Skip to content

Da "Santa Ursula"

 

................................................................
Estando neste porto a bela Armada 
Tomando o necessário mantimento, 
Para poder seguir sua jornada, 
E dar terceira vez o tréu ao vento; 
Sendo parte da noite já passada, 
A Virgem lá no seu retraimento, 
Quando estava dormindo toda a frota, 
Ao Cristo orou assim, branda e devota:
 
— Amor, divino Amor, Amor suave, 
Amor que amando vou toda rendida; 
Com quem não há na vida pena grave, 
Sem quem glória real não há na vida; 
Amor, que do meu peito tens a chave, 
Amor, de cujo amor sendo ferida, 
Quando verei, Amor, o que desejo, 
Para que veja, Amor, o que não vejo?
 
Amor, que d’amor cheio e de brandura, 
D’amor enches est’alma saudosa; 
Amor, sem cujo amor e formosura, 
Não pode nunca haver cousa formosa; 
Amor, com cujo amor anda segura 
Uma vida tão fraca e duvidosa, 
Quando verei, Amor, o que desejo, 
Para que veja, Amor, o que não vejo?
 
Amor, que por amor te dispuseste 
A restaurar o mundo errado e triste; 
Amor, que por amor do céu desceste; 
Amor, que por amor à Cruz subiste; 
Amor, que por amor a vida deste; 
Amor, que por amor a glória abriste, 
Quando verei, Amor, o que desejo, 
Para que veja, Amor, o que não vejo?
 
Amor, que mais e mais sempre te aumentas 
No coração que lá contigo trazes; 
Amor, que d’amor puro te sustentas 
No fogo em que tu mesmo arder me fazes; 
Amor, que sem amor não te contentas, 
De tudo com amor te satisfazes, 
Quando verei, Amor, o que desejo, 
Para que veja, Amor, o que não vejo?
 
Amor, que com amor me cativaste; 
(se livre pode ser quem não cativas) 
Amor, qu’em tais prisões m’asseguraste 
As esperanças d’antes fugitivas; 
Amor, que suspirando m’ensinaste 
A derramar por ti lágrimas vivas, 
Quando verei, Amor, o que desejo, 
Para que veja, Amor, o que não vejo?

 

AdaptiveThemes