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Art. 1 ─ Se devemos atribuir dotes aos bem-aventurados.

O primeiro discute-se assim. ─ Parece que não devemos atribuir nenhuns dotes aos bem-aventurados.

1. ─ Pois, o dote, segundo o direito, é o que é dado ao esposo para obviar aos encargos do matrimônio. Ora, os santos não desempenham o papel de esposa, mas antes de esposo, enquanto membros da, Igreja. Logo, não se lhes dão dotes.

2. Demais. - Segundo o direito, os dotes são dados não pelo pai do esposo, mas pelo da esposa, Ora, todos os dons da beatitude são dados aos santos pelo Pai do Esposo, i. é, Cristo, segundo aquilo da Escritura: Toda a dádiva em extremo excelente e todo o dom perfeito vem lá de cima e desce do Pai das luzes, etc. Logo, esses dons conferidos aos bem-aventurados não se devem chamar dotes.

3. Demais. ─ No matrimônio carnal os dotes são dados para mais facilmente se suportarem os encargos do matrimônio. Ora, o matrimônio espiritual não comporta nenhuns encargos, sobretudo no estado da Igreja triunfante. Logo, não se lhe devem atribuir quaisquer dotes.

4. Demais. ─ Dotes não se dão senão em vista do matrimônio. Ora, o matrimônio espiritual é contraído com Cristo, pela fé, segundo o estado da Igreja militante. Logo e pela mesma razão, se certos dotes convêm aos bem-aventurados, convirão também aos santos que ainda vivem neste mundo. Ora, a estes não convêm. Logo, nem aos bem-aventurados.

5. Demais. ─ Os dotes fazem parte dos bens exteriores chamados bens de fortuna. Ora, os prêmios dos bem-aventurados serão bens internos. Logo, não devem chamar-se dotes.

Mas, em contrário. ─ O Apóstolo diz: Este sacramento é grande, mas eu digo em Cristo e na Igreja. Donde se conclui que o matrimônio espiritual é significado pelo carnal. Ora, no matrimônio carnal a noiva dotada é levada à casa do noivo. Logo, como os santos, quando entram na bem-aventurança, são levados à mansão de Cristo, parece que com certos dotes hão de ser dotados.

2. Demais. ─ Dão-se dotes, no matrimônio carnal, para lhe aliviar os encargos. Ora, o matrimônio espiritual é mais deleitável que o corporal. Logo, a ele sobretudo se lhe devem atribuir dotes.

3. Demais. ─ Os ornatos das noivas fazem parte do dote. Ora, os santos o ornato lhes consiste em serem introduzidos na glória, conforme aquilo da Escritura: Ele me cobriu com vestidura de salvação como a esposa ornada dos seus colares. Logo, os santos na pátria terão dotes.

SOLUÇÃO ─ Sem duvida aos bem-aventurados, quando introduzidos na glória. Deus, lhes dá certos dons que lhes constituem ornatos; e esses ornatos o Mestre lhes chama dotes. Daí a seguinte definição do dote, no sentido em que agora dele tratamos: O dote é o ornato perpétuo do corpo e da alma, suficiente à vida e que dura perenemente na eterna beatitude. E essa noção se funda na semelhança do dote corporal com que se orna a esposa e providencia os meios com que possa o esposo sustentar suficientemente a ela e aos filhos. E contudo o dote pertence à esposa, que nunca poderá ser dele privada, de modo que a ela reverterá, uma vez dissolvido o matrimônio.
 
Mas quanto à significação da palavra, variam as opiniões.

Assim, uns dizem que a significação do dote não se funda em nenhuma semelhança do matrimônio corpóreo; mas no uso comum de falar pelo qual chamamos dote a toda perfeição ou ornato de qualquer homem. Assim, dizemos que é dotado de ciência quem é realmente sábio. Nesse sentido usou Ovídio do vocábulo, no verso:

Agrada com o dote com que puderes agradar.

Mas esta explicação não convém totalmente.  Porque sempre que empregamos um nome para significar alguma cousa, não costumamos tomá-lo em sentido translato, senão fundados em alguma semelhança. Por onde, como na sua aplicação primária a palavra dote foi usada para significar o matrimônio carnal, é forçoso que qualquer outra significação desse vocábulo se funde nalguma semelhança com a significação principal.

Por isso outros dizem que a semelhança se funda em que o dote propriamente significa um dom, que no matrimônio corporal é dado à esposa pelo esposo, quando é levada para a casa deste e que lhe constitui a ela um ornato. O que se deduz das palavras de Sichem a Jacó e aos seus filhos: Aumentai o dote e pedi dádivas. E noutro lugar da Escritura: Se alguém seduzir a uma donzela que ainda não está desposada e dormir com ela, dotá-la-á e a terá por mulher. Por isso o ornato dado por Cristo aos santos, que alcançarem o dom da glória, se chama dote.
 
