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Art. 3 ─ Se a impassibilidade priva os corpos gloriosos do exercício atual dos sentidos.

O terceiro discute-se assim. ─ Parece que a impassibilidade priva os corpos gloriosos do exercício atual dos sentidos.

1. ─ Pois, como diz o Filósofo, sentir é de certo modo sofrer. Ora, os corpos gloriosos serão impassíveis. Logo, não terão o exercício atual dos sentidos.

2. Demais. ─ A modificação natural precede à modificação sensível, como o ser natural precede ao ser intencional. Ora, os corpos gloriosos, em virtude da sua impassibilidade, não são susceptíveis de nenhuma modificação natural. Logo, nem da modificação sensível, condição necessária para sentir.
 
3. Demais. ─ Sempre que a sensação se atualiza, pela recepção de uma nova modificação sensível, dá lugar a um novo juízo. Ora, na vida futura não se formarão novos juízos, porque não haverá então mudanças nos pensamentos. Logo, não hão de exercer os corpos gloriosos atos sensíveis.

4. Demais. ─ Quando uma potência da alma está em intensa atividade, as outras potências sofrem remissão nos seus atos. Ora, na vida futura, a alma será intensamente tomada pelo ato da virtude intelectiva, com que contempla a Deus. Logo, de nenhum modo exercerá os atos da potência sensitiva.

Mas, em contrário, a Escritura: Todo olho o verá. Logo, haverá então atividade sensível.

2. Demais. ─ Diz o Filósofo: O animado se distingue do inanimado pelo sentido e pelo movimento. Ora, na vida futura haverá movimento em ato, porque como faíscas por um canavial discorrerão, na frase da Escritura. Logo, haverá exercício atual da sensibilidade.
 
SOLUÇÃO. ─ Todos admitem que os corpos gloriosos exercem um certo sentido; do contrário a vida corporal dos santos depois da ressurreição seria assimilada mais ao sono que à vigília. O que não se lhes coaduna com a perfeição, porque no sono o corpo sensível não exerce o ato vital na sua plenitude, e por isso Aristóteles chama ao sono meia vida.

Mas as opiniões variam quando se trata de explicar o modo de sentir.

Uns dizem que, sendo os corpos gloriosos impassíveis e por isso incapazes de receber impressões estranhas, e muito mais que os corpos celestes, não exercerão a atividade sensível recebendo qualquer espécie dos sensíveis, mas antes projetando-o para o exterior. ─ Mas isto não pode ser. Porque na ressurreição perdurará a natureza específica tal qual era no corpo e em todas as suas partes. Ora, os sentidos são por natureza potências passivas, como o prova o Filósofo. Portanto, se na ressurreição os santos sentissem projetando a imagem exteriormente em vez de a receberem em si, não lhes seriam os sentidos potências passivas como presentemente são, mas uma virtude diversa que lhes foi dada; ora, assim como a matéria nunca pode vir a ser forma, assim uma potência passiva não poderá jamais vir a ser ativa.
 
Por isso pretendem outros que os sentidos dos ressurrectos se lhes atualizará por suscepção, não certo de sensíveis externos, mas por efluxo de forças superiores; de modo que, assim como na vida presente as potências inferiores recebem o influxo das superiores, assim ao contrário, serão então as inferiores que o hão de receber das superiores. ─ Mas este modo de receber não faz realmente sentir. Porque todas as potências passivas segundo a sua natureza específica são determinadas a uma atividade especial; pois, uma potência como tal se ordena à cousa donde lhe derivou o nome. Ora, o objeto ativo e próprio dos sentidos externos é a causa existente fora da alma e não a imagem dela existente na imaginação ou na razão. Por onde, se o órgão do sentido não for movido pelas cousas externas, mas pela imaginação ou por qualquer potência superior, não haverá verdadeiro ato de sentir. Por isso não se pode dizer que os frenéticos e outros mentecaptos, nos quais a predominância da imaginação faz decorrerem as espécies para os órgãos sensíveis, sintam verdadeiramente, mas dizemos que imaginam sentir.
 
