Família e moral (139)
O Cânone 731, § 2º, claramente estabelece que “é proibido que os Sacramentos da Igreja sejam ministrados a hereges e cismáticos, ainda que peçam por eles e estejam de boa fé, exceto se, tendo rejeitado previamente os seus erros, eles se reconciliarem com a Igreja”
Todos os canonistas e moralistas concordam que aqueles que são hereges ou cismáticos e sabem que estão em erro não podem receber os Sacramentos da Igreja, a não ser que renunciem a seus erros e reconciliem-se com a Igreja. Numerosos decretos do Santo Ofício põem essa questão a salvo de qualquer controvérsia.
Há controvérsia acerca daqueles cristãos (batizados) que estão separados da Igreja de boa fé. É evidente que a Igreja não pode, como regra, permitir a administração dos Sacramentos a não-católicos. Isso negaria seus próprios princípios. Os Sacramentos são oferecidos àqueles que estão dispostos a viver de acordo com o que a Igreja ensina.
Acerca daqueles não-católicos que estejam em boa saúde, a proibição de dar os Sacramentos é absoluta. Mas, se estiverem em perigo de morte, parece que pode haver uma exceção.
O Santo Ofício, no dia 20 de Julho de 1898, permitiu a administração dos Sacramentos a hereges e cismáticos, desde que estejam de boa fé e tenham dado, ao menos, um sinal provável de boa fé, e desde que qualquer escândalo seja evitado.
Se eles estiverem inconscientes, o Santo Ofício declarou, no dia 26 de Maio de 1916, que a absolvição condicional e a extrema unção podem ser dadas se for possível julgar pelas circunstâncias que o cismático, ao menos implicitamente, rejeitou seus erros; deve-se evitar escandalizar os católicos presentes pela declaração do padre de que a Igreja supõe que aquela pessoa, em seus últimos momentos de consciência, desejou retornar à unidade da fé.
Deve-se salientar, porém, que é muito questionável se a administração dos Sacramentos da Penitência e da Extrema Unção (os dois Sacramentos acerca dos quais há discussões no caso de não-católicos que estejam em perigo de morte) é benéfica nesses casos. A principal dificuldade centra-se na intenção necessária para a recepção válida dos Sacramentos.
Acerca dos protestantes, como não acreditam nos sacramentos, especialmente nos da penitência e da extrema-unção, o caso deles não é um simples caso de falta de fé. Eles, positivamente, rejeitam o ensinamento católico. Mesmo havendo uma tristeza genérica pelos pecados cometidos, é difícil compreender como a vontade e a intenção genérica de "fazer tudo o que Deus pede" seria intenção suficiente para a recepção dos sacramentos, pois o próprio fundamento dessa intenção está ausente.
Supõe-se que eles desejariam receber os sacramentos se soubessem que são sacramentos, e se soubessem que Deus quer que eles os recebam. Como, na realidade, eles não sabem ou não creem, é difícil compreender como poderiam ter uma vontade ou intenção sobre algo que não conhecem ou não creem. Não parece ser possível que haja até mesmo uma intenção implícita. Por essa razão, os decretos do Santo Ofício requerem, ao menos, um sinal provável de boa fé e, portanto, ao menos pelas circunstâncias, rejeição implícita dos erros.
Os catecismos populares, normalmente, enunciam esse preceito como “confessar-se ao menos uma vez por ano ou mais se houver perigo de morte ou se se for receber a Comunhão”. O Código de Direito Canônico de 1917 é mais detalhado em suas prescrições. “Todos os membros dos fiéis de ambos os sexos, após atingir a idade da razão, estão obrigados a confessar seus pecados ao menos uma vez por ano” (Cânone 906)
Esse preceito vincula apenas aqueles que tenham pecados mortais em sua consciência, pois não há obrigação de confessar pecados veniais.
Ele obriga todos aqueles que atingiram o uso da razão – isto é, vincula as crianças desde que elas sejam capazes de cometer pecados mortais, ainda que não tenham atingido a idade de sete anos, e elas não estão isentas do preceito mesmo que não tenham feito sua primeira Comunhão. Se já tiverem feito primeira Comunhão, as crianças estão vinculadas tanto por este preceito quanto pelo da Comunhão anual, ainda que não tenham atingido a idade de sete anos.
Qualquer pessoa que faça uma confissão sacrílega ou voluntariamente inválida não cumpre o preceito de confessar seus pecados.
O Direito Canônico não especifica quando o intervalo de um ano começa. Em geral, entende-se que ele significa um ano comum, de Janeiro a Dezembro. Alguns autores sustentam que ele vai de uma Páscoa à próxima; outros, que abrange um ano após a prática de um pecado mortal. Na prática, as pessoas que vão ao confessionário e recebem a Santa Comunhão no tempo de Páscoa cumprem ambas as obrigações de confissão anual e Comunhão pascal.
Em perigo de morte, é obrigatório, se houver consciência de pecado mortal, por duas razões. Primeiro, pela obrigação que todo cristão tem de fazer tudo que pode para salvar sua alma. Agora, aquele que, estando em condições de se confessar, não quer fazê-lo, não pode obter perdão de seus pecados, ainda que faça um ato de contrição, que, nesse caso, não passa de uma ilusão, pois a contrição só tem valor se vier acompanhada do Sacramento da Penitência, que o pecador se propõe a receber. Segundo, a confissão é obrigatória em razão do preceito de receber o viaticum (viático), que é matéria grave e não pode ser recebido sem prévia confissão dos pecados mortais. Se a pessoa pode se confessar, um simples ato de contrição não é suficiente.
A confissão antes da Comunhão não é obrigatória se o pecador não está ciente de que está em pecado mortal. Mas, se ele estiver ciente de um pecado grave, por proibição expressa da Igreja (Cânone 856), o simples ato de contrição não é suficiente, por mais intenso que possa ser, a não ser que duas circunstâncias estejam presentes – necessidade urgente e ausência de confessor. Esse caso poderia acontecer, por exemplo, quando uma pessoa, já na mesa de comunhão e impossibilitada de se retirar sem chamar atenção dos outros, repentinamente se lembra de um pecado mortal que cometeu, ou se um Padre, precisando celebrar a Santa Missa para que os fiéis possam cumprir o preceito, não tem outro Padre para ouvir sua confissão. Nesses casos, um ato de contrição perfeita pode ser realizado antes da comunhão ou da celebração, mas sempre com a obrigação de se confessar posteriormente.
O que é a virtude da piedade?
A palavra “piedade” pode ser usado em vários sentidos diferentes: a) como sinônimo de devoção, religiosidade, dedicação às coisas que dizem respeito ao culto de Deus, e, portanto, por isso costumamos falar de pessoas “piedosas” ou devotas; b) como um equivalente de compaixão ou misericórdia, e, portanto, costumamos dizer: “Senhor, tende piedade de nós”; c) para designar uma virtude especial derivada da justiça, a virtude da piedade; e d) para se referir a um dos sete dons do Espírito Santo, o dom de piedade.
Como virtude especial derivada da justiça, ela pode ser definida como um hábito sobrenatural que nos inclina a dar a nossos pais, a nosso país e a todos aqueles relacionados com eles a honra e o devido serviço (IIa IIae, q. 101, art. 3).
Santo Tomás explica, sucintamente (IIa IIae, q. 101, art.1): “O homem se torna devedor de outros homens de várias maneiras de acordo com suas excelências variadas e os vários benefícios recebidos deles. De toda maneira, Deus está em primeiro lugar, pois Ele é supremamente excelente, e é para nós o primeiro princípio do ser e de governo. Em segundo lugar, os princípios de nosso ser e governo são nossos pais e nosso país, que nos deram a vida e nos criaram. Consequentemente, o homem é devedor, acima de tudo, de seus pais e de seu país, depois de Deus. Por essa razão, assim como é próprio da religião dar culto a Deus, assim também é próprio da piedade, em segundo lugar, dar culto aos pais e ao país. O culto devido a nossos pais inclui o culto dado a todos os parentes, pois nossos parentes são aqueles que descendem dos mesmos pais de acordo com o Filósofo (Ética, VIII, 12). O culto dado a nosso país inclui homenagem a todos os nossos concidadãos e a todos os amigos de nosso país. Portanto, a piedade extende-se, primariamente, a essas coisas”.
Por extensão, aqueles que formam a mesma família espiritual em uma ordem religiosa se chamam de irmãos e irmãs, e o fundador da ordem é chamado de pai religioso. Eles, também, merecem a mesma honra e serviço.
