recusa, devido aos numerosos e graves erros que nele foram introduzidos. Ora, malum ex quocumque defectu: basta que haja algumas passagens más para que o Concílio seja mau, mesmo se há também passagens boas. Essas passagens boas não compensam as passagens más.

A liberdade religiosa (declaração Dignitatis Humanae)

Por um lado, uma coisa é exercer a coação no foro externo para conduzir as pessoas a abraçar a verdadeira religião, outra coisa é exercer a coação no foro externo para impedir as pessoas de professar uma religião falsa. Por outro lado, há uma diferença entre a coação física, que é uma coação propriamente dita (isto é, uma violência) e a coação moral, que é uma coação impropriamente dita (isto é, segundo o caso uma persuasão ou uma dissuasão). A doutrina social da Igreja exige que o Estado exerça sua autoridade em favor da verdadeira religião: 1º) exercendo no foro externo a dupla coação física e moral para impedir e dissuadir a profissão do erro e 2º) exercendo igualmente no foro externo certa coação moral para persuadir à profissão da verdadeira religião. A Igreja condenou apenas o recurso à coação física para impor a verdadeira religião. O nº2 de Dignitatis Humanae contradiz essa doutrina da Igreja precisamente porque reconhece como um direito civil o direito de não se impedir, por qualquer poder humano que seja, a profissão do erro.

A colegialidade (constituição Lumen Gentium)

Os três pontos litigiosos são os seguintes:

O nº22 de Lumen Gentium afirma que o colégio episcopal (corpo episcopal, quer reunido quer disperso) é o sujeito ordinário e permanente do poder sobre toda a Igreja.

Ao contrário, a Tradição afirma que só o corpo episcopal reunido pode ser o sujeito, apenas temporário e extraordinário, desse poder.

O nº22 de Lumen Gentium afirma que o colégio episcopal, incluído o papa, constitui, além do papa considerado só, um segundo sujeito permanente do poder sobre toda a Igreja.

Ao contrário, a Tradição afirma que o corpo episcopal não é um segundo sujeito desse poder, mas que só o concílio ecumênico é um segundo modo de exercício do mesmo sujeito (o papa) do mesmo poder.

O nº 22, em ligação com o nº 21 de Lumen Gentium afirma que o colégio episcopal detém seu poder não diretamente do papa, mas do Cristo, pela consagração episcopal, e que o consentimento do papa só é requerido para o seu exercício.

Ao contrário, a Tradição afirma que o concílio ecumênico só pode ter seu poder diretamente do papa, e que é a autoridade mesma do papa que é comunicada ao concílio e participada nesse poder temporário e extraordinário do concílio: este reuniu-se, portanto, não somente “cum capite” (o que seria o ponto de vista redutor de uma causalidade material, necessário para a integralidade da assembléia), porém muito mais que isso, “sub capite” (ponto de vista de uma causa eficiente) e mesmo “ex capite” (ponto de vista de uma causa formal). 

A Nota Praevia (de Paulo VI) não resolve todos esses problemas e deixa intacta a idéia de um duplo sujeito do primado.

Outros pontos do capítulo III de Lumen Gentium colocam graves dificuldades: o nº 21 afirma a sacramentalidade do episcopado, com a idéia de que a sagração confere em ato o triplo múnus, não só o poder de ordem, mas mesmo o poder de jurisdição, com o magistério e o governo, o que é contrário à toda a Tradição e a todo o Direito Canônico. O ponto de partida da colegialidade é aqui radicalmente falso, como observaram os padres membros do Coetus, ao longo do Concílio[1]. O cardeal Browne assinala que a idéia segundo a qual a consagração episcopal dá em ato, ou em sua essência, os três poderes de ordem, de magistério e de governo contradiz o ensino do magistério ordinário supremo de Pio XII, dado três vezes, e se mostra falsa, colocando-se também contra a teologia de Santo Tomás. Mons. Carli observa que isso contradiz o Direito da Igreja, relativamente à colação do primado de jurisdição do Papa, à colação da jurisdição ordinária dos bispos residenciais e mesmo à ausência de toda jurisdição dos bispos titulares. O nº 25 dá uma definição colegialista da infalibilidade do Magistério ordinário e universal; o nº18 coloca a anterioridade do Colégio dos apóstolos sobre São Pedro.