Mas esta explicação colide manifestamente com o que dizem os juristas, a quem compete decidir nesta matéria. Assim, dizem que o dote é propriamente uma doação feita pela mulher ao marido para suportar os encargos do matrimônio. Quanto ao que o noivo dá à noiva, chama-se doação por causa de núpcias. E este sentido tem a palavra dote no lugar da Escritura, onde diz que Faraó, rei do Egito, veio e tomou Gazer e o deu em dote à sua filha, esposa de Salomão, ─ Nem colhem contra esta explicação as autoridades citadas. Pois, embora fosse costume ser o dote constituído pelo pai da noiva, pode contudo se dar que o noivo ou o seu pai constituam o dote em lugar do pai da noiva. O que de dois modos pode dar-se. Ou pelo seu grande afeto para com ela, como no caso de Hemor, pai de Sichem, que quis dar o dote que devia receber, por causa do seu filho para com a noiva deste; ou tal se da como uma pena para com o noivo, que deve dar, de seus bens, um dote à virgem que corrompeu, dote que deveria ter sido constituído pelo pai da moça. E tal é o sentido da autoridade citada de Moisés.

Por isso, segundo outros, devemos dizer que, no matrimônio corporal chama-se propriamente dote o que é dado pelos parentes da mulher aos parentes do marido, para obviar aos encargos do matrimônio, como se disse.

Mas então subsiste a dificuldade, de como adaptar essa significação ao nosso propósito; porque os ornatos, na beatitude, são dados à esposa espiritual pelo pai do esposo. O que se tornará manifesto nas respostas aos argumentos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Embora, no matrimônio carnal o dote é dado ao esposo para que dele use, contudo o domínio e a propriedade dele pertence à esposa. O que resulta do fato de, segundo o direito, ser o dote conservado à esposa, uma vez dissolvido o matrimônio. E assim também no matrimônio espiritual, os ornatos mesmos dados à esposa espiritual, i. é, à Igreja e aos seus membros, são por certo propriedades do esposo, enquanto lhe redundam em glória e honra dele; mas da esposa, enquanto que com eles se adorna.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O pai do Esposo, i. é, de Cristo, é só a pessoa do Pai; ao passo que o Pai da esposa é toda a Trindade. Pois, a ação sobre as criaturas pertence a toda a Trindade. Por isso tais dotes, no matrimônio espiritual, são dados, propriamente falando, antes pelo pai da esposa que pelo Pai do esposo. ─ Mas essa calação, embora feita por todas as Pessoas da Trindade, pode contudo apropriar-se a cada uma das Pessoas, de certo modo. A Pessoa do Pai, como ao que dá; porque nele reside a autoridade; a ele também é própria a paternidade em relação à criatura, de modo que assim o mesmo é o Pai do esposo e da esposa. É própria também ao Filho, enquanto feita por causa dele e por meio dele. Ao Espírito Santo enfim enquanto feita nele e segundo ele; pois o amor é a razão de toda doação.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Ao dote convém, essencialmente, o efeito que causa, a saber, suportar os encargos do matrimônio. Mas, acidentalmente, os obstáculos que remove, a saber, o ônus do matrimônio, que fica mais leve. Assim, como o efeito essencial da graça é tornar alguém justo; mas o acidental será fazer do ímpio um justo. Embora, pois, no matrimônio espiritual não haja nenhuns ônus, é acompanhado porém da suma felicidade. E para consumar plenamente essa felicidade dotes são feitos à esposa, .de modo que, por eles se una deleitavelmente com o esposo.

RESPOSTA À QUARTA. ─ Não era costume dar dotes à esposa quando era desposada, senão quando conduzida à casa do esposo para que realmente este tomasse posse dela. Ora, enquanto estamos nesta vida, vivermos ausentes do Senhor. Por onde, os dons, feitos aos santos neste mundo, não se chamam dotes; senão só aqueles que lhes são feitos quando alcançam a glória, onde gozam do Esposo face à face.

RESPOSTA À QUINTA. ─ O matrimônio espiritual requer a beleza interior, conforme aquilo da Escritura: Toda a glória da que é filha do Rei é de dentro. Ora, o matrimônio espiritual requer a beleza interior. Por onde, não é necessário que tais dotes sejam dados, no matrimônio espiritual, como o são no carnal.

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