A piedade difere das virtudes conexas a ela. A primeira delas é a caridade, que une todo o gênero humano a Deus, enquanto a piedade une apenas aqueles pertencentes ao mesmo tronco ou linha familiar comum. Em seguida, vem a justiça legal, isto é, a obediência que os súditos devem à lei. Essa justiça se refere à pátria, vista como o bem comum buscado por todos os cidadãos. De outro lado, a piedade se refere à pátria como a origem da sua própria existência. E, porque a pátria sempre preserva esse segundo aspecto em relação a nós, deve-se concluir que o homem, ainda que tenha adquirido cidadania em outro país, sempre está obrigado a preservar piedade em relação a seu país de origem, embora não esteja mais obrigado aos deveres oriundos da justiça legal, pois ele deixou de ser súdito do governo de seu país.
Como a piedade é uma virtude especial, deve-se concluir que os pecados cometidos contra ela também são pecados especiais, que devem ser expressamente acusados na confissão. Portanto, bater ou maltratar o pai ou a mãe é um pecado especial contra a piedade que é diferente e muito mais sério que bater num estranho. Algo semelhante pode ser dito sobre os pecados que são cometidos contra a pátria enquanto tal ou contra parentes ode sangue.
Dois pecados se opõem à piedade devida a nossa família, um por excesso, outro por falta. O amor exagerado pelos parentes se opõe, por excesso, à piedade (IIa IIae, q. 101, art. 4), o que levaria ao não cumprimento de deveres maiores que os devidos a ele (p. ex., quem se nega seguir sua vocação religiosa ou sacerdotal pela exclusiva razão de não entristecer sua família). Por falta, é a impiedade, a negação dos deveres de honra, reverência, auxílio espiritual ou econômico, etc, quando se está apto a cumpri-los.
O nacionalismo exagerado, ao desprezar em palavras e atos as outras nações, opõe-se, por excesso, à piedade devida a nosso país. Por falta, é o tão chamado cosmopolitanismo de homens sem uma pátria, cujo lema é o velho adágio pagão Ubi bene, ibi pátria, “onde eu estiver bem, confortável, lá é meu país”.
Irmãs da Fraternidade São Pio X
"Mamãe, o Lucas me empurrou!" "Professor, o Vianney está me copiando!" "Mamãe, Joana pegou meu livro!" Como devemos responder a tais acusações? Devemos encorajá-las endossando-as, ou tirar partido dessas informações recém-descobertas? Será que o acusador é movido por um senso de justiça, pelo desejo de ver o triunfo de tudo o que é bom e verdadeiro? Ou será egoísmo e amor-próprio o que inspira tais comentários?
Infelizmente, a última hipótese é mais frequente. Se completássemos as acusações mencionadas, ouviríamos: "Lucas não me empurrou de propósito, mas, não estou pronto para perdoar essa leve falta de respeito involuntária." "Vianney me copiou, e como ele não é legal, resolvi puni-lo." "Joana pegou meu livro porque fui egoísta e não queria emprestar."
Portanto, podemos interromper o acusador dizendo "Eu não escuto dedo-duro." A criança entenderá que não é correto dizer tais coisas e, em seguida, não dará continuidade à acusação. No entanto, quando essas acusações seguem ocorrendo diariamente, é preciso parar e se dedicar a fazer com que a criança reflita sobre a moralidade dos seus atos.
Por exemplo, ao ouvir uma acusação, podemos responder: "Você acabou de me dizer que Cecilia trapaceou no jogo. Trapaceou mesmo? O que ela fez?” Ao fazer mais perguntas e se aprofundar um pouco mais, a mãe descobre que Cecília não tinha realmente trapaceado: "Só um pouco, mãe, porque ela soprou os dados para que desse um seis e seu cavalo pudesse avançar..."
"Mas isso não é trapaça, você sabe disso! Você está acusando a Cecilia de ter trapaceado quando ela não o fez. Disse coisas que não são verdadeiras, você sabe qual é o nome disso?”
"Mentira..."
"Você precisa perceber que mentiu. Será que fez isso porque a Cecilia estava ganhando o jogo?"
"Sim, mamãe..."
"Será que você estava com um pouco de ciúmes e procurou se vingar dela?"
"Um pouco..."
"Ora, esse é o tipo de mentira que chamamos de calúnia. Calúnia é dizer uma mentira sobre alguém a fim de causar-lhe algum dano; para puni-lo, por exemplo. Isso é pecado." E com ar de gravidade, a mãe conclui: "Nunca mais quero ouvir você dizer essas coisas novamente." Finalmente, em tom mais suave, acrescenta: "Que tal você correr e retomar o jogo com Cecilia, não se esqueça de estar de bom humor e de ser caridosa com sua irmã."
Aqui vai outra história:
Alice volta para casa toda agitada. "Mamãe, Maria não tem mais sua caneta rosa porque a Ana roubou dela. Todas as meninas têm certeza de que foi a Ana, porque ela ama canetas cor-de-rosa!” "Lá vamos nós de novo", suspira a mãe. Agora uma história de roubo na escola... e se for verdade? Por prudência, ela se limita a dizer: "Eu não escuto dedo-duro." No entanto, procurará conversar com a professora. A freira conhece bem os alunos de sua turma e esclarecerá rapidamente a situação. "Maria certamente perdeu sua caneta em algum lugar, não será a primeira vez que perde os seus pertences. Quanto à Ana, é uma mocinha passando por um surto de crescimento, bastante desajeitada, e, portanto, não é muito querida pelas suas colegas de classe. Mas não é nenhuma ladra. Talvez a Alice precise de uma lição sobre o respeito devido à reputação dos outros”.
Naquela mesma noite, a mãe chama Alice: "Filha, ontem, você disse que Ana tinha roubado a caneta da Maria. Você a viu fazer isso?”
"Não mamãe, mas Ana gosta muito de canetas cor-de-rosa."
"Isso não é razão para acusá-la! Você também gosta de canetas cor-de-rosa, mas isso não significa que está pronta para roubá-las. Você acusou a Ana de ser uma ladra sem motivo. Você sabe como isso é chamado?”
"Não, mamãe".
"Julgamento temerário, que é algo que não se deve fazer. Todas as meninas da escola estão dizendo que a Ana é ladra. Você gostaria que todos estivessem te chamando de ladra, mesmo que não seja verdade?
"Eu não sou ladra!"
"Você não percebe? A Ana também não é. Você se comportou mal com ela. Amanhã, irá se entender com a Ana, dirá que ela não é ladra e, em seguida, vai brincar com ela no recreio”.
O oitavo mandamento nos proíbe revelar qualquer mal cometido por outro sem justa causa. No entanto, há quatro casos em que uma criança não só pode, mas deve dizer que testemunhou um pecado. Esses casos não são "inúteis" quando conhecidos, porque permitem que os adultos acabem rapidamente com o grave escândalo em questão. São eles: blasfêmia, crueldade, sabotagem e impureza.
Por exemplo, quando o Alan voltou para casa do internato, disse: "Mãe, estou um pouco enojado com o que o Luís fez. Ele descobriu uma maneira de levar seu celular para a escola e, em seguida, passou a visitar certos sites à noite com outros meninos do dormitório. Para dizer o mínimo, os sites eram muito vulgares..."
Algumas perguntas garantem à mãe a gravidade do que aconteceu. "Alan, você fez a coisa certa falando comigo porque isso é muito sério e é considerado um escândalo. Ou seja, algo que incita os outros a pecar também. Agora que falou comigo sobre isso e cumpriu seu dever, gostaria que esquecesse e não falasse mais da situação com os outros. E lembre-se, evite as más amizades como quem evita a peste." De agora em diante, a mãe de Alan tem o desagradável dever de ir à escola, sem que o filho esteja presente. Ela deve apresentar as informações recebidas ao diretor da escola, e deixá-lo lidar com o problema.
A língua é uma pequena parte do nosso corpo, mas pode acender um grande fogo! Na epístola de São João, lemos "Se um homem não peca na palavra, ele é perfeito." É essa perfeição que queremos e buscamos para nossos filhos.
(The Angelus, março de 2021)
Posso fazer tatuagem, já que surgiram tecnologias para removê-las de modo simples, barato e indolor?
Fazer tatuagem não é um ato pecaminoso em si mesmo, mas também não é um ato moralmente neutro. Em todo caso, não é a facilidade de remoção a condição fundamental para determinar a sua moralidade. A “moralidade” de um ato consiste na relação deste com a lei moral, que é, em última instância, a lei de Deus. Ela pode ser determinada considerando o objeto da ação (o que se faz), juntamente com o fim desejado por quem desempenha a ação, as circunstâncias em que ela se realiza, e como esses três fatores se relacionam com a lei moral, seja quando está em conformidade com ela (neste caso, a ação é moralmente boa) ou quando se lhe é oposta (a ação é moralmente má, um pecado).