O ecumenismo (decreto Unitatis redintegratio e constituição Lumen gentium)

Os três pontos litigiosos são os seguintes:

Os textos de Unitatis redintegratio afirmam a realidade de uma comunhão real, se bem que imperfeita e parcial, de sociedade à sociedade, ou seja, entre a estrutura visível da Igreja Católica e a estrutura visível das comunidades cristãs não-católicas separadas. Ao contrário, a Tradição afirma que só alguns entre os membros das comunidades cristãs não-católicas separadas podem estar, não em comunhão, mas ordenados ao Corpo Místico do Redentor, que é igualmente a Igreja do Cristo e a Igreja Católica.

Os textos de Lumen Gentium afirmam a realidade de uma presença e de uma ação da Igreja do Cristo fora da estrutura visível da Igreja Católica, nas comunidades cristãs não-católicas separadas. Ao contrário, a Tradição afirma somente a realidade de uma ação do Espírito Santo fora do Corpo Místico do Redentor, que é, de modo idêntico, a Igreja do Cristo e a Igreja Católica, e que essa ação ocorre em algumas almas que fazem parte das comunidades cristãs não-católicas separadas, mas não nessas próprias comunidades.

Os textos de Lumen gentium e Unitatis redintegratio afirmam que há nas comunidades cristãs não-católicas separadas elementos cujo valor salutar provêm da plenitude confiada à Igreja de Cristo, e que tendem por eles mesmo à unidade católica, e que o Espírito Santo pode então servir-se dessas comunidades como meios de salvação. Ao contrário, a Tradição afirma que os elementos encontrados nas comunidades cristãs não-católicas separadas não têm por si mesmos nenhum valor salutar, e que não poderiam provir da Igreja, porque essas comunidades recusam, enquanto tais, o primado de jurisdição do papa, enquanto que o valor salutar dos dogmas e dos sacramentos lhes vem precisamente do fato de que são dispensados segundo a ordem querida pelo Cristo, ou seja, na dependência do primado de jurisdição do seu vigário, que é o papa, bispo de Roma e chefe da Igreja.

O Magistério

A definição mesma do Magistério está falsificada na prática, porque depois do Vaticano II, os titulares do poder de Magistério utilizam esse poder a contra-senso, visto que impõem erros contrários às verdades que são objeto do Magistério. É o motivo pelo qual não podemos reconhecer que Vaticano II seja a expressão de um verdadeiro Magistério católico. Não podemos afirmar (ao menos sem distinções e restrições) que os textos do Concílio Vaticano II estão incluídos entre os textos do Magistério, que são a expressão de um Magistério católico.

A definição de Magistério está falsificada na teoria. A constituição Dei Verbum, no nº 8, afirma que “o que foi transmitido”, “progride na Igreja, sob a assistência do Espírito Santo; com efeito, a percepção das realidades, bem como das palavras transmitidas cresce, seja pela contemplação e o estudo dos crentes que nelas meditam no coração, seja pela inteligência interior que eles experimentam das realidades espirituais, seja pela pregação dos que, com a sucessão apostólica, receberam um carisma certo de verdade”. Essa passagem não faz nenhuma distinção entre o papel do Magistério e aquele da Igreja discente. A proposição mais explícita do Magistério é, com efeito, a causa da melhor percepção da verdade entre os fiéis, na contemplação ou estudo. Equiparar os dois autoriza a interpretação errônea que reduziria o papel do Magistério ao de um canalizador da experiência coletiva. E é isso que, de qualquer modo, sugere muito claramente o ensinamento de Bento XVI (Catequeses sobre a Igreja de 2006; Exortação Verbum Domini) e o de Francisco (último discurso na ocasião do Sínodo, 17 de outubro de 2015; Evangelii gaudium, nº 119-120).