Por onde, devemos responder, com outros, que os corpos gloriosos exercerão a sua sensibilidade pela suscepção do ato dos objetos exteriores à alma.

Devemos porém saber, que os órgãos dos sentidos podem ser modificados pelos objetos externos à alma de dois modos. Primeiro, por modificação natural, quando o órgão dispõe-se pela mesma qualidade natural do objeto exterior à alma, que age sobre ele. Assim, quando a mão se aquece pelo contato com um corpo quente ou sente um cheiro pelo contato com um corpo odorífero. De outro modo, por uma modificação espiritual, quando um órgão recebe a qualidade sensível no seu ser espiritual, i. é, a espécie ou a imagem da qualidade, e não a qualidade em si mesma; assim a pupila recebe a imagem de um corpo branco sem contudo tornar-se branca. Ora, a primeira espécie de percepção não produz a sensação, propriamente falando; porque o sentido é capaz de receber as espécies na matéria, mas separadas da matéria, i. é, sem o ser material que tem fora da alma, como ensina Aristóteles. E essa percepção modifica a natureza do recipiente, porque desse modo a qualidade é recebida no seu ser material; por isso não existirá nos corpos gloriosos. Mas sim a segunda espécie de percepção, que em si mesma, atualiza o sentido sem alterar a natureza do sujeito que a recebe.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Como já resulta do sobredito, a paixão implicada no ato de sentir, que outra cousa não é senão a referida percepção, não altera o estado natural do corpo na sua qualidade, mas o aperfeiçoa espiritualmente. Por isso a impassibilidade dos corpos gloriosos não exclui essa paixão.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Todo sujeito passivo recebe a seu modo a ação do agente. Se, pois, um ser é de natureza a poder receber uma modificação de um agente natural e espiritual, a modificação natural precederá à espiritual, como o ser natural precede ao intencional. Mas se é de natureza a receber somente uma modificação espiritual, não há mister de ser modificado naturalmente. Tal o caso do ar, incapaz de receber a cor no seu ser natural senão só no espiritual, modificando-se pois só deste último modo. Inversamente, os corpos inanimados só naturalmente podem ser modificados pelas qualidades sensíveis, e não espiritualmente. Ora, os corpos gloriosos não podem sofrer nenhuma modificação natural. Só poderão portanto recebê-las espirituais.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Na medida em que um órgão sensível receber uma nova espécie, nessa mesma o sentido comum, mas não o intelecto, formará um novo juízo sobre o objeto. Tal o caso de quem vê o que antes não conhecia. Quanto ao dito de Agostinho ─ não haverá então mudança de pensamentos ─ deve ser entendido dos pensamentos da parte intelectiva. Logo, não colhe a objeção.

RESPOSTA À QUARTA. ─ Quando de duas cousas uma é a causa da outra, a atenção da alma aplicada a uma não lhe impede nem lhe diminui a atenção aplicada à outra. Assim, um médico, ao mesmo tempo que examina a urina, pode também considerar as regras da arte concernente à cor dela, e mesmo até melhor. Ora, Deus é concebido pelos santos como a razão de tudo o que fazem ou conhecem; por isso os atos da virtude sensitiva, da contemplativa ou da ativa, em nada lhes podem impedir a contemplação divina, nem inversamente. ─ Ou podemos responder, que uma potência fica impedida no seu ato pela atividade intensa de outra, porque uma por si não é capaz de uma operação tão intensa sem que as outras ou os outros órgãos paguem um tributo do influxo do princípio vital que lhes cabia. E como os santos terão todas as suas potências perfeitíssimas, uma poderá exercer intensamente a sua atividade, sem que daí resulte qualquer obstáculo ao ato de outra. Tal se deu com Cristo.

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