Pois bem, primeiramente, o objeto: o que é uma tatuagem? Tatuagem é uma “marca ou desenho permanente feito no corpo por meio da introdução de pigmento na pele” (Enciclopédia Britannica). A tatuagem tem sido usada no mundo em diferentes períodos históricos por razões distintas. Havia sido praticamente erradicada do mundo ocidental até ter sido redescoberta nos últimos séculos pelo contato com índios americanos e polinésios, porém mesmo então era usada quase exclusivamente pelas camadas marginais e menos respeitáveis da sociedade. Hoje, todavia, desde os anos 1990, a tatuagem parece ter se tornado uma moda, chegando até a ser “respeitável”.
Não obstante as tatuagens terem sido proibidas na Bíblia (Lv 19,28), foram-no porque representavam a profissão de superstições cananitas e cultos pagãos. Em si mesma, enquanto simples marca no corpo, a tatuagem não é pecaminosa, pois não transgride um mandamento divino, tampouco um bem humano ou ensinamento da Igreja. No entanto, pode se tornar pecaminosa devido à sua circunstância, por exemplo: o custo de uma tatuagem pode ser excessivo em relação ao ganho de uma pessoa; a tatuagem pode deixar cicatrizes se removidas posteriormente; a imagem tatuada pode ser imoral ou obscena e até mesmo blasfema ou satânica; ela pode cobrir uma parte muito grande do corpo, desfigurando-o, ou pode ser feita em uma parte imodesta do corpo.
Isso nos leva a considerar o fator mais importante na avaliação da moralidade de uma tatuagem: a razão para fazê-la.
Em algumas culturas, fazia-se tatuagem para receber proteção mágica contra algum mal, ou para assinalar o grau, status ou pertencimento do tatuado a um grupo, ou até como simples ornamento corporal. Os antigos romanos tatuavam criminosos e escravos e, no século XIX, condenados americanos em liberdade e desertores do exército inglês eram identificados com tatuagens. Os cristãos coptas tatuavam crucifixos em suas testas e dedos como uma profissão de fé contra o invasor islâmico. Alguns peregrinos medievais faziam o mesmo, para dar testemunho do término de sua jornada de devoção.
Hoje, contudo, a aparente onipresença das tatuagens provém de motivos muito distintos: uma adesão irrefletida a tendências e modas; imaturidade e imprudência; um espírito de desobediência ou rebelião contra as autoridades ou convenções sociais. Muitas vezes, faz-se tatuagem por pressão dos colegas ou por desejo de ir contra a sociedade, por tédio ou busca de novidades, por desejo de chamar atenção, por vaidade e ostentação, por narcisismo, por um espírito de exibicionismo que pode até revelar um desequilíbrio psicológico mais grave. Todos esses atos podem ser pecaminosos em diferentes graus.
Demais, temos o dever de respeitar e cuidar do nosso corpo, que nos foi dado por Deus e transformado pela graça em templo do Altíssimo. "Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, o qual recebestes de Deus e que, por isso mesmo, já não vos pertenceis? Porque fostes comprados por um grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo. (1Cor 6,19). Qualquer alteração ou desfiguração desnecessária e injustificada do corpo é – também aqui, com diferente graus de culpabilidade – uma violação da verdade, do nosso dever de bem cuidá-lo.
Por fim, tatuar-se é um modo de se identificar com uma cultura e seus valores. Ceder ao movimento moderno das tatuagens é um modo de acomodar-se à vida do mundo, à cultura anticristã e a um modo de vida esvaziado de valores cristãos. Como disse São Paulo "Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito" (Rm 12,2). Somos católicos, estamos no mundo mas não pertencemos ao mundo, não devemos imitá-lo. Só Nosso Senhor deve ser a luz e o guia de nossas ações, e não as modas e mentalidades mundanas.
Pe. Arnaud Sélégny, FSSPX
Depois de várias vacinas contra a Covid-19 terem sido desenvolvidas, vários rumores passaram a circular sugerindo a impossibilidade moral de usá-las.
A situação farmacêutica é extremamente complexa e cambiante. Até o momento, existem cerca de cinquenta vacinas diferentes já produzidas ou em desenvolvimento, de acordo com quatro métodos distintos de elaboração.
O presente artigo trata exclusivamente de responder a seguinte questão moral: considerando a base concreta do funcionamento de uma vacina e a maneira como é preparada, é possível utilizar alguma delas sem cometer pecado?
Todos são livres para opinar sobre a origem da Covid-19, sobre a forma como a epidemia tem sido gerida aqui e ali, sobre a política de vacinação de um determinado país ou sobre a vacinação em geral. No entanto, tudo isso não muda a conclusão moral dada aqui.
Artigo atualizado em 6 de março de 2021.
Este artigo é dividido em três partes, necessárias para a compreensão do julgamento moral apresentado.
I. Visão geral da vacinação
A ideia da vacina
A ideia de preparar o corpo para os efeitos nocivos de venenos ou agentes infecciosos não é nova. Pode remontar ao rei Mitrídates (132-63 A.C). Diz-se que ele toma pequenas quantidades de veneno para se acostumar com ela. Essa ideia pode ser encontrada hoje na dessensibilização, que visa reduzir reações inadequadas em indivíduos alérgicos. O sujeito é colocado em contato com quantidades crescentes de elementos aos quais é sensível para, em última análise, suprimir a reação alérgica a esses elementos.
Na vacinação, o mecanismo é diferente. Envolve a administração total ou parcial de um agente infeccioso, às vezes apenas o seu produto, para fazer o corpo reagir e permitir que adquira imunidade contra esse agente.
Uma primeira conclusão importante deve ser tirada. A vacinação não faz mais do que usar uma propriedade do corpo humano ou animal: sua chamada capacidade imunológica de se opor ativamente a agentes estranhos que o atacam. Assim, se um sujeito for infectado pelo bacilo de Koch, o agente da tuberculose, e se recuperar, ficará imune a uma nova infecção: essa é a imunidade natural. Se outro sujeito for vacinado com a vacina BCG (Bacilo de Calmette e Guérin), que vem de um bacilo de Koch atenuado, também desenvolverá imunidade, produzida pela vacinação: é uma imunidade induzida, eficaz contra o bacilo de Koch.
Mas é óbvio que essa imunidade também é natural: é apenas a forma como foi produzida que difere. Essa imunidade induzida costuma ser menos durável, porque a reação desencadeada é menos vigorosa do que durante uma doença.
Os diversos tipos de vacina
Até o presente, as vacinas podiam ser classificadas em duas categorias: as vacinas de vírus vivo atenuado e de vírus inativado.
No primeiro caso, antes de serem administradas, o agente infeccioso era modificado a fim de tornar-se inofensivo, mantendo, porém, seu poder antigênico, ou seja, sua capacidade de provocar uma reação imunológica. O caso do BCG é característico deste método. O sistema imunológico ataca o agente da vacina e se lembrará de sua intervenção: então, torna-se capaz de se defender contra um ataque do agente infeccioso.
Este tipo de vacinação, no entanto, é contraindicado para indivíduos imunodeprimidos -- cujo sistema imunológico é deficiente – porque, nesse caso, há o risco de uma infecção verdadeira. Foi o que ocorreu com a vacinação contra a varíola, produzindo muitos dramas.
No caso das vacinas de vírus inativado, o agente infeccioso está morto; pode ser administrado inteiro ou em parte. Entre as vacinas desse tipo, a antitetânica é um caso singular: não utiliza o agente infeccioso, mas a toxina que ele produz, que é perigosa e até mesmo fatal. Essa toxina é desintoxicada antes de ser administrada, de forma que não representa mais um perigo, mantendo seu poder antigênico.
A esta última categoria podemos associar as vacinas ditas “proteicas”: o agente vacinal é composto apenas de proteínas do envelope do vírus, ou de todo o seu envelope esvaziado de seu conteúdo.
Outra variante consiste em utilizar um vírus inofensivo para o homem, para introduzir o agente vacinal na célula-alvo (vetor viral).
Vacinas sintéticas
Um novo tipo de vacina vem sendo estudado há dez anos. Foi pensado inicialmente para doenças como Ebola ou Zika. A ideia foi retomada para a vacina contra a Covid-19.
Como todas as coisas vivas, o vírus da Covid-19 contém material genético formado a partir do ácido ribonucléico (RNA). Nos seres vivos, o RNA pode existir de várias formas: RNAm (mensageiro), que transmite informações do DNA do núcleo da célula para os sistemas do usuário; RNAt (transportador), que fornece os elementos a serem montados de acordo com o código do RNAm; RNAr (ribossômico) que constitui os ribossomos, as fábricas de fabricação de proteínas.
A ideia da vacina sintética é copiar uma pequena parte do vírus afetado sob a forma de um RNAm. A parte escolhida no caso do Covid-19 é a parte que codifica a espícula, elemento que permite ao vírus entrar nas células.
Este RNAm da vacina é administrado ao sujeito e penetra em uma célula, resultando em sua multiplicação. Ao sair da célula, é apreendido como um elemento estranho e destruído pelo sistema imunológico. Como resultado, o indivíduo adquire uma imunidade induzida que lhe permitirá lutar contra uma infecção real de Covid-19.
A vantagem desse método é a velocidade do processo de elaboração da vacina. Com efeito, dois laboratórios que já anunciaram resultados muito satisfatórios utilizam este método. O laboratório russo Gamaleya produz uma vacina de forma semelhante, mas utiliza um “vetor”, ou seja, um vírus inofensivo para o homem, para introduzir o fragmento de RNA. Isso pode representar um problema moral que será examinado mais tarde.
Os especialistas em RNAm possuem algumas objeções à tais vacinas que merecem ser consideradas. Primeiramente, vários parâmetros necessários à eficácia da vacina parecem aleatórios demais. Por exemplo, pacientes com câncer ou doenças autoimunes podem sofrer complicações. Além disso, a possibilidade do RNAm ser convertido em DNA, embora muito baixa, não é nula. Isso poderia levar à incorporação deste RNA no genoma. Essa é a razão pela qual essa vacina tem sido contraindicada para pacientes infectados com o vírus HIV.
Finalmente, quando se trata de vacinação, a história da medicina tem mostrado que não se pode dispensar certos passos e do tempo que eles requerem. A pressa com que essas vacinas de RNAm foram permitidas, pode, portanto, ser considerada uma grave imprudência.
A preparação das vacinas
A preparação de uma vacina envolve três etapas: desenvolvimento, produção e testes laboratoriais. No curso dessas três etapas pode surgir uma dificuldade moral em função do ambiente na qual a vacina é preparada.
Deve-se notar desde já que vacinas contra doenças transmitidas por bactérias não estão em questão. Neste caso, o meio de cultura é apenas um conjunto de nutrientes que a bactéria usa para se alimentar: glicose, água, cálcio etc.
No caso das vacinas virais, a dificuldade é a seguinte: cada uma das três etapas da sua preparação pode requerer uma cultura do vírus, necessitando de um ambiente celular vivo. No caso específico de vacinas sintéticas, isso ocorre apenas na fase de teste.
Os virologistas usam três tipos de células: células de órgãos humanos ou animais; linhagens contínuas , que muitas vezes são de origem cancerosa e se multiplicam quase indefinidamente; e células embrionárias humanas, que também se multiplicam por muito tempo.
Linhagens embrionárias humanas
Entre essas últimas, há atualmente pelo menos três linhagens derivadas de um aborto: a linhagem HEK-293, originária de um feto abortado em 1972 nos Países Baixos, a linhagem MRC-5, originária de um feto abortado em 1966 na Inglaterra, e a linhagem Per.C6, que veio de um feto abortado nos Países Baixos em 1985.
A utilização de células de fetos abortados para produzir vacinas está em curso desde a década de 1960, e já levou ao desenvolvimento de diversas vacinas, como as que previnem rubéola, varicela, hepatite A e zona.
No quadro do desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19, essas células são utilizadas tanto para produzir os vetores virais (adenovírus), que transportarão o agente vacinal, como para produzir a proteína da espícula do coronavírus, que provocará a resposta imune.
Infelizmente, as empresas farmacêuticas preferem usar células de fetos em vez de células adultas, que envelhecem mais rápido e param de se dividir. As células fetais também são menos propensas a serem infectadas com vírus ou bactérias, ou ter sofrido mutações genéticas.
II. Problemas morais acarretados pela utilização de linhagem proveniente de fetos abortados
A questão é saber se alguém pode utilizar ou, em alguns casos, ser obrigado a usar uma vacina que teria sido cultivada em células derivadas do aborto.
O crime de aborto é tão abominável e tão difundido hoje em dia que, à primeira vista, a questão parece supérflua; espontaneamente, o católico responde: não.
Na realidade, o problema pode ser extremamente delicado, porque acontece que, em certas circunstâncias muito específicas, podemos ser confrontados com deveres tão graves, que conduzem a verdadeiros casos de consciência. Nesses dilemas assustadores, o apoio da teologia moral é essencial para examinar a situação em profundidade e discernir o bem a ser realizado.
Observações preliminares
É necessário observar que as células fetais não são injetadas com a vacina, como acreditam alguns: elas servem apenas para a cultura dos vírus e, além do mais, são destruídas pelos vírus, como o são as células infectadas de um paciente. Isso não muda em nada o problema moral.
Deve-se notar também que o problema não é o uso das células fetais em si, porque poderiam ter sido obtidas legalmente, no caso de aborto espontâneo. O problema é que foram obtidas por uma má ação, um aborto.
Distinções em jogo
O princípio que guia a reflexão aqui é o da cooperação no mal. A questão geral é a seguinte: é lícito cooperar com o mal ou o pecado dos outros? A teologia moral deu as explicações necessárias.
Ajudar um pecador a cometer seu pecado é chamado de "cooperação para o mal", independentemente da ajuda dada. Para que se constitua, a ação do cooperador deve ter uma influência real sobre o ato maléfico, através da ajuda prestada para produzi-lo.
Para avaliá-lo, é preciso situá-lo com exatidão. Isso é muito importante. Aqueles que negligenciam esses detalhes podem não julgar apropriadamente a moralidade da cooperação.
A cooperação é dita imediata quando o cooperador realiza com o pecador o ato mesmo do pecado, por exemplo, se ajuda o ladrão a tirar o butim e a escondê-lo. É o caso do auxiliar cirúrgico que realiza certas partes do aborto ao lado do abortista.
A cooperação é dita mediata quando o cooperador fornece algo que será útil ao pecador – material, ajuda, recurso -- ou que lhe permita fazê-lo mais facilmente. É o caso de quem segura a escada para o ladrão, ou da enfermeira que auxilia o abortista.
A cooperação mediata pode ser mais ou menos “próxima” ou “distante”, conforme a ajuda prestada influencie mais ou menos o pecado cometido, ou tenha maior ou menor conexão com ele. Assim, fornecer um ídolo a um pagão é uma cooperação estreita. Mas vender a madeira da qual o ídolo será feito é uma cooperação distante.
Além disso, em razão da intenção, distingue-se a cooperação entre formal e informal. A primeira é quando o cooperador consente voluntariamente com o pecado para o qual está ajudando. Portanto, quem ajuda um ladrão ficando à espreita, por exemplo, ao aprovar esse pecado, coopera formalmente. Ele também será chamado de "cúmplice" pela lei.
A cooperação é material quando o cooperador não quer pecar, mas age prevendo que o pecador abusará da sua contribuição para pecar. Assim, o dono do bar que concorda em dar alguns drinques a um cliente já embriagado, apenas pelo dinheiro, participa do pecado da embriaguez, mas não se associa à intenção do bêbado.
Princípios
-- A cooperação formal é sempre ilícita e proibida, pois assume o pecado a que se coopera. O cooperador procura o próprio pecado.
-- A cooperação imediata, mesmo que apenas material, é ilícita, porque é um ato ruim e, na maioria das vezes, um pecado idêntico ao do pecado principal. Por exemplo, um assistente de cirurgião que participa da esterilização -- ligadura das trompas ou vasectomia -- comete o mesmo pecado que o do cirurgião, pois sua ação influencia diretamente o ato de pecado que não poderia ser cometido sem o seu concurso, ou ao menos seria realizado com muito mais dificuldade.
-- A cooperação mediata pode ser tanto lícita como ilícita. Na maioria das vezes, e ordinariamente, é ilícita, pois devemos sempre procurar evitar ações más ou cooperar com elas.
Não obstante, por uma utilidade real ou grave necessidade, às vezes podemos ser convidados a fazer algo que, embora bom em si mesmo, será uma cooperação mediata a uma ação ruim.
A utilidade ou necessidade em questão pode ser tão imperiosa que se é então dispensado da obrigação de evitar a cooperação com o mal. Diz-se que há uma razão proporcionalmente grave para a cooperação lícita.
Tomemos um exemplo geral: os diversos personagens ao redor de um aborto:
-- cooperador imediato: o auxiliar cirúrgico que realiza uma parte do procedimento;
-- cooperador mediato próximo: o instrumentador, que ajuda o médico dando-lhe os instrumentos.
-- cooperador mediato menos próximo: a enfermeira que preparar a mulher para a operação;
-- cooperador mediato ainda menos próximo: o funcionário que cuida da sala de cirurgia;
-- afastando-se ainda mais: o funcionário que esteriliza os instrumentos necessários;
-- cooperador remoto: o laboratório que fornece os anestésicos e os dilatadores, ou o fabricante de instrumentos cirúrgicos: em ambos os casos, os equipamentos fornecidos podem ser utilizados para intervenções que não sejam um aborto;
-- cooperador muito remoto: a empresa que realiza a entrega desses produtos.
Pressupondo a cooperação material em todos esses casos, a "proximidade" com o pecado cometido é muito variável. Devemos dizer que todos esses cooperadores materiais estão absolutamente obrigados a abster-se de suas funções? E isso a qualquer custo?
A teologia moral responde que não. A influência sobre o ato mau é tão pequena, por exemplo, no ato de varrer a sala de cirurgia, que a manutenção do emprego é razão suficiente para o faxineiro.
Por outro lado, quanto maior for a influência sobre o pecado, mais grave terá de ser a razão. E quando a proximidade é muito grande, nenhuma razão pode justificar. Então, é preciso recusar, mesmo que se tenha que mudar de emprego.
III. Aplicação ao caso das vacinas preparadas com células provenientes de um aborto
Trata-se agora de situar a cooperação dos envolvidos no preparo ou uso de uma vacina, caso seja preparada com células obtidas de um aborto. Presume-se que esta seja uma cooperação material, porque a cooperação formal é sempre ilícita.
Quem quer que fabrique ou comercialize esta vacina está cooperando com o pecado do aborto de uma forma que, embora não possa ser considerada próxima, pode ser considerada imoral. A culpa varia, entretanto, dependendo do papel exercido.
Quem dirige uma empresa farmacêutica que lucra com um aborto anterior tem responsabilidade maior. Primeiro porque poderia não fabricar essa vacina, segundo porque deveria interromper o uso das linhagens celulares em questão e escolher outras que não representem um problema moral, mesmo que isso tenha suas desvantagens.
O pesquisador que escolhe as linhagens celulares com as quais deseja trabalhar se encontra em uma situação semelhante: está lucrando com um crime passado.
Mas o técnico de laboratório, que é apenas um executor, ou o caminhoneiro que entrega a vacina, têm apenas uma cooperação distante, então é aceitável, principalmente para o segundo.
O médico que vacina um paciente, ou o paciente que é vacinado, tem cooperação distante, pois esses atos encorajam e promovem o pecado do aborto de uma forma muito remota e muito tênue. Por razões de saúde suficientes, tais atos poderiam ser moralmente permitidos.
Uma jovem que está prestes a se casar pode, portanto, receber a vacinação contra a rubéola, embora essa vacina seja quase sempre preparada com células fetais obtidas pelo aborto. O motivo é o perigo para a criança: se uma mulher contrair rubéola durante a gravidez, principalmente no primeiro trimestre, os riscos de malformações - olhos, audição ou coração - são grandes. Essas malformações são permanentes.
No entanto, se uma vacina é obtida de células não abortivas e está disponível, é claro que é ela que deve ser usada.
Aplicação ao caso da vacina contra a COVID-19
Ocupamo-nos aqui apenas com a seguinte questão: o aspecto moral do uso de uma vacina contra a Covid-19 no que se refere ao seu processo de preparação ou fabricação.
Linhagens utilizadas no âmbito da vacina contra Covid-19
A lista completa das vacinas em preparação é fornecida no documento anexo a este artigo. Este documento especifica a empresa responsável e a utilização eventual de células de feto abortado, em uma ou outra fase da preparação: concepção, produção e testes.
Lista de vacinas atualmente em preparação (anexo)
Julgamento moral segundo os princípios colocados
Visto que algumas das vacinas existentes não foram preparadas de modo ilícito, elas não representam um problema moral de uso deste ponto de vista. Elas devem, portanto, ter preferência sobre as outras.
As vacinas que usaram uma preparação moralmente ilícita devem ser ignoradas na medida do possível.
Mas e se, em um caso particular, alguém precisar ser vacinado, e não conseguir obter uma vacina "lícita", tendo apenas uma vacina "ilícita" disponível? Isso pode ocorrer por motivos de saúde -- idoso vulnerável -- ou devido à situação profissional -- pessoal médico exposto; ou por motivos profissionais, como viajar de avião, porque já existe pelo menos uma companhia aérea -- a Qantas, no caso - que comunicou que só aceitará passageiros vacinados assim que as vacinas estiverem disponíveis. É muito provável que esse requisito seja rapidamente aceito por muitas companhias aéreas.
Como a cooperação é distante, e o motivo alegado é suficientemente sério, é possível, nesses casos, lançar mão dessa vacina. Além disso, cada um deve julgar, buscando conselhos apropriados, se há real necessidade.
Deve ficar claro que estamos aqui no domínio de um juízo de prudência, que não pode ser uniforme para todos e em todos os casos. A teologia moral diz o que é legal ou ilegal. Ele fornece os princípios, mas cabe à prudência pessoal julgar sua aplicação caso a caso.
Quanto aos elementos alheios a esta questão [da legalidade segundo a origem e o preparo da vacina], são da ordem da opinião pessoal. Como qualquer opinião que não pode ser absolutamente provada, é vão e impossível querer impô-la a todos. Todos são livres para opinar sobre a origem da Covid-19, sobre a forma como tem sido gerida aqui e ali, sobre a política de vacinação de um determinado país, sobre a vacinação em geral; mas todos esses elementos não mudam a conclusão moral dada aqui.
Uma última observação
Deve-se notar que, além do caso dessas vacinas que estudamos, a cooperação com o mal ocorre em muitas situações análogas: esta última pode ser tratada e resolvida de acordo com os mesmos princípios morais. Por exemplo:
Devemos deixar de pagar impostos, por exemplo na França, uma vez que parte do dinheiro é usado para reembolsar o aborto ou reprodução assistida?
Devemos concordar em obter suprimentos de um farmacêutico que vende produtos ilícitos: abortivos, preservativos, anticoncepcionais? Isso não seria uma forma de encorajamento?
Devemos aceitar ser tratados por um médico que aprova o aborto e prescreve a pílula?
Podemos ir até uma loja de departamentos ou a uma livraria que vende jornais ruins?
O caixa deve se recusar a atender um cliente que quer comprar um DVD ruim? Obviamente, a lista poderia continuar indefinidamente.
Apresentamos um exemplo final tirado do Novo Testamento: É lícito comer idolothytus, em outras palavras, carne sacrificada aos ídolos (1 Cor 8, 1)?
Para compreender a questão, é importante saber que toda a carne consumida na Antiguidade necessariamente passava pelos templos. Aliás, só existe uma palavra em grego, mageiros (usada exclusivamente no masculino), para designar o sacrificador, o açougueiro e o cozinheiro: para quem queria se abster da carne imolada, não havia outra carne para comer.
Acrescentemos que o pecado da idolatria é um dos mais graves, pois ataca o próprio Deus.
A resposta que São Paulo dá é a seguinte: é permitido comer essas carnes, a menos que isso escandalize o vizinho. Ou seja, quem quer que consuma essa carne não está participando do pecado da idolatria. Não fosse assim, São Paulo não teria respondido dessa maneira.
Da mesma forma, quem está em uma situação de cooperação material suficientemente distante no uso de uma vacina contra Covid-19, cuja fabricação tenha se beneficiado de uma das linhagens celulares acima mencionadas, não participa do pecado do aborto cometido 35, 48 ou 54 anos atrás.
Porém, como já foi dito, deve-se, na medida do possível, evitar a cooperação no mal, mesmo material, e se houver opção, tomar a vacina que não represente nenhum problema moral.
No entanto, não devemos contentar-nos com este estado de coisas deplorável e não fazer nada. Católicos influentes devem usar todo o seu poder para influenciar a indústria farmacêutica a desenvolver suas novas vacinas de maneira a não apresentar dificuldade moral.
[Nota da Permanência: O texto seguinte foi tirado do livro "O Espírito de Família", de Monsenhor Henri Delassus, à venda na nossa livraria. Agradecemos à Editora Castela a permissão de publicá-lo.]
“Interroga as gerações passadas e recorda diligentemente a experiência dos antepassados: porque somos de ontem e não sabemos, pois os nossos dias sobre a terra passam como a sombra. E eles instruir-te-ão e falarão contigo, e tirarão sentenças do seu coração: Acaso pode crescer o papiro fora da terra úmida e o junco germinar sem água?” (Jó 8, 8-11)
Devolver aos pais de família a liberdade de reconstituir um patrimônio — bem de família transmissível de geração em geração — é apenas parte da tarefa a executar para povoar novamente a Europa com autênticas famílias, na plena acepção da palavra. A outra tarefa é fazer renascer nelas as tradições. A primeira está ao nosso alcance apenas indiretamente, através do legislador; a segunda pode e deve ser a obra de cada um de nós no seu próprio meio social. Só se pode esperar a abolição das leis revolucionárias a partir de um grande movimento de opinião. Mas o que cada um pode fazer é reavivar em torno de si o espírito de família. Desse modo, fará aos seus o que de melhor está ao seu alcance e ao mesmo tempo preparará a renovação da sociedade. Porque é necessário que existam tradições subjacentes às leis, para que elas tenham a força que o assentimento do coração lhes dá, da mesma forma que é necessária uma educação familiar subjacente às tradições para as sustentar e fazer com que elas se tornem o princípio dos costumes, sem os quais as boas leis nada são e contra os quais as leis más nada podem.
“Enquanto um vestígio de tradição uniu a França nova à França antiga — escreveu Émile Montégut — a Revolução não pôde chegar às suas últimas consequências. Mas quando a roda do tempo girou o suficiente para que não subsistisse qualquer resíduo do passado, a hora da lógica soou; e as gerações contemporâneas, educadas em uma sociedade na qual só a Revolução permanece de pé, ouvem sem estranheza palavras que, trinta anos antes, as teriam enchido de horror e de medo.”
Hoje assiste-se impassível a atos que teriam revoltado os povos mais bárbaros na antiguidade pagã. Nas escolas, onde antes se ensinava as crianças a conhecer, amar e adorar a Deus, agora formam-se, por ação ou omissão dos responsáveis, pessoas sem religião e sem moral.
De onde vem essa impassibilidade? Do fato de já não haver nos espíritos ideias claras nem princípios solidamente ancorados nas almas, mas só ideias vagas e flutuantes, incapazes de inflamar os corações. E por que são assim flutuantes as ideias nos nossos dias? Porque as ideias-matrizes, as ideias-princípios, não foram impressas nas almas das crianças por pais que as tivessem haurido nos ensinamentos dos avós, por sua vez imbuídos dessas verdades pelos antepassados. Em uma palavra, porque as famílias já não têm tradição.
Havia antigamente uma ideia muito difundida, uma ideia quase religiosa, ligada à expressão tradições de família, entendida esta no sentido mais alto: uma herança de verdades e virtudes, no seio das quais se formaram os caracteres que proporcionaram a uma casa de família a sua duração e grandeza.
Hoje em dia, essa expressão nada diz às novas gerações que vêm ao mundo. Surgem em um dia para desaparecer no seguinte, sem ter recebido e sem deixar depois delas um conjunto de recordações e afetos, de princípios e costumes que outrora se transmitiam de pai para filho e davam às famílias que lhes eram fiéis a possibilidade de ascenderem na sociedade. A família que possui tradições, geralmente deve-as a um antepassado seu, no qual o sentimento do bem foi mais forte do que nos seus semelhantes e a quem foram dadas sabedoria e vontade para inculcar nos seus.
“A verdade é um bem — diz Aristóteles —, e uma família na qual os homens virtuosos se sucedem é uma família de homens de bem. Esta sucessão de virtudes tem lugar quando a família remonta a uma origem boa e honesta, porque é no início onde normalmente se conhecem as futuras consequências, boas ou más. [...] Portanto, quando existe em uma família um homem muito dedicado ao bem, a sua bondade comunica-se aos descendentes, ao longo de muitas gerações, e daí provém necessariamente uma família virtuosa.”
O homem que quiser fundar uma família virtuosa deve persuadir-se de que os seus deveres não se limitam, como pretende Rousseau, a prover às necessidades físicas do seu filho, enquanto este não puder cuidar de si mesmo. Deve dar-lhe também uma educação intelectual, moral e religiosa.
Os animais têm forças e recursos para satisfazer às necessidades corporais das crias, e isto basta-lhes. Mas a criança, ser moral, tem muitas outras necessidades, e é por isso que Deus deu aos pais, além da força, a autoridade para educar a vontade dos filhos e fazê-los ingressar nas vias do bem, manter-se nelas e progredir. Deus quis que esta autoridade fosse permanente, porque o progresso moral é obra de toda uma vida. E como, segundo os desígnios da Providência, o progresso deve desenvolver-se ao longo dos tempos, é necessário que a família humana não se extinga em cada geração: o vínculo familiar deve subsistir entre os que já partiram e os que estão vivos, entrelaçando entre si todos os descendentes de uma estirpe vigorosa.
O homem de bem não pensa unicamente nos seus filhos, mas nas gerações que se seguirão a estes e empenha-se para que a virtude se torne tradição familiar.
É por isso que o livro de família tem grande importância. Começar este livro, ordenar ao primogênito que o continue e transmita essa injunção ao seu próprio filho, é o meio mais fácil e seguro de inculcar em uma família as tradições. Com uma condição: ter-se-á como regra inviolável procurar só alianças matrimoniais nas famílias que pratiquem as virtudes que se deseja transmitir aos próprios filhos.
“Aliar-se a uma família — diz Lacordaire — é aliar-se a bênçãos ou a maldições, e o verdadeiro dote não é aquele que o notário consigna no papel. Só Deus conhece o verdadeiro dote, mas até certo ponto a memória dos homens também o pode conhecer. Perguntai se o sangue que se vai unir ao vosso contém as tradições de virtudes humanas e divinas, e se foi purificado há muito tempo pelos sacrifícios que o dever impõe. Perguntai se a alma está cheia das graças de Deus. Remontai tão longe quanto possível na sua história genealógica, a fim de que, explorando todos os ramos de antepassados, como se explora uma mina, fiqueis a saber o que vale diante de Deus esta geração que desconhecíeis e que vai unir-se à vossa para tomar-se uma só na posteridade” .
Charles de Ribbe empregou o melhor da sua vida em revalorizar os livros de família. Depois de editar os manuscritos de muitas famílias antigas, publicou diversas obras para divulgar os ensinamentos que neles se encontram. Por fim redigiu, baseando-se nos modelos que tinha diante de si, o Livre de Famille, para servir de modelo aos pais que quisessem pôr em prática os exemplos dos antepassados. Recomendamos com insistência a aquisição, leitura e meditação deste livro, que pode contribuir para levantar a nossa sociedade.
Daremos aqui apenas algumas indicações.
O livro de família, ou livre de raison, é assim chamado porque nele se transmitem aos filhos e seus descendentes as razões ou motivos da posição da família, os seus antecedentes, trabalhos, ideias e sentimentos que a guiaram no caminho da vida e dos costumes, que devem garantir a transmissão dos mesmos sentimentos e virtudes. Constitui desse modo um vínculo moral entre as gerações, cujos elos, graças a tal livro, permanecem estreitamente unidos em uma comunidade de ideais e sentimentos.
Era dividido em três partes, correspondentes às três fases da existência da família. O passado, que é a genealogia e a história das origens da estirpe. O presente, que é a geração atual. O futuro são os ensinamentos deixados pelos pais e avós aos seus descendentes. O livro de família, quando bem elaborado, resume tudo o que material e moralmente diz respeito à família.
E em primeiro lugar a genealogia. André Lefèvre d’Ormesson, já citado, diz no seu livro de família:
“Que os nossos filhos conheçam aqueles de quem descendem, por parte de pai e mãe, para que se sintam estimulados a rezar a Deus pelas suas almas e a bendizer a memória daqueles que, com a graça de Deus, honraram a sua casa e adquiriram os bens de que os seus descendentes desfrutam, e que passarão às outras gerações, se na sua bondade o Criador quiser dar para isso a sua bênção, como eu Lhe suplico de todo o meu coração.”
Em outros termos, a genealogia da família é a condição primeira para criar e manter o espírito de família.
Sempre que possível, acrescentava-se uma pequena nota a cada nome. Todas as famílias deveriam ter uma história. O livro de família é o guardião dessa história. Os livros de família publicados ultimamente mostram-nos, nessas curtas notas, como muitas famílias modestas conseguiram, pela força dos costumes, perpetuar-se durante muitos séculos na mesma região, na prática das mesmas virtudes.
Depois da genealogia vem o diário, onde se registram sucessivamente os atos importantes da família: nascimentos, casamentos e óbitos, com as informações que cada um destes fatos comporta. O livro de tombo, onde se registram as cópias dos títulos de propriedade. O livro das contas e negócios. A exposição dos métodos de trabalho, onde se consignam conselhos para melhorar a sorte da família por uma experiência doméstica comprovada.
Os ensinamentos só excepcionalmente formam uma parte distinta. Normalmente as ideias e reflexões morais aparecem ao lado do relato dos fatos. Aproveita-se os acontecimentos para dizer aos filhos: eis a verdade, eis o bem. Evitai tal erro; tomai cuidado com tal falta. Estes avisos, formulados quase sempre com palavras tiradas da Sagrada Escritura, são curtos. Espera-se que desta forma eles se gravem melhor no espírito e penetrem no fundo dos corações:
“Eu gostaria de chamar este livro — dizia Antoine de Couston — a sabedoria da família. É necessário que ele continue a ser escrito em cada geração, que seja o depositário dos nossos êxitos, bem como dos nossos erros, de modo que, revertendo o bem e o mal dos que hoje vivemos em benefício dos que virão, ligue umas gerações às outras, transformando-as em uma só família sempre viva e animada do mesmo espírito. Se assim não for, as gerações rolarão umas atrás das outras em um círculo de ignorância e erros.”
Joubert descreveu bem a situação moral contemporânea, resultante da falta de ensinamentos tradicionais:
“Poucas ideias firmes e muitas ideias peregrinas, sentimentos muito vivos mas nada constantes, incredulidade em relação aos deveres e confiança nas novidades, espíritos decididos e opiniões vacilantes, afirmações categóricas no meio das maiores dúvidas, confiança em si mesmo e desconfiança em relação ao próximo, ciência das doutrinas loucas e ignorância das opiniões dos sábios: tais são os males do século. Tendo sido destruído o costume, cada um cria para si hábitos e maneiras de acordo com a sua natureza. Deploráveis épocas aquelas em que cada homem mede tudo pela sua bitola e caminha, como diz a Bíblia, iluminado pela própria candeia” .
É propriamente esse o nosso tempo. Havia antigamente, em cada casa, uma característica própria que a distinguia, em virtude da qual se podia dizer: eis aí um membro de tal família. Essa característica tinha sido formada pelos antepassados e mantivera-se pela tradição. Isso já não existe e as consequências são bem visíveis. Enquanto viveram alguns dos representantes das antigas gerações, havia sempre uma luz que iluminava a vida. Mas à medida que desapareceram os velhos, cuja educação fora feita de tradições, os jovens encontraram-se diante de uma tábua rasa. Nada sabem das antigas verdades que constituem a família e a sociedade. Estes jovens tornam-se pais de família em um meio invadido pelo luxo e por todo o gênero de facilidades, que os faz esquecer o pouco que aprenderam; sem falar das revoluções que neste nosso século têm acabado por destruir no coração do país o que lhe restava de vida.
Após as desordens que abalaram a Europa do século XVI, muitíssimos pais esforçaram-se por defender os filhos e os seus servidores contra o contágio do mal. Desta época datam os melhores livros de família. Eles foram os guias e os sustentáculos das famílias nobres que ilustraram a época de Henrique IV e Luís XIII.
Que bom seria se isso voltasse a acontecer! Não é temerário esperá-lo. Nos mais diferentes meios sociais recomeça-se a compreender a necessidade das tradições.
Logo após a morte do seu pai, o antigo redator do Petit Journal, Ernest Judet, publicou no Éclair estas palavras incisivas:
“Eu nunca compreendera tão bem o poder da tradição, a lição da hereditariedade, a carga que uma pessoa lega a outra dela nascida e a responsabilidade de nos desenvolvermos de acordo com o espírito daqueles que nos criaram!”
É bem conhecida a impressão profunda que produziu no público o livro de Paul Bourget intitulado L’Étape, em que o autor defende idênticos princípios.
Charles de Ribbe pesquisou a fundo as tradições familiares da velha França e tirou dos seus estudos a seguinte conclusão:
“Baseando-nos em testemunhos irrefutáveis, podemos afirmar: quando as famílias caminharam nas vias traçadas por Deus, vencendo os vícios e elevando-se pela virtude, o trabalho e a poupança, graças a uma séria educação cristã, alcançaram sempre uma grande riqueza material, que possuíram de maneira estável” .
No livro intitulado Quelques réflexions sur les lois sociales, o duque d’Harcourt fez uma observação muito oportuna para as famílias contemporâneas. Falando dos sentimentos íntimos da aristocracia do século XVIII, escreveu:
“Sabemos que, entre eles, a irreligião estava na moda. Zombavam dos dogmas e das tradições. Nos nossos dias, pelo contrário, os representantes das famílias nobres são, de modo geral, católicos praticantes”.
Pergunta em seguida como se operou essa mudança, e responde:
“Seria possível, no fim do século passado, que um grande número de indivíduos, por ódio à Revolução, mudasse assim de sentimentos? Não. Não foram os filhos dos ímpios que, espontaneamente, passaram a ter sentimentos piedosos, opostos aos dos seus pais. Pode ser que isso tenha ocorrido, mas muito raramente. Essa transformação explica-se simplesmente pela extinção quase completa da descendência dos céticos do século passado. Muitas dessas famílias desapareceram e, quanto às outras, perpetuaram-se, seja porque faziam parte da minoria que na Corte escapou ao contágio, seja porque descendem de parentes obscuros perdidos na província, mas que ali conservaram, juntamente com as antigas tradições, as ideias religiosas sem as quais as famílias não se perpetuam”.
Possa este memorável exemplo persuadir as famílias que querem perpetuar-se, a restabelecer as tradições que fizeram a antiga aristocracia! E para isso, que se retorne em toda parte nas famílias cristãs o belo costume dos livros de família. Estes tiveram outrora um grande prestígio em quase todos os países da Europa e até do Oriente. Uma instituição nascida espontaneamente em tantos e tão diversos países só pode ser inspirada pela própria natureza, ou melhor, pelo Autor da nossa natureza. Foi-nos terrivelmente funesto abandoná-la. Ser-nos-á extremamente favorável recuperá-la.
Pela afirmação do preceito tal como é lida na Sagrada Escritura (Ex. 20:8-11), pode-se ver o rigor e a severidade com os quais a Lei Moisaca prescrevia o descanso sabático. Os israelitas, às vezes, interpretavam-na de uma maneira muito literal e material, como Nosso Senhor em pessoa ressaltou (Lc. 13:14-16). A Lei do Evangelho, embora mantendo o preceito do Decálogo, abrandou sua interpretação prática, como São Tomás de Aquino explica: “Na Nova Lei, a observância do Dia do Senhor tomou o lugar da observância do Sabbath, não por virtude do preceito, mas pela instituição da Igreja e o costume do povo cristão. Pois essa observância não é figurativa, como era a observância do Sabbath na Lei antiga. Portanto a proibição de trabalhar no Dia do Senhor não é tão estrita quanto era no Sabbath; e certos trabalhos são permitidos no Dia do Senhor, mas eram proibidos no Sabbath, tais como cozinhar comida e outros. E, novamente, na Nova Lei, dá-se a dispensa do preceito mais facilmente que na Antiga, quando se trata de certas obra proibidas, em razão de sua necessidade, porque a figura diz respeito à protestação da verdade, cuja omissão é ilícita até mesmo nas coisas pequenas; enquanto os trabalhos, considerados em si mesmos, são mutáveis em razão do lugar e do tempo (II-II, 122.4 ad 4).
Como estabelecido pelo Código de Direito Canônico, nos Domingos e dias de festa, a Igreja proíbe o trabalho servil, atos legais e comércio público, compras, etc (Can. 1248).
Trabalhos servis são aqueles que, ordinariamente, requerem o exercício de força física, como aqueles executados por fazendeiros, trabalhadores braçais, pedreiros, carpinteiros, etc. As obras servis não devem ser julgadas pelo propósito da pessoa que as realiza ou pela fatiga física que causam, mas apenas por sua própria natureza; assim, elas não deixam de ser servis mesmo quando são feitas apenas por recreação ou sem qualquer fatiga corporal.
Portanto, nos dias santos de preceito, os trabalhos servis são proibidos sob pena de pecado mortal; mas dispensas e exceções são possíveis.
Atos legais e judiciais que requerem um certo aparato e publicidade, como convocar testemunhas, realizar uma audiência pública, sentenciar, etc, são proibidos nos dias santos de preceito, mas não aqueles que podem ser feitos em privado, tais como consultas, escrever um relatório, dar conselhos, etc.
Em razão das inconveniências que normalmente trazem à santificação do dia de festa (dificuldades para ir à Missa, busca excessiva de lucro, etc), a Igreja também proíbe mercados públicos, feiras e outras vendas e compras públicas nos dias santos, exceto se autorizados por costumes legítimos ou por permissões especiais dadas pela autoridade eclesiástica.
Além dessas dispensas legítimas, outras causas pode, circunstancialmente, dispensar da lei de repouso dominical, como por exemplo:
Piedade a Deus; portanto é lícito trabalhar no que está imediatamente conectado com o culto de Deus, decorar os altares, preparar uma procissão, etc; mas não os trabalhos que têm relação mais remota, como consertar a Igreja, costurar paramentos, etc.
Caridade com o próximo; portanto é lícito, nos dias de festa, fazer qualquer trabalho físico que seja necessário para satisfazer as necessidades dos doentes, etc.
Necessidades prementes; por exemplo, no caso de trabalhadores que são obrigados a estar em seus trabalhos por seus empregadores sob pena de perder o emprego; os pobres, para obter seu sustento diário, os fazendeiros para evitar dano de uma tempestade ameaçadora, as mães ocupadas com tarefas domésticas e outros casos semelhantes. Mas devemos ter cuidado para evitar o escândalo e garantir que sempre haja uma causa verdadeira e proporcional, evitando autoengano ou malícia.
Pe. Juan Carlos Iscara, FSSPX
O Concílio Vaticano I (Dz. 1792) ensinou, com toda precisão e clareza, qual o objeto da fé: “Por fé divina e católica, deve-se acreditar em todas as coisas contidas na palavra escrita de Deus e na Tradição, e naquelas propostas pela Igreja, seja em um pronunciamento solene, ou em na sua autoridade magisterial ordinária e universal, como sendo divinamente reveladas."
Expliquemos os termos dessa proposição, que é um modelo de precisão e exatidão.
É necessário acreditar por fé divina e católica, isto é, com uma fé sobrenatural apoiada na autoridade de Deus, que revela, e naquela da Igreja, que, infalivelmente, garante a existência da revelação divina.
Tudo que está contido na palavra escrita de Deus ou transmitida pela Tradição. Isso indica as duas fontes da revelação divina, a saber, a Sagrada Escritura, que a transmite a nós pela palavra escrita, e a Tradição Católica, que a transmite a nós pela palavra escrita ou oralmente, de geração para geração. A maioria das seitas protestantes não reconhecem como pertencentes à fé nada além das verdades expressas contidas na Sagrada Escritura; mas essa doutrina é totalmente falsa e herética e, como tal, foi condenada pela Igreja (Dz. 783-784).
Essas palavras também excluem, como objeto da fé católica e divina, as revelações privadas que algumas pessoas receberam em particular. Apenas elas estão obrigadas a crer nessas revelações com fé divina se sua origem divina é conhecida por elas com toda certeza por virtude da luz profética.
E que a Igreja propõe como divinamente revelada. A proposição da Igreja é uma condição sine qua non para o assentimento de nosso entendimento ser um ato de fé divina.
A razão é que o testemunho de Deus não pode ser conhecido com certeza e infalibilidade por nós mesmos, salvo por uma luz profética (que ilumina apenas a pessoa que recebe, diretamente, a revelação divina) ou pela proposição infalível da Igreja, que, em virtude de uma assistência especial do Espírito Santo, não pode errar. Por essa razão, nas seitas protestantes que rejeitam a autoridade da Igreja, há confusão e caos reais acerca das verdades que devem ser admitidas como de fé, pois cada um deles crê ou rejeita o que eles acham conveniente, sem orientação nenhuma além daquela dos seus caprichos pessoais.
Por definição solene. É uma das maneiras – a mais clara e explícita – de propor aos fiéis as verdades da fé. Ocorre quando o Papa define, ex cathedra, algum dogma da fé ou declara-o expressamente por um Concílio Ecumênico, presidido e aprovado pelo Papa.
Ou por seu magistério ordinário e universal. É a outra maneira através de que a Igreja propõe aos fiéis as verdades que devem ser cridas com fé divina e sobrenatural. Ela consiste no ensinamento comum e universal de uma certa doutrina por todos os Bispos e Doutores espalhados pelo mundo. O ensinamento universal não pode falhar ou conter qualquer erro em razão de uma assistência especial do Espírito Santo, que não pode permitir que a Igreja inteira erre em alguma doutrina relativa a fé ou moral.
Quando a Igreja, seja por definição solene ou por seu magistério ordinário e universal, propõe aos fiéis alguma verdade como digna de crença revelada por Deus, essa verdade adquire o nome de dogma. Consequentemente, um dogma é uma verdade revelada por Deus e proposta pela Igreja como tal.
Pe. John Brucciani, FSSPX
[Nota da Permanência: Acrescentamos que a liceidade de se tomar a vacina contra a Covid-19 nos casos apontados abaixo não implica na obrigação de fazê-lo.]
Muitos fiéis têm pedido orientação moral em relação às vacinas contra a Covid-19. Há vários artigos sobre o tema, que dão respostas diferentes ou nenhuma resposta. Esse artigo é uma tentativa de trazer clareza e solidez à questão
Posso tomar a vacina da Covid-19 se ela foi desenvolvida com células de fetos abortados?
Em relação à licitude de receber uma vacina desenvolvida com células fetais, a Pontifícia Academia para a Vida publicou, em 2005, um documento que concluiu que, em certas circunstâncias definidas, é moralmente permitido receber uma vacina desenvolvida de células fetais. Essa conclusão pode soar surpreendente, repulsiva e instintivamente errada, mas as conclusões advêm de princípios teológicos morais. Todos os teólogos morais da FSSPX concordam.
A questão, na nossa presente situação, deve levar em conta: (a) a existência de certas circunstâncias específicas e (b) circunstâncias adicionais, particulares à questão.
Circunstâncias específicas
As circunstâncias específicas que devem estar presente são as seguintes:
1. A doença é grave;
2. Não há vacinas alternativas disponíveis;
3. Protestou-se, vigorosamente, contra o uso de células fetais abortadas.
Circunstâncias adicionais
As circunstâncias adicionais da situação presente podem incluir:
4. O fato dos governos, mídia e empresas multinacionais estarem trabalhando duro para instaurar uma Nova Ordem Mundial essencialmente anticristã, com a cultura da morte no seu coração. A imposição global de uma vacina maculada pelo aborto é parte desse trabalho.
5. O desenvolvimento acelerado de uma vacina aumenta os riscos de efeitos colaterais maléficos.
6. A possibilidade de consequências penosas impostas àqueles que se recusarem tomar a vacina, como a demissão do trabalho ou mesmo o sequestro de seus filhos pelas autoridades.
Considerando as circunstâncias
As circunstâncias específicas se verificam no presente?
1. A doença é grave apenas para um pequeno grupo;
2. Há vacinas alternativas, mas elas não estão, necessariamente, disponíveis a todos;
3. O protesto vigoroso contra o uso de células fetais se trata de uma obrigação pessoal.
Em relação às circunstâncias adicionais:
4. Os católicos devem empregar todos os meios razoáveis para evitar cooperar com a imposição da cultura da morte pela Nova Ordem Mundial;
5. O risco de uma vacina desenvolvida às pressas é real, mas impossível de se avaliar;
6. Alguma penalidade pode ser imposta no futuro, mas, por enquanto, não no Reino Unido (N.T.: nem no Brasil);
Conclusão
À luz dessas circunstâncias concretas, a vacina desenvolvida de células fetais abortadas pode ser recebida sem pecado: (a) por um membro do grupo de risco, quando não houver vacina alternativa disponível e após protesto, ou (b) se a consequência de recusar a vacina for tão onerosa de modo a ameaçar a manutenção da vida pessoal ou familiar, e após protesto.
Santo Afonso de Ligório, padroeiro dos teólogos morais, rogai por nós
(Ite Missa Est, Jan-Fev. 2021. Tradução: Permanência)