É absolutamente falso e contrário à toda a Tradição pretender que “o Magistério supremo da Igreja é o intérprete autêntico dos textos precedentes do Magistério”. Há aqui um erro extremamente grave, e é justamente o erro radical do neo-modernismo, erro do qual se perece desde o último Concílio. O Magistério é o órgão e intérprete da Revelação, e ele o é em todas as épocas da história e em todos os textos que produz. O Magistério presente deve continuar a interpretar, não o Magistério passado, mas a Revelação contida nas suas fontes (Escritura e Tradição: Padres e teólogos); e para tanto, deve submeter-se aos ensinamentos do Magistério anterior, que têm uma autoridade definitiva e que já elucidou certos dados da Revelação. O Magistério presente não interpreta o Magistério passado, ele interpreta os pontos da Revelação ainda não interpretados pelo Magistério anterior. E eventualmente não faz senão retomar os ensinamentos do Magistério anterior que não têm necessidade de serem interpretados, mas que são, como disse Pio XII na Humani Generis, “a regra próxima e universal da verdade em matéria de fé e costumes” (DS 3 884). Esse erro é extremamente grave, porque é o erro persistente da Santa Sé há cinquenta anos e que se encontra na raiz de todo o discurso de 22 de dezembro de 2005. Se é a palavra de hoje que faz a verdade por ela mesma, porque ela reinterpreta sem cessar a palavra de ontem, é o Papa de hoje que faz a verdade à sua vontade, e a noção mesma da Tradição católica não existe mais. Poder-se-ia falar, como o fez Bento XVI, de uma “renovação na continuidade”, mas se esse tipo de expressão fácil tranquiliza talvez os entusiastas do Concílio, não explica grande coisa e não logra convencer os que permanecem perplexos diante das inovações evidentes do Concílio. Pois ninguém conseguiu demonstrar, até aqui, que a renovação do Vaticano II não rompeu a continuidade objetiva da Tradição da Igreja.

É por isso que, mesmo se nos dizem que a interpretação faz-se “à luz da Tradição”, este pressuposto é falso. Porque a interpretação que se faz à luz da Tradição é aquela que interpreta não o Magistério, mas a Revelação. Quando se vê como no numero 119 de Evangelli Gaudium Francisco “interpreta” o nº 12 de Lumen gentium (que é já uma “interpretação” do Vaticano II), pode-se perguntar o que significa para a Santa Sé uma melhor compreensão do depositum fidei, “in eodem dogmate, eodem sensu eademque setentia”.

A Missa Nova

No interrogatório de 11-12 de janeiro de 1979, a CDF fez a seguinte pergunta: “O senhor defende que um fiel católico possa pensar e afirmar que um rito sacramental, em particular o da missa aprovada e promulgada pelo Soberano Pontífice, possa ser não conforme à fé católica ou favens haeresim?”, Dom Marcel Lefebvre respondeu: “Esse rito em si mesmo não professa a fé católica de maneira tão clara como o antigo Ordo missae e, por conseguinte, ele pode favorecer a heresia. Mas não sei a quem o atribuir, nem se o papa é o responsável por ele. O espantoso é que um Ordo missae de sabor protestante e, portanto, favens haeresim, tenha conseguido se difundir na cúria romana[2]”. A nova liturgia não é, pois, legítima, porque favorece a heresia.

A validade (o que difere da legitimidade) apresenta, enquanto tal, um segundo problema; Dom Marcel Lefebvre jamais disse que o Novus Ordo Missae era em si válido. Ele jamais negou que o NOM era duvidosamente válido mas ele afirmou, ao contrário, na conferência de 1979, citada na página 374 do livro “A missa de sempre”, apoiando-se sobre a nota 15 do “Breve exame crítico”, que endossava em termos de clareza impressionante. Dom Marcel Lefebvre jamais mudou de opinião sobre esse ponto, nem pôs em dúvida a apreciação que mostrou na conferência de 1979, já citada. De um ponto de vista lógico, se Dom Marcel Lefebvre disse: “é possível que o Novus Ordo Missae seja válido”, pode-se deduzir (e lhe fazer dizer): “é possível que o NOM não seja válido”. Mas não se pode disso deduzir (e lhe fazer dizer) nem: “é impossível que o NOM não seja válido”, nem “é impossível que o NOM seja válido”. Eis as declarações publicamente dirigidas por Dom Marcel Lefebvre sobre essa questão:

1) Carta de Dom Marcel Lefebvre ao Papa João Paulo II, 8 de março de 1980: “Quanto à missa do Novus Ordo, malgrado todas as reservas que se deve ter a seu respeito, jamais afirmei que ela é, em si, inválida ou herética”.

2) Carta de Dom Marcel Lefebvre ao Cardeal Joseph Ratzinger, 4 de abril de 1981: “Quanto à Reforma Litúrgica, eu mesmo assinei o decreto conciliar e nunca afirmei que as aplicações fossem, em si, inválidas ou heréticas”.

3) Carta de Dom Marcel Lefebvre ao Cardeal Joseph Ratzinger, 7 de abril de 1982: “O segundo ponto corresponderia melhor à realidade porque estava redigido assim: Dom Lefebvre assinou o decreto conciliar sobre a liturgia, aceitando assim a eventualidade de uma Reforma. Ele jamais afirmou que os textos dos novos livros litúrgicos eram heréticos ou, em si, inválidos na versão latina original, mas estima que a Reforma litúrgica, tal como foi realizada, exige graves reservas, como o expressaram justamente os cardeais Ottaviani e Bacci”.

4) Carta de Dom Marcel Lefebvre ao Cardeal Joseph Ratzinger, 21 de julho de 1982: “Não duvidamos que muitos padres digam com devoção o Novus Ordo Missae. Mas isso não retira os graves defeitos internos do Novus Ordo Missae, assinalados particularmente pelos cardeais Ottaviani e Bacci no ‘Breve exame crítico’”.

5) Carta de Dom Marcel Lefebvre ao Cardeal Joseph Ratzinger, 2 de março de 1983: “Sempre reconheci e reconheço à autoridade legítima da Santa Sé o direito de legislar em matéria litúrgica. Jamais afirmei que o novo ordo fosse herético, mas reconheço a existência de uma grave dificuldade descrita pelo cardeal Ottaviani e Bacci”.

6) Carta de Dom Marcel Lefebvre ao Cardeal Joseph Ratzinger, 17 de abril de 1985: “Nós nunca afirmamos que o Novus Ordo Missae, celebrado segundo o rito indicado na publicação romana, seja em si inválido ou herético”.

7) Declaração de 5 de maio dirigida ao Papa João Paulo II: “4. Nós declaramos reconhecer a validade do Sacrifício da Missa e dos Sacramentos celebrados com a intenção de fazer o que faz a Igreja, e segundo os ritos indicados nas edições típicas do Missal romano e dos rituais dos sacramentos promulgados pelos Papas Paulo VI e João Paulo II”.

Note-se que Dom Lefebvre havia aceitado assinar em 1988: ele chegava ao ponto de aceitar o reconhecimento da validade do NOM, mas “com a intenção de fazer o que faz a Igreja”. Isto é muito importante, porque justamente o NOM não dá mais que duvidosamente essa intenção.

O Novo Código de Direito Canônico

Sempre recusamos respeitar a disciplina introduzida pelo Novo Código de 1983, precisamente porque “imbuído de ecumenismo e de personalismo, peca gravemente contra a finalidade mesma da lei”[3]. Ademais, esse novo Código veicula o espírito da nova eclesiologia, democrática e colegialista. Como reconheceu o Papa João Paulo II, os ensinamentos do Vaticano II apresentam “uma nova face da Igreja”, que deveria inspirar, por sua vez, a legislação canônica do Novo Código de 1983.[4]

Não podemos contentar-nos com uma disciplina particular para a Fraternidade; nós recusamos esse Novo Código porque ele é contrário ao bem comum de toda a Igreja, que nós queremos defender[5]. Recordemos, a esse respeito, a decisão reproduzida no Cor Unum de março de 1992 (n.41): “A recepção do Novo Código de direito canônico apresenta um problema real de consciência aos católicos. Porque, de uma parte, ele se afasta de modo impressionante, no conjunto como no detalhe, da proteção devida à fé e aos costumes. E de outra parte, nós não queremos colocar em perigo o respeito devido à autoridade legítima. Dom Marcel Lefebvre, malgrado toda sua sagacidade, não julgou poder resolver a questão da validade da promulgação desse Código, mas seu conteúdo, como os princípios anunciados na Carta apostólica de promulgação (25 de janeiro de 1983), faziam-na ser considerada duvidosa. Neste caso, segundo o Canon 15 (nc 14) essa legislação nova não urge. Nessa situação, segundo o Canon 23 (nc 21) o código de 1917 não se presume revogado, mas a nova legislação deve ser conduzida à precedente e se possível conciliada com ela[6]”. Essa decisão não expressa apenas uma disciplina particular da Fraternidade, mas indica uma medida de prudência, que vale objetivamente para todo católico confrontado com os graves problemas que a nova legislação, por si mesma duvidosa, suscitou.

Retorno ao “entendimento doutrinal”

Como explicamos nos números 1-5, o fim que buscamos é que a Tradição reencontre todos os seus direitos em Roma. Esse é o fim primário em nossa intenção e será (como sempre) o último na execução. Que significa aqui “último”? Significaria que o fim da crise na Igreja ocorrerá só no final, portanto depois de um acordo da Fraternidade com Roma? Ou significa que o fim da crise na Igreja coincidirá com esse acordo?

A aceitação, de nossa parte, de um reconhecimento canônico, nas circunstâncias atuais, representa um ato moralmente indiferente, mas com duplo efeito, um efeito bom ligado ao ser da Igreja; e um efeito mau, ligado às circunstâncias concretas que atuam hoje. O efeito bom é situar-se na normalidade jurídica com relação à Roma (e até, para alguns, beneficiar-se de um campo ampliado de apostolado, o que resta verificar). O efeito mau é ele mesmo duplo: primeiramente, o risco de relativizar a Tradição, que não apareceria senão como o bem particular e a opção teológica pessoal da Fraternidade São Pio X; em segundo, o risco de trair e abandonar esse bem particular, em razão de todo o favens haeresim, que caracteriza como tal a Igreja conciliar.

A solução depende, antes de tudo, da proporção a ser estabelecida entre o efeito bom e o efeito mau. Claro está que na intenção de nosso Fundador, é mais importante evitar o duplo efeito mau do que obter o efeito bom. O efeito bom é aqui menos bom que o bem melhor ao qual se opõe o duplo efeito pior. A profissão pública da fé é mais importante que a normalidade canônica. “O que nos interessa, antes de tudo, é manter a fé católica. Esse é o nosso combate. Por isso questão canônica, puramente exterior, pública na Igreja, é secundária. O que importa é permanecer na Igreja... na Igreja, isto é, na fé católica de sempre e no verdadeiro sacerdócio, e na verdadeira missa, e nos verdadeiros sacramentos, no catecismo de sempre, com a Bíblia de sempre. É isso que nos interessa. É isso o que é a Igreja. Ser reconhecido publicamente, isso é secundário. Não se deve buscar o secundário perdendo-se o que é primário, o que é o primeiro objeto de nosso combate[7]”.

A solução depende, em seguida, da avaliação das circunstâncias: são tais que possamos racionalmente esperar evitar o duplo efeito mau; isto é, o duplo risco? Porque trata-se nem mais nem menos que de um risco. A questão consiste, em resumo, a se perguntar se é prudente colocar-se sob a autoridade dos membros da hierarquia da Igreja, tal como se encontram na situação presente, isto é, ainda imbuídos em sua maioria de falsos princípios contrários à fé católica. Poder-se-á, sem dúvidas, citar algumas exceções; mas elas não provam absolutamente nada contra o estado de espírito geral que é claríssimo, na sua generalidade. Somos obrigados a aplicar aqui a regra segundo a qual as coisas designam-se segundo aquilo que nelas domina, e concluir que os membros da hierarquia da Igreja são atualmente modernistas. Dito isto, para responder a nossa questão, dispomos de dois elementos: primeiramente, nossa própria experiência, porque podemos constatar que até aqui nenhum dos que aceitaram um reconhecimento canônico da parte de Roma conseguiram evitar verdadeiramente o duplo efeito mau; em segundo, a experiência de nosso Fundador: “Não se entra num quadro, e sob ordens de superiores, dizendo que vamos mudar tudo quando entrarmos, enquanto que eles têm tudo em mãos para nos dominar! Eles têm toda autoridade[8].”

Roma em marcha?

Na entrevista aérea de 13 de maio, o Papa diz a Nicolas Senèze que ele deseja ter calma: “A me mon piace affrettare le cose. Camminare, camminare, camminare, e por si vedrà”. Francisco não quer precipitar as coisas: por enquanto, é preciso caminhar e caminhar ainda sobre o caminho... É preciso, diz ele, “caminhar junto buscando a fórmula que permitirá avançar”. Isso lança uma luz interessante sobre a problemática que nós levantamos no início de nossa reflexão: no espírito do Papa, a formulação doutrinal não passa de um meio. A doutrina, com a unidade de fé que ela garante, não representa o fim da marcha. O fim seria, antes, avançar rumo a plena comunhão, num diálogo incessante, e que deveria de qualquer modo se prolongar até mesmo depois da concessão de uma estrutura canônica[9]. E a plena comunhão, diz-nos Monsenhor Guido Pozzo na entrevista já citada, é o enriquecimento mútuo, para além das divergências doutrinais: “Os diferentes pontos de vista ou opiniões que temos sobre certas questões não devem necessariamente conduzir à divisão, mas a um enriquecimento mútuo.” Seria então a coabitação da verdade e do erro, mediante o preço de uma declaração comum mais que comum?...

Infelizmente, esses diferentes pontos de vista não dizem respeito a simples opiniões igualmente possíveis, e as questões às quais eles correspondem não são questões “abertas”, questões sobre as quais cada um guardaria sua liberdade de reflexão – e de condução. Essas questões foram, em sua maioria, definitivamente resolvidas pelo Magistério da Igreja, muito antes do Vaticano II. A liberdade religiosa de Dignitatis Humanae e a laicidade positiva de Gaudium et Spes estão condenadas pela Quanta Cura de Pio IX. A nova eclesiologia ecumênica de Lumen Gentium está condenada por Pio XII na Mystici Corporis e Humani Generis, por causa do princípio absolutamente falso, que quereria estabelecer uma distinção real entre a Igreja de Cristo e a Igreja Católica. O ecumenismo de Unitatis Redintegratio está condenado por Pio XI na Mortalium Animos. A colegialidade de Lumen Gentium, no que nega a unicidade do sujeito do Primado, cai sob a condenação do Concílio Vaticano I.

Definitivamente, essa “fórmula que permitirá avançar” conduz-nos uma vez mais ao texto fundador da Comissão Pontifícia Ecclesia Dei, o motu próprio de 2 de julho de 1988: João Paulo II nele afirma que a Tradição é vivente. O discurso de 2005 de Bento XVI é o seu eco e intérprete direto: essa vida da Tradição, é a “renovação na continuidade”. Renovação evolucionista e modernista, que entende ultrapassar a contradição numa hermenêutica impossível.

Que concluir? Retomando as palavras citadas no começo deste número, diríamos simplesmente que “a Fraternidade São Pio X não tem a negociar um caridoso reconhecimento que a salvaria de um suposto cisma. Ela tem a honra imensa de, após quarenta anos de exclusão, poder, no Vaticano, dar testemunho da fé católica”. Aguardando que Roma por fim se decida a expulsar do meio dos católicos o povo ímpio desses erros conciliares.

Fonte: Courrier de Rome nº 499, maio de 2017.

 


[1] Cf. Nas Acta synodalia concilii Vaticani secundi, vol. III, parte I, as observações escritas do Cardeal Browne (p. 629-630) e as de Monsenhor Carli (p. 660-661) sobre o esquema De Ecclesia, da Terceira sessão do Concílio (verão de 1964).

[2] Mgr Lefebvre et le Saint-Office, Itinéraries n. 233, maio de 1979, p. 146-147.

[3] “Prescrições concernentes aos poderes e faculdades das quais gozam os membros da FSSPX”, em Documents de la Fraternité saint Pie X, p. 60A.

[4] João Paulo II, Constituição apostólica Sacrae disciplinae leges de 25 de janeiro de 1983: “Fundamentalis illa ratio novitatis, quae, a traditione legifera Ecclesiae numquam discedens, reperitur in Concilio Vaticano II, praesertim quod spectat ad eius ecclesiologicam doctrinam, efficiat etiam rationem novitatis in novo Codice.”

[5] Cf. Dom Lefebvre, conferências de 18 de janeiro; 15 de março; 19 de dezembro de 1983.

[6] “Prescrições concernentes aos poderes e faculdades das quais gozam os membos da FSSPX”, em Documents de la Fraternité saint Pie X, p. 112D e 113 A.

[7] Dom Marcel Lefebvre, Conferência espiritual em Êcone, 21 de dezembro de 1984 (Cospec 112)

[8] Idem, ibidem.

[9] Cf. os dois artigos “À l’origine des declarations communes”e “La fin des anathèmes”, no números de março de 2017 do Courrier de Rome